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Primeiro a perseguição, agora as monções e os elefantes: o drama sem fim dos rohingya

O pesadelo dos rohingya parece não ter fim. Refugiados em campos do Bangladesh, em áreas onde outrora se erguiam densas florestas, enfrentam agora a época das monções. Recolhidos em “casas” feitas de plástico e bambu, (sobre)vivem vulneráveis a deslizamentos de terras e inundações. E também à visita, inesperada e por vezes mortífera, de elefantes que ali viviam antes

Cerca de 25 mil rohingya correm reais riscos de vida nos campos do Bangladesh, onde pensariam estar a salvo. Para que a tragédia aconteça, basta apenas que as chuvas das monções — o fenómeno natural que recentemente encurralou 12 jovens futebolistas e o seu treinador numa gruta tailandesa — se intensifiquem. Com grande probabilidade, as frágeis tendas de plástico e bambu onde os refugiados estão instalados deslizarão terra abaixo, levando consigo quem está próximo a caminho de uma morte certa — como aconteceu a 25 de julho, com cinco crianças.

“As monções não são uma possibilidade, são uma certeza. E aquela zona tem três vezes mais pluviosidade do que o resto do Bangladesh, que, já de si, é um país muito suscetível a monções”, diz ao Expresso o lisboeta Pedro Matos, de 44 anos, acabado de regressar dos campos, após uma missão de cinco meses com o Programa Alimentar Mundial (PAM), das Nações Unidas. “A grande dúvida é saber como reagirá a zona onde estão os rohingya” assim que as chuvas caírem com maior intensidade.

Entalado entre a Índia e Myanmar, o Bangladesh tem um histórico que pode ajudar a antecipar o efeito das monções no território, mas a área dos campos tem uma especificidade… “A zona onde os rohingya estão era um parque nacional, uma floresta densa, que agora está completamente despida.” As árvores, que ajudavam a prevenir deslizamentos de terras, tiveram de ser arrancadas em nome de uma urgência maior. “A preocupação principal, nos primeiros tempos, foi arranjar sítio para as pessoas, que atravessavam a fronteira ao ritmo de milhares por dia. As monções ainda estavam à distância”, diz Pedro Matos. “Como tudo foi completamente arrasado — até as raízes foram arrancadas, para serem usadas como lenha para as pessoas cozinharem —, toda aquela zona, meio arenosa e argilosa, ficou muito vulnerável aos efeitos das monções.”

Duas emergências numa só

No início deste ano, quando o fluxo de pessoas começou a acalmar, outros desafios ganharam visibilidade. Entre os cerca de 900 mil rohingya que vivem nos campos — uns 200 mil já ali estão há anos, na sequência de vagas de repressão anteriores —, “entre 100 e 200 mil estavam instalados em declives e vales, vulneráveis a deslizamentos de terras e inundações”, explica o funcionário do PAM. “E, desses, 25 mil corriam grande risco de vida.”

Iniciou-se então a segunda fase da emergência: a preparação para a época das monções e também dos ciclones, fenómenos que requerem respostas diferentes. “Os ciclones são ventos fortes, as monções são chuvas fortes. O último ciclone que atingiu aquela zona teve ventos entre os 100 e os 300 quilómetros por hora. Se um ciclone entrar por aqueles campos, nenhuma cabana resistirá. Felizmente, a época dos ciclones passou sem nenhum por perto.”

Atualmente, continua em curso a resposta às monções, que passa por um grande trabalho de engenharia — num esforço conjunto de três agências das Nações Unidas (Organização Internacional para as Migrações, Alto Comissariado da ONU para os Refugiados e PAM) — com o objetivo de criar sítios novos para alojar as pessoas em situação mais vulnerável. “Movemos montanhas, literalmente”, diz Pedro Matos. “Tirámos topos e pusémo-los nos vales, para criar zonas planas onde pudéssemos pôr as pessoas. Felizmente as monções começaram de uma forma mais suave do que estávamos à espera.”

Além dos ciclones e das monções, uma terceira ameaça aos rohingya emergiu da mãe natureza. “Aquela floresta estava cheia de elefantes, centenas deles, que continuam a fazer as suas rotas migratórias. De vez em quando, entram pelos campos adentro e matam pessoas” — até ao momento, pelo menos 12.

Vídeos captados por telemóvel mostram elefantes “perdidos”
no campo de refugiados rohingya de Kutupalong
VÍDEOS UNHCR / MONTAGEM “THE GUARDIAN”

Pedro Matos, que já testemunhou crises humanitárias no Quénia, no Uganda e no Darfur, considera o Bangladesh marcante a dois níveis: a velocidade do último êxodo rohingya e os riscos ambientais, que “nunca tinha visto na vida”, diz. “E tudo agravado por aquilo que já é uma situação de vulnerabilidade de um refugiado que deixa tudo para recomeçar a vida noutro sítio ou para fugir do perigo.”

A experiência nos campos diz ao português que os rohingya querem regressar a Myanmar, o país que consideram seu — a 21 de junho, o número exato de rohingyas nos campos do Bangladesh era de 918.936. “Querem voltar, mas têm a ideia clara de que, neste momento, não há condições para que isso aconteça. Todos os problemas que existiam antes, incluindo o de não serem reconhecidos como cidadãos de Myanmar, continuam a existir, com problemas acrescidos, como o facto de as aldeias terem sido arrasadas e eles já não terem sítios para onde voltar. E a solução que Myanmar dá são campos já não de refugiados mas vedados — quase campos de concentração.”

(Foto: Sacos de areia ajudam a segurar as terras, no campo de Balukhali, em Cox’s Bazar, Bangladesh OLIVIA HEADON / IOM / UN MIGRATION AGENCY)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 7 de agosto de 2018. Pode ser consultado aqui

Os bebés da vergonha

Quase um ano após o início das agressões sexuais, em Myanmar, contra milhares de mulheres rohingya, os campos de refugiados no Bangladesh estão cheios de bebés… que ninguém vê. Vergadas à vergonha, muitas lidam com essas gravidezes indesejadas no interior das tendas, longe de olhares reprovadores e de assistência médica. A fundadora da organização não governamental Projeto Dignidade dos Sem Estado conta ao Expresso o que por lá viu

Captura de ecrã de uma reportagem da Al-Jazeera sobre refugiadas rohingya que foram violadas

Quando se anda pelos campos de refugiados rohingya no Bangladesh mal se veem mulheres grávidas. Não que as não haja, mas simplesmente não se fazem notar. “Eu tinha a expectativa de ver muitas mulheres em adiantado estado de gravidez e também recém-nascidos, mas fiquei um pouco chocada pois não vi quase nenhuns”, confidencia ao Expresso a norte-americana Ashley Kinseth. “Acho que vejo mais grávidas e recém-nascidos em Nova Iorque do que vi nos campos, apesar de haver ali ‘toneladas’ de crianças.”

Em junho, a fundadora e diretora do Stateless Dignity Project (Projeto Dignidade dos Sem Estado) passou dois dias nos acampamentos rohingya na região de Cox’s Bazar, sudeste do Bangladesh. A sua expectativa decorre de uma leitura fria da brutalidade que aquela comunidade — e as suas mulheres em particular — enfrentou nos últimos meses no país onde vivia, Myanmar, a antiga Birmânia.

Em agosto do ano passado, uma vaga de perseguição à minoria muçulmana naquele Estado de maioria budista, levada a cabo pelo exército, obrigou mais de 700 mil rohingya a fugirem de casa com pouco mais do que a roupa do corpo e a procurar refúgio no vizinho Bangladesh — mais de 55% de quem se fez à estrada eram crianças.

Pelo caminho e, antes, durante a invasão às aldeias, milhares de mulheres e meninas foram violadas. Quase um ano depois, muitas lidam com o trauma de gravidezes e filhos indesejados no interior de tendas de plástico e bambu, escondidas de olhares reprovadores. “De um modo geral, as mulheres das comunidades rohingya tendem a ficar ‘dentro’, especialmente no final da gravidez ou logo após o nascimento do bebé”, diz Ashley. “É muito difícil ter grande privacidade nos acampamentos mas, mesmo assim, imagino que muitas dessas mulheres” — especialmente se suspeitarem que o bebé possa ser fruto de uma violação — “possam ‘esconder-se’ em casa, provavelmente com algum apoio da família, por vergonha das gestações.”

De porta a porta num campo com 600 mil pessoas

Em maio, após visitar os campos de Cox’s Bazar, o subsecretário-geral das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Andrew Gilmour, alertou para um “inevitável aumento de nascimentos devido ao frenesi de violência sexual em agosto e setembro do ano passado”. Gilmour denunciou também casos de raparigas com 14 anos que sofriam de complicações provocadas por abortos autoinduzidos.

Organizações no terreno reforçaram os seus quadros de pessoal antecipando um “boom” de nascimentos. Foi o caso do Fundo das Nações Unidas para a População, que destacou 60 parteiras adicionais, qualificadas em matéria de agressões sexuais e planeamento familiar. Mas as rohingya não as procuram, preferindo lidar com a sua condição na intimidade possível das tendas.

Em janeiro, a organização Save the Children estimou em 48 mil os nascimentos esperados, este ano, nos campos do Bangladesh — uma média diária de 131 bebés. Confirmá-lo implicava ir porta a porta, tarefa impossível por exemplo numa “cidade”, como é o campo de Kutupalong, onde vivem 600 mil dos 900 mil rohingya alojados em Cox’s Bazar.

“Não sabemos em que medida os bebés que estão a nascer agora foram concebidos num contexto de violência, porque, dada a sensibilidade do assunto, nem todos os casos são relatados, mas também porque nem todos os bebés serão produto de violência”, diz ao Expresso a mexicana Beatriz Ochoa, do escritório da organização Save the Children no Bangladesh. “Dito isto, não quero depreciar a violência sexual que os refugiados viveram. Há meninas e mulheres que passaram pela horrível experiência de serem violadas e ficaram grávidas, e nalguns casos enfrentam agora a estigmatização e os riscos de terem um bebé fora do casamento e como resultado de uma agressão sexual.”

Enfrentar o estigma ou abortar pelas próprias mãos?

Muitas rohingya estão, pois, confrontadas com uma escolha angustiante: lidar com o estigma ou abortar. Jasmeen Zafar Chowdhury, uma médica bengali que trabalha numa maternidade montada pela organização Friendship, diz cautelosamente ao Expresso: “Temos tido casos de parto, mas não podemos correlacioná-los com situações de estupro ou agressão sexual. Em menor número, também recebemos casos complicados, como abortos incompletos”.

Num contexto onde não faltam assuntos difíceis, a começar pelas memórias dos ataques às aldeias, as gravidezes que decorrem da campanha de violações é “um assunto tabu”, refere Ashley Kinseth. Mas a comunidade esforça-se por enfrentá-lo. “Embora o estupro seja, por tradição, algo extremamente estigmatizado, para estes rohingya não há como o negar. As pessoas com quem falei recordam-se de ver as meninas e mulheres das suas aldeias a serem violadas. Embora seja para eles profundamente doloroso lembrá-lo, creio que o estigma não se coloca, antes são vistas como vítimas. Foram muitas as pessoas que testemunharam esses atos. Estigmatizar essas mulheres seria ostracizar uma grande parte da população feminina potencialmente disponível para se casar e gerar filhos.”

O pesadelo destas mulheres não termina no momento em que dão à luz. Para todo o sempre, verão nos rostos não totalmente rohingya dos seus filhos as feições dos seus agressores. Num recado à comunidade internacional, Abdur Rahim, um líder da comunidade rohingya, afirma: “Esses bebés são provas dos crimes” cometidos pelo exército birmanês.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 6 de agosto de 2018. Pode ser consultado aqui

Porque fogem os rohingya?

A minoria muçulmana da antiga Birmânia é das mais perseguidas à face da Terra. Dos cerca de um milhão de rohingya, 700 mil já fugiram do país. Não se via um êxodo humano tão rápido desde o genocídio no Ruanda. 2:59 PARA EXPLICAR O MUNDO

Os rohingya são dos povos mais perseguidos à face da Terra. Em Myanmar, a antiga Birmânia, vivem subjugados por uma repressão generalizada que os torna párias no país que sentem como seu e onde nem o Estado nem a restante população os reconhecem. Apontados a dedo como um povo menor, chamam-lhes pulgas, ogres, são frequentemente alvo de violência organizada por parte das forças do Estado.

Em agosto de 2017, mais de 350 aldeias foram invadidas por homens armados. As propriedades pilhadas, casas queimadas, mulheres violadas e todos quantos tentaram fugir a esse inferno foram alvejados a tiro.

Muitos dos sobreviventes fizeram-se à estrada com a roupa do corpo e procuraram abrigo no Bangladesh. Não se via um êxodo humano tão rápido desde o genocídio do Ruanda, em 1994.

Hoje existem cerca de um milhão de rohingya e 700 mil vivem no Bangladesh, em acampamentos temporários, à mercê da ajuda internacional e expostos a novas crises. Recentemente, soaram dois alertas: as monções, que ameaçam fustigar os campos sobrelotados, e um “boom de bebés, fruto de violações em massa durante a fuga.

Mas porquê tanto ódio aos rohingya? Em primeiro lugar, a geografia. Os rohingya vivem sobretudo na parte ocidental de Myanmar, num estado fisicamente separado do resto do país pela cadeia montanhosa do Arakan Yoma. Ao longo dos tempos esse isolamento levou a menor investimento e originou mais pobreza em comparação com o resto do país.

A religião é outro fator potencial de conflito. Os rohingya são muçulmanos, ao contrário da esmagadora maioria dos birmaneses que é budista. Entre as principais vozes de ódio contra os rohingya está um monge budista a quem chamam “o Bin Laden birmanês.

O problema dos rohingya acentuou-se em 1982 quando uma nova Lei da Cidadania reconheceu 135 grupos étnicos, mas deixou-os de fora. Foi a machadada final numa comunidade sistematicamente privada de direitos básicos, como a possibilidade de trabalhar, aceder à educação, movimentar-se livremente, ser proprietário ou até casar.

Em 2014, no último censo realizado em Myanmar, só foram contabilizados os rohingya que aceitaram registar-se como bengalis. Quem se recusou, pura e simplesmente, não existe.

Ativistas e organizações presentes no terreno alertam para um genocídio em curso. Mas falar do assunto tornou-se incómodo num país onde o ódio à minoria muçulmana parece ser um sentimento nacional e rohingya uma palavra proibida.

Em novembro de 2017, o Papa Francisco visitou Myanmar e foi incapaz de condenar expressamente a violência contra os rohingya.

Do mesmo modo, Aung San Suu Kyi, a Nobel da Paz birmanesa que se tornou um símbolo mundial da luta pela democracia, viu a sua reputação arruinada fora de portas por nunca se ter insurgido contra a repressão de que esta comunidade é vítima.

Politicamente, a Birmânia vive um processo de transição entre uma ditadura militar e uma democracia que ninguém quer perturbar. E que por isso se sobrepõe à dignidade dos rohingya.

Episódio gravado por Pedro Cordeiro.

Artigo publicado no Expresso Online, a 21 de junho de 2018. Pode ser consultado aqui

O silêncio do Papa face ao genocídio dos rohingya

Repressão da minoria muçulmana ganha proporções de genocídio mas Francisco não a condenou

O Papa Francisco habituou crentes e não crentes a verbalizar incómodos como nunca antes um seu antecessor tinha feito. Esperava-se, pois, que esta semana, de visita a Myanmar, antiga Birmânia, o líder da Igreja Católica se solidarizasse, de forma explícita, com o drama da minoria muçulmana, como fizera a 27 de agosto, na Praça de São Pedro: “Chegam-nos tristes notícias sobre a perseguição aos nossos irmãos e irmãs rohingya”, disse então. Não aconteceu.

Na terça-feira, num discurso na capital, Naypyidaw, com a Nobel da Paz Aung San Suu Kyi a ouvi-lo, o Sumo Pontífice limitou-se a apelar à reconciliação e ao “respeito por todos os grupos étnicos e identidades”. No país, de maioria budista, o sentimento antimuçulmano é antigo, generalizado e “rohingya”, uma palavra proibida.

Francisco evitou um conflito diplomático com o país que o acolhia, mas saiu moralmente diminuído. “Quem perdeu a dignidade não foram os rohingya, mas antes aqueles que silenciaram o Papa, influenciando-o a não usar a palavra rohingya”, reagiu o ativista birmanês Khin Maung Myint, ao diário “The Guardian”, à margem da missa campal presidida pelo Papa, em Rangum.

Até à matança final

Em setembro passado, as Nações Unidas qualificaram a perseguição aos rohingya como “limpeza étnica” — a expulsão de um grupo de uma região, o que, ao abrigo do direito internacional, não é crime. Acabada de regressar dos campos de  refugiados rohingya no Bangladesh, Alicia de la Cour Venning faz uma avaliação mais severa. Para esta investigadora da Universidade Queen Mary, de Londres, está em curso uma campanha de genocídio — a destruição completa de um grupo —, que caminha a passos largos para a sua etapa final, a da matança em massa.

“O genocídio é um processo que ocorre durante um longo período, às vezes décadas”, diz ao “Expresso” a investigadora. “Começa com a estigmatização de uma comunidade, através de atos discriminatórios, continua com o assédio psicológico e/ou físico, isolando o grupo em campos ou guetos. A comunidade é sistematicamente enfraquecida e os seus membros privados de direitos humanos básicos, como a possibilidade de trabalharem, terem acesso à educação,  movimentarem-se em liberdade, de serem proprietários, de se casarem e — no caso dos rohingya — de terem cidadania. Depois de tudo isto, chega a etapa das matanças em massa.”

Aprender com a História

Foi assim na Alemanha nazi, com os judeus, e no Ruanda (1994), com os tutsis. Na  Birmânia, “a perseguição em curso segue os mesmos padrões de ações previamente reconhecidas como genocídios”, confirma Alicia de la Cour. A visita aos campos insere-se numa investigação que está a ser desenvolvida pela International State Crime Initiative. “Ouvimos relatos de como militares birmaneses, polícias e civis entraram nas aldeias dos rohingya e queimaram casas, pilharam propriedades, violaram mulheres e executaram todos os civis, incluindo mulheres, crianças e idosos, que tentavam fugir.”

Tudo acontece sem que, a nível internacional, haja um esboço de reação em socorro dos rohingya. Em defesa da Birmânia, pelo contrário, China e Rússia garantem o veto a qualquer resolução condenatória no Conselho de Segurança da ONU. E pelo mundo não falta quem abra a porta aos generais de Rangum. Em abril, o chefe das forças armadas birmanesas, Min Aung Hlaing, foi recebido em Berlim e Viena. Pela mesma altura, Israel vendia à Birmânia lanchas de patrulha rápidas e sofisticadas Super-Dvora MK III. “Sanções específicas contra os militares seria um bom começo” para tentar inverter a campanha de genocídio, defende a investigadora.

Pretextos para reprimir

O drama dos rohingya tem epicentro num estado ora designado Rakhine (terminologia birmanesa) ora Arakan, palavra inglesa que deriva da designação… portuguesa: Arracão (ver ao lado). Estende-se ao longo de 560 km da costa oeste, junto ao Golfo de Bengala, e abriga 3,2 milhões de habitantes: 2,1 milhões são budistas e mais de um milhão, muçulmanos. Entre as duas comunidades, a tensão é constante.

A mais recente vaga de violência seguiu-se à morte de 12 agentes das forças de segurança, a 25 de agosto, em ataques contra postos de fronteira levados a cabo pelo Exército de Salvação dos Rohingya do Arracão (Arsa), “um pequeno grupo, mal organizado e mal armado, uma ameaça muito baixa para o governo”, garante Alicia de la Cour. “A razão que leva à formação destes grupos decorre da discriminação constante e da opressão por parte do Estado birmanês. Os grupos pegam em armas como resposta à política criminosa do Governo.”

Os ataques do Arsa dão às autoridades “um pretexto para reprimirem. É o que têm feito, uma punição coletiva contra os civis rohingya”. Desde agosto, mais de 600 mil já se fizeram à estrada, rumo ao Bangladesh e aos campos junto à cidade de Cox Bazar — Hiram Cox (1760-1799) foi um diplomata britânico que se destacou na área da reabilitação de refugiados. Com eles levaram a roupa do corpo e um sonho: “Querem todos regressar”, diz a investigadora. “É a terra deles.”

ROHINGYA NÃO CONTAM

135 grupos étnicos, com direito a solicitarem cidadania birmanesa, foram identificados numa lei de 1982. Os rohingya ficaram de fora

2014 foi o ano do último censo na Birmânia. Os rohingya foram excluídos, a não ser que se registassem como “bengalis”, o que muito poucos fizeram

A LEI DA GEOGRAFIA E A PRESENÇA PORTUGUESA

A palavra rohingya não vem nos dicionários. Mas a geografia ajuda a perceber a sua presença num país abordado por portugueses

Para tentar explicar ao “Expresso” as origens da maldição dos rohingya na Birmânia, Maria Ana Marques Guedes socorre-se de um mapa. “Enquanto reino, o Arracão teve uma independência bastante razoável em relação à Birmânia por razões geográficas. Está separado do resto do território pela cadeia montanhosa Arakan Yoma e está virado para o Golfo de Bengala e para o Bangladesh, que já era muçulmano quando os portugueses lá chegaram, e com quem o Arracão sempre teve mais relações comerciais do que com a Birmânia”, diz esta doutorada pela Universidade Nova de Lisboa, com investigação desenvolvida na Birmânia. “Julgo que os rohingya são descendentes desses muçulmanos. O termo é discutidíssimo por historiadores e linguistas. Não vem sequer nos dicionários.”

Por causa dessa particularidade geográfica, quando o rei Tabinshwehti (1516/50) unificou a Birmânia, o Arracão ficou de fora. Só seria conquistado em 1785, muito depois da abordagem dos portugueses, no século XVI, atraídos pelas riquezas da Birmânia. “Foi o maior exportador de arroz até ao fim da II Guerra Mundial e ainda tem os melhores rubis do mundo”, diz a professora.

Os portugueses, que tentaram conquistar o Arracão e Pegu (a capital), fizeram uma ocupação não oficializada pelo Estado luso da Índia. O mercenário Filipe de Brito Nicote chegou a ter uma fortaleza no Sirião. “No princípio do século XVII, os portugueses chegaram a raptar um príncipe birmanês de seis anos. Educaram-no em Lisboa e tentaram pô-lo no trono de Arracão, para depois verem legitimada a presença portuguesa.”

(Foto: Chegada de membros da etnia rohingya ao campo de refugiados de Balukhali, em Cox’s Bazar, Bangladesh, em novembro de 2017 OLIVIA HEADON / IOM / UN MIGRATION AGENCY)

Artigos publicados no “Expresso”, a 1 de dezembro de 2017. O primeiro artigo foi republicado e adaptado no “Expresso Online”, a 1 de dezembro de 2017. Pode ser consultado aqui

Quando os Nobel da Paz contribuem para a guerra

Aung San Suu Kyi está a ser criticada por não defender a minoria rohingya. Não é caso único entre aqueles que receberam o Nobel da Paz. Nem sempre o percurso dos galardoados corresponde às expectativas e, noutros casos, é o próprio Comité que nunca deu o Nobel da Paz a Mahatma Gandhi, por exemplo a distinguir personalidades implicadas em episódios de violência. Seis casos foram particularmente controversos

Aung San Suu Kyi

De Nobel para Nobel. O líder dos budistas do Tibete, Dalai Lama (Nobel da Paz 1989), apelou na semana passada à líder da oposição na Birmânia, Aung San Suu Kyi (Nobel da Paz 1991), que faça alguma coisa em defesa dos rohingya, a minoria muçulmana que enfrenta uma situação de perseguição naquele país de maioria budista.

“É muito triste. Espero que Aung San Suu Kyi, enquanto Nobel da Paz, possa fazer alguma coisa”, disse o Dalai Lama. “Eu estive com ela duas vezes, em Londres e depois na República Checa. Falei do assunto e ela disse-me que tinha algumas dificuldades, que as coisas eram muito complicadas. Mas apesar disso eu sinto que ela pode fazer alguma coisa.”

Aung San Suu Kyi, que completa 70 anos a 19 de junho, tem sido criticada por não se pronunciar sobre o drama dos rohingya discriminados internamente e rejeitados externamente, como o demonstra os barcos à deriva, cheios de gente desesperada, junto às costas da Tailândia, Indonésia e Malásia, sem que estes países lhe abram portas.

Em declarações ao “Expresso”, Akihisa Matsuno, professor na Universidade de Osaka (Japão) especializado em assuntos do Sudeste Asiático, descodifica o silêncio da Nobel da Paz. “O assunto dos rohingya é difícil não só para Aung San Suu Kyi, mas para qualquer político birmanês. Mesmo os ativistas pró-democracia não têm coragem de falar sobre o problema.”

Falar dos rohingya arruína a carreira política

Na Birmânia (país também chamado Myanmar), quer as populações budistas quer as minorias étnicas que vivem no país algumas das quais lutam por autonomia ou autodeterminação olham para os rohingya como estrangeiros (bangladeshianos) e não como cidadãos birmaneses. “Neste aspeto, todos estão de acordo”, comenta o professor Matsuno. “Se Aung San Suu Kyi falar dos rohingya, ela e a sua Liga Nacional para a Democracia (LND) perderão apoio e verão a popularidade de todo o movimento democrático afetada.”

Em 2012, quando de uma digressão da Nobel birmanesa pela Europa, ela falou publicamente do assunto e logo foi dissuadida por conselheiros a não voltar a fazê-lo. “Para qualquer político na Birmânia, falar dos rohingya significa o fim da sua carreira política”, refere o académico japonês.

A Birmânia tem eleições parlamentares previstas para o final do ano. Estará então em causa a eleição de 75% dos lugares os restantes 25% são nomeados pelo regime. A seguir ao ato eleitoral, um colégio eleitoral designará o chefe de Estado Suu Kyi está impedida de se candidatar aos cargos de presidente ou vice-presidente uma vez que os seus filhos não têm nacionalidade birmanesa (são britânicos).

Para alterar este preceito constitucional, é necessário o apoio de mais de 75% dos deputados, uma fasquia difícil de superar dada a lealdade de (pelo menos) 25% dos deputados ao regime liderado pelo ex-general Thein Sein. “Até ao momento, não houve pressão internacional suficiente para que o regime considere rever a Constituição”, comenta o professor da Universidade de Osaka.

Objetivo é sobreviver e ganhar as eleições

“É um erro assumir que Aung San Suu Kyi tem uma ambição pessoal de liderar o país. Mas a sua LND e um ciclo alargado de políticos e ativistas pró-democracia têm de sobreviver e têm de ganhar as próximas eleições. É o objetivo dela neste momento. A LND é totalmente dependente de Aung San Suu Kyi sem qualquer outro político à altura de a substituir. O problema dos rohingya surgiu numa má altura para ela e para o movimento pró-democracia em geral”, defende Akihisa Matsuno.

“A comunidade internacional deveria condenar o Governo da Birmânia, e não Suu Kyi. Também deveria condenar o monge budista radical que instiga a violência (Ashin Wirathu), e não a LND.”

Com a violência anti-rohingya concentrada sobretudo na província de Rakhine, junto à fronteira com o Bangladesh, Akihisa Matsuno acredita que esta comunidade corre o risco de ser totalmente expulsa da província. “Seria uma versão birmanesa de limpeza étnica. Não penso ou não quero pensar que haverá um genocídio, porque tal não poderá acontecer se não for organizado de forma sistemática por determinadas autoridades. Instigar a violência pode contribuir para a morte de dezenas de pessoas, mas sem a intervenção dos militares julgo que não haverá assassínios em massa em grande escala. O regime sabe que seria fatal para si. A comunidade internacional não iria tolerar. Mas o que o regime pode fazer é instigar pessoas comuns para que empurrem os rohingya na direção do mar.”

AUNG SAN SUU KYI NÃO ESTÁ SÓ…

BARACK OBAMA  Com apenas nove meses na Casa Branca, Barack Obama recebeu o Nobel da Paz 2009 para surpresa geral. Aos comentários de que o Nobel era precipitado e tinha motivações políticas sucederam-se críticas à atuação do próprio laureado: a coberto da guerra contra o terrorismo internacional, Obama mandou bombardear no Iraque, Afeganistão, Líbia, Paquistão e Iémen, nestes dois últimos casos com aviões não tripulados (drones)

LIU XIAOBO — Galardoado pela sua luta não violenta em prol dos direitos humanos na China, Liu Xiaobo foi criticado por ter apoiado intervenções militares dos Estados Unidos. “O mundo livre liderado pelos EUA combateu quase todos os regimes que esmagaram os direitos humanos. As grandes guerras em que os EUA se envolveram são todas eticamente defensáveis”, escreveu em 1996, num artigo intitulado “Lições da Guerra Fria”. Viu-lhe ser atribuído o Nobel da Paz de 2010, mas Pequim impediu-o de ir recebe-lo. E para protestar contra esse reconhecimento, instituiu o Prémio Confúcio da Paz, atribuído na mesma altura do Nobel

HENRY KISSINGER — Mais de 40 anos depois do fim da guerra do Vietname, muitos continuam a pedir a prisão do então secretário de Estado norte-americano, pelo seu papel no conflito. Kissinger recebeu o Nobel da Paz em 1973, juntamente com o líder vietnamita Le Duc Tho, o qual declinou o prémio dizendo que os Acordos de Paz de Paris não estavam a ser aplicados na sua plenitude. O Nobel a Kissinger é considerado o mais controverso de sempre

YASSER ARAFAT — Em 1994, o Comité Nobel reconheceu os protagonistas da paz celebrada no Médio Oriente e premiou o líder palestiniano Yasser Arafat e os israelitas Yitzhak Rabin e Shimon Peres. Os críticos de Arafat recordaram então o passado violento da Organização de Libertação da Palestina, que liderava, nomeadamente o período na década de 70 que ficou conhecido como “Setembro Negro”. Kare Kristiansen, membro do Comité Nobel, demitiu-se do cargo em protesto contra a escolha. A Arafat chamou “o terrorista mais proeminente do mundo”

ANWAR SADAT & MENACHEM BEGIN — O Nobel da Paz de 1978 foi entregue ao Presidente egípcio Anwar Sadat e ao primeiro-ministro israelita Menachem Begin. Através do Acordo de Camp David, ambos celebraram a paz entre os respetivos países, que dura até hoje. Mas no passado, os dois tinham-se destacado na guerra contra o colonizador britânico. Em 2006, um livro do jornalista alemão Henning Sietz defendeu que Begin participou, em 1952, numa tentativa de assassínio contra o chanceler alemão Konrad Adenauer

HULL CORDELL — Hull Cordell recebeu o Nobel da Paz em 1945 pelo seu contributo para a criação da Organização das Nações Unidas. Cordell tinha sido secretário de Estado do Presidente Franklin D. Roosevelt e protagonista da polémica à volta do St. Louis, uma embarcação que transportava cerca de 950 judeus, em fuga aos horrores do regime nazi, e que em 1939 se acercou do Estreito da Florida para atracar nos EUA. Cordell defendeu junto de Roosevelt a recusa da entrada, posição que prevaleceu, e o St. Louis viu-se forçado a regressar à Europa: um quarto dos seus passageiros morreu nas câmaras de gás

Artigo publicado no Expresso Online, a 1 de junho de 2015. Pode ser consultado aqui e aqui