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Lula em Matosinhos: “O Brasil está de volta. É por isso que eu estou a tentar parar de falar em guerra e constituir a paz”

O Brasil é incomparavelmente maior e mais populoso do que Portugal, mas tem sido maior o investimento português no Brasil do que vice-versa. Passado o apagão dos anos de Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto, Lula da Silva e António Costa querem dar gás à relação comercial bilateral e marcaram presença num fórum empresarial luso-brasileiro, em Matosinhos. “O Brasil está de volta para ser protagonista internacional. Por isso, estou a tentar parar de falar em guerra e constituir a paz”, disse Lula. Costa acrescentou: “Agora que voltou, não vamos nunca mais deixá-lo sair”

Lula da Silva, Presidente do Brasil, no CEIIA, em Matosinhos RICARDO STUCKER

“Você deve ter uns dois anos e pouco de mandato ainda. Podemos estabelecer uma meta: o que nós queremos que aconteça entre Brasil e Portugal? A gente pode conseguir isso. Na política você tem de estabelecer a meta, ter um projeto, não pode ficar governando conforme o vento. Você determina estrategicamente aquilo que você quer que aconteça.”

Ao quarto dia de estadia em Portugal, o Presidente do Brasil deslocou-se ao norte do país para assinalar a abertura do Fórum Empresarial Portugal-Brasil, em Matosinhos, e desafiar o primeiro-ministro português, António Costa, ao estabelecimento de metas bilaterais.

“O Brasil está preparado para voltar a ser um país grande, importante e atraente. E o Brasil quer construir políticas de parcerias”, disse Luís Inácio Lula da Silva. “Não queremos relações hegemónicas com ninguém. Não é porque nós somos grandes que nós temos de ter hegemonia”, sossegou o chefe de Estado brasileiro. “Queremos construir parcerias com as empresas portuguesas e queremos que os empresários portugueses construam parcerias com as nossas empresas.”

A escutá-lo, no Centro de Engenharia e Desenvolvimento de Produto (Ceiia), estavam mais de 120 empresários portugueses e brasileiros – das áreas da energia, mobilidade, tecnologia, inovação e saúde –, os protagonistas do Fórum Empresarial Portugal-Brasil.

Costa enumera os trunfos portugueses

António Costa aceitou o desafio, admitiu que o crescimento na relação comercial bilateral tem estado “muito aquém do seu enorme potencial” e acenou com trunfos que a podem potenciar.

Ao nível da transição digital, “Portugal e o Brasil são os pontos de amarração do novo cabo de fibra ótica que liga todo a América Latina ao continente europeu, parte de Fortaleza e chega a Sines”, disse o primeiro-ministro. “É a nova ponte física que existe de ligação entre os dois continentes através dos nossos países.”

Relativamente à transição energética, “Portugal tem estado, desde há 15 anos, na vanguarda”, disse Costa. “58% da eletricidade que hoje consumimos tem origem nas energias renováveis e temos a meta que, daqui a quatro anos, 80% da eletricidade que consumimos tem origem nas energias renováveis.”

Costa não poupou nos argumentos e destacou mais quatro fatores potenciadores da relação:

  • o dinamismo bilateral ao nível do empreendedorismo, recordando que este ano, pela primeira vez, a Web Summit vai realizar-se também no Rio de Janeiro;
  • “um regime bom para acolher investimento e inovação”, nomeadamente a nível fiscal e de autorização de residência;
  • a qualificação dos recursos humanos portugueses, referindo que Portugal tem a terceira taxa de recém-graduados em engenharia da UE, atrás da Áustria e Alemanha.
  • o papel de Portugal como “verdadeiro ponta de lança”, disse Costa, na defesa da conclusão do acordo de comércio entre a União Europeia e o Mercosul, uma organização intergovernamental regional fundada em 1991 com cinco países membros (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela) e outros sete associados.

Após o apagão que significou a presidência de Jair Bolsonaro relativamente à relação entre Portugal e o Brasil, a estratégia de Lula da Silva de relançamento do diálogo passa pelo impulso da economia e do comércio.

“Sempre se tratou Portugal como um país pequeno”, admitiu Lula da Silva. “Portugal era a entrada do Brasil para a Europa, para a Alemanha ou França. Nada melhor do que estabelecer uma relação com Portugal e, a partir daqui, produzirmos juntos e expor os produtos para outros países europeus. É muito mais fácil.”

Relação é hoje como há 12 anos

A deslocação de Lula da Silva a Portugal, ao fim de três meses de governo, é a quarta ao estrangeiro após a reeleição — após Argentina, Estados Unidos e China — e a primeira à Europa. “Agora que o Brasil voltou, não vamos nunca mais deixar o Brasil sair”, afirmou António Costa.

Com raízes familiares na zona de Aveiro, como fez questão de partilhar, Jorge Viana, presidente da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (APEX), realçou que, hoje, “o fluxo comercial entre Portugal e Brasil é muito parecido com o que tínhamos há 12 anos”, à época da primeira vez de Lula no Palácio do Planalto. “Ou seja, deixamos de crescer, estagnamos”.

Para se perceber o quanto falta fazer entre os dois países, os números falam por si. Apesar do Brasil ser incomparavelmente maior e mais populoso do que Portugal, tem sido maior o investimento dos portugueses no Brasil do que de empresários brasileiros em Portugal. Jorge Viana afirmou que “em 2022, o fluxo comercial atingiu os 5300 milhões de dólares. Houve um crescimento, muito vinculado à exportação de petróleo, não de produtos manufaturados que geram emprego de parte a parte”.

O fluxo de investimentos de Portugal no Brasil é ainda maior: em 2021, “somaram 11.900 milhões de dólares acumulados, mas já alcançaram a marca de 13 mil milhões na época do Governo do Presidente Lula”, disse Jorge Viana. “Há a expectativa de que voltemos a ter um crescimento exponencial do fluxo de investimentos.”

Em Matosinhos, as partes deram um primeiro passo através da assinatura da renovação do protocolo de entendimento entre a APEX e a congénere portuguesa, Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP).

KC-390, uma face visível da cooperação

O Brasil é um dos 10 maiores investidores em Portugal, o segundo maior fora da União Europeia, “muito aquém do enorme potencial de investimento que tem”, registou Costa. Para Portugal, “o Brasil figura no terceiro lugar do investimento direto no exterior, mas somos somente o 18º investidor no Brasil. Ninguém tem dúvidas do potencial do Brasil e da dimensão de Portugal, mas, francamente, 18º não é a nossa posição. Temos de subir”, desafiou o governante português.

O regresso de Lula da Silva a Lisboa decorreu também sob o signo da cooperação Portugal-Brasil. O chefe de Estado brasileiro viajou a bordo de uma aeronave KC-390, o maior projeto de engenharia desenvolvido entre os dois países.

Esta aeronave resulta de 12 anos de trabalho conjunto entre o Ceiia – nasceu no período em que Lula era Presidente –, as OGMA – Indústria Aeronáutica de Portugal, a Força Aérea Portuguesa e a Embraer. Produzido por esta empresa brasileira, o Ceiia contribuiu com o desenvolvimento de dois terços da estrutura da aeronave.

A despedida de Matosinhos não se fez sem que antes Lula da Silva aflorasse, ainda que indiretamente, o tema que o tem perseguido na sua visita a Portugal. “O Brasil está de volta, e está de volta para ser protagonista internacional. É por isso que eu me estou dedicando em tentar parar de falar em guerra e constituir a paz.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de abril de 2023. Pode ser consultado aqui

Indígenas são prioridade no plano de vacinação contra a covid-19, mas a maioria fica de fora

O Governo brasileiro incluiu os povos indígenas no grupo prioritário de vacinação contra a covid-19, mas excluiu os que vivem em zonas urbanas. “Esses povos são os mais vulneráveis do planeta. O contacto com o vírus pode significar o extermínio de todo um grupo”, alerta ao Expresso uma ativista brasileira da organização Survival International. A vacinação é apenas o último capítulo de um rol de atitudes negligentes de Jair Bolsonaro em relação aos índios brasileiros. Há quatro dias, dois chefes tribais denunciaram o Presidente junto do Tribunal de Haia por crimes contra a Humanidade

Margaret, Raia, Vanda. Estas três mulheres, a quem, sem as conhecermos, conseguimos com facilidade atribuir vidas contrastantes, foram notícia num passado recente por se terem tornado rostos de esperança da cura para a covid-19.

Margaret Keenan, britânica de 90 anos, foi a primeira pessoa a ser vacinada em todo o mundo. Raia Alkabasi, nascida no Iraque, foi a primeira pessoa refugiada a ser vacinada na Jordânia. Mais recentemente, Vanda Ortega tornou-se a primeira pessoa indígena a ser imunizada no Brasil.

Esta enfermeira de 33 anos, da tribo Witoto, vive no Parque das Tribos, bairro da cidade de Manaus (capital do estado do Amazonas), que enfrenta o colapso do sistema de saúde por conta da pandemia e onde, recentemente, morreram pacientes por falta de oxigénio.

O Parque das Tribos é casa para cerca de 2500 indígenas de mais de 30 etnias. Mas a sorte de Vanda não é extensível ao resto da sua comunidade, que não sabe ainda quando será imunizada. Os povos indígenas foram incluídos no grupo prioritário da primeira fase do plano nacional de vacinação, mas a maioria deles é exceção.

“Não há surpresa quanto à prioridade da vacinação para os indígenas. Em campanhas de vacinação anteriores, de prevenção de outras doenças, os indígenas foram também grupos prioritários. Isso ocorre porque são um grupo que possui uma imunidade mais baixa e são socialmente vulneráveis”, explica ao Expresso Priscilla Schwarzenholz, da organização Survival International Brasil.

Porém, “a prioridade foi dada apenas aos indígenas que vivem em aldeias, excluindo os que vivem nas cidades”, como os moradores do Parque das Tribos. Entre os beneficiários estão milhares de membros da tribo Warao, oriunda da zona do delta do rio Orinoco, na Venezuela, que vive refugiada no Brasil desde o colapso económico do país, em 2018.

A 14 de janeiro, ao anunciar o início do plano de vacinação da população brasileira, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, informou que entre os grupos prioritários estão 410.348 “indígenas aldeados”. Isto corresponde a menos de metade da população indígena apurada no censo de 2010.

CENSO DE 2010

896.917
pessoas pertencem a povos indígenas

305
povos indígenas, pelo menos, existem no Brasil

A exclusão de parte significativa da população indígena é incompreensível à luz dos números da pandemia, que comprovam a vulnerabilidade das tribos. “Os dados de infeção e óbitos de indígenas pela covid-19 mostram que ambas as taxas superam a média nacional”, diz a ativista brasileira. “Estima-se que, atualmente, a mortalidade entre os indígenas seja 16% superior à da média da população brasileira.”

Até esta terça-feira, a APIB tinha contabilizados:

  • 936 indígenas mortos pela covid-19. O povo Xavante é o que regista mais óbitos
  • 46.834 casos de infeção entre indígenas
  • 161 tribos atingidas em todo o país

“Os indígenas da região amazónica são cinco vezes mais atingidos pela covid-19 do que o resto do Brasil”, particulariza Priscilla Schwarzenholz. “Isso é muito preocupante, pois significa que [a pandemia] está presente no território com o maior número de povos indígenas isolados do mundo. Esses povos são os mais vulneráveis do planeta. O contacto com o vírus pode significar o extermínio de todo um grupo.”

As tribos indígenas vivem exclusivamente do que a natureza lhes dá. Guardiãs das florestas, são botânicos e zoólogos de excelência. Desenvolvem os seus próprios medicamentos e métodos de cura a partir de plantas e animais, e são autossuficientes para tratar as doenças das florestas — mas não as doenças que decorrem do contacto com o exterior, como sarampo, gripe, malária, febre amarela ou tuberculose.

Para controlar estas maleitas, as vacinas têm sido fundamentais, como agora acontece em relação à covid-19. Mas como em qualquer sociedade desenvolvida, também entre os indígenas há resistência à toma da vacina, pois são vulneráveis à propagação de mentiras e boatos.

Na reserva guarani Te’yikue, no estado de Mato Grosso do Sul, acredita-se que a doença surge de feitiços e “espíritos maus” e que quem for vacinado virará vampiro. Mensagens de WhatsApp dizem que os índios são um grupo prioritário para funcionarem como cobaias e que a vacina provoca cancro e altera o ADN das pessoas.

“Há também denúncias feitas por indígenas de que missionários estão a promover discursos antivacina em aldeias pelo Brasil”, alerta a ativista da Survival International. Relatos de que os religiosos se referem à vacina como a “marca da besta” e ao que está na seringa como “chip líquido”.

Sexta-feira passada, a APIB lançou a campanha “Vacina, Parente!” para exigir ao Governo federal a imunização de toda a população indígena e combater a desinformação. “Parente” é a expressão usada nas tribos para denominar indígenas de todas as etnias e diferenciá-los dos não-índios.

Jair Bolsonaro, que já foi infetado, é um dos principais porta-vozes da atitude antivacinas no Brasil. O Presidente brasileiro já disse não ter intenção de ser vacinado e alertou para efeitos colaterais em termos dignos de um filme de ficção.

“Se você virar um jacaré, é problema seu. Se você se transformar em Super-Homem, se crescer barba em alguma mulher aí ou algum homem começar a falar fino, eles não têm nada com isso. E, o que é pior, mexem no sistema imunológico das pessoas.”

Jair Bolsonaro, Presidente do Brasil

A forma como o Presidente desincentiva à toma da vacina é apenas a última das manifestações negligentes de Bolsonaro em relação aos povos indígenas. “Desde que Bolsonaro ganhou as eleições, o número de invasões e ataques a comunidades indígenas aumentou drasticamente”, refere Priscilla Schwarzenholz. “Isso é resultado do seu discurso racista e das políticas anti-indígenas”, que a ativista enumera:

  1. Promoção de um projeto de lei para abrir territórios indígenas à mineração em grande escala.
  2. Restrição das ações de órgãos governamentais essenciais, como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), responsáveis pela proteção e defesa das terras e vidas dos povos indígenas.
  3. Apoio à proposta do “Marco Temporal”, ação no Supremo Tribunal Federal que defende que os indígenas só possam reivindicar terras onde já estavam no dia 5 de outubro de 1988 (data da assinatura da Constituição do Brasil). “Se for aprovado, centenas de territórios indígenas podem ser afetados e dezenas de povos isolados estariam em risco”, comenta a ativista.

“O Governo Bolsonaro também está incentivando à disseminação da covid-19 em territórios indígenas, deixando de protegê-los contra invasores e bloqueando planos de proteção para o combate do vírus nas aldeias”, acrescenta.

“Até ao momento, nenhum plano federal de combate ao coronavírus nas comunidades indígenas foi colocado em prática. Não se trata de omissão, mas de uma clara intencionalidade de não combater a epidemia, demonstrando nitidamente o plano genocida desse governo contra os povos indígenas do Brasil.”

Este histórico do Presidente brasileiro, que leva apenas dois anos no poder, levou dois “caciques” (chefes índios) a denunciar Bolsonaro, sexta-feira passada, diante do Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes contra a Humanidade.

Raoni Metuktire e Almir Suruí responsabilizam Bolsonaro pelo avanço do desmatamento e das queimadas na região da Amazónia, pela transferência forçada de comunidades, por ataques às populações indígenas (alguns dos quais resultam em mortes) e pelo desmantelamento de agências governamentais, como o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

A queixa pretende também que o TPI reconheça o crime de ecocídio — destruição do meio ambiente a um nível tal que comprometa a vida humana — em face das consequências ambientais da política de Bolsonaro.

Em entrevista à Agência Pública, o advogado que defende os caciques, o francês William Bourdon (que já defendeu Julian Assange, Edward Snowden e agora Rui Pinto), disse haver documentação exaustiva que prova que Bolsonaro “anunciou, premeditou e implementou uma política sistemática de destruição” total da Amazónia.

“É muito mais do que assédio, é muito mais do que uma política cínica de desprezo, é uma política de destruição, pela interação de muitos crimes. E é a interação de todos esses crimes que caracterizam os crimes contra a Humanidade.”

(FOTO Jovem indígena do povo Awá, o mais ameaçado do mundo SURVIVAL INTERNATIONAL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Bolsonaro levou uma indígena às Nações Unidas. A encenação correu mal

Jair Bolsonaro levou uma apoiante sua indígena à Assembleia Geral das Nações Unidas, onde discursou esta terça-feira. O Presidente do Brasil quis calar o mundo que o acusa de negligência ambiental provando que os nativos da Amazónia estão com ele. A reação revoltada dos indígenas brasileiros ecoou em Nova Iorque

Ysani Kalapalo ao lado de Jair Bolsonaro, durante a viagem às Nações Unidas INSTAGRAM YSANI KALAPALO

O Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, cumpriu esta terça-feira uma tradição com mais de 60 anos e realizou o discurso de abertura da 74ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque. “Obrigado a Deus pela minha vida, pela missão de presidir o Brasil e pela oportunidade de restabelecer a verdade”, assim começou Bolsonaro um discurso de meia hora, grande parte dedicado à questão da Amazónia.

Sentada na plateia, integrada na delegação brasileira, esteve Ysani Kalapalo, uma indígena de 28 anos que Bolsonaro levou na comitiva. Habitante no Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, Ysani — que no Twitter se descreve como “a indígena do século 21”, “apresentadora” e “YouTuber” — é uma crítica da retórica catastrofista que se seguiu aos grandes incêndios na Amazónia que, diz ela, decorre de notícias falsas.

Em Nova Iorque, Bolsonaro leu uma carta aberta de apoio à presença da indígena na sua comitiva assinada pelo “Grupo dos Agricultores Indígenas do Brasil”. Com ela, procurou responder a uma carta de repúdio divulgada horas antes onde os caciques (chefes) dos 16 povos do Território Indígena do Xingu dizem: “O governo brasileiro ofende as lideranças indígenas do Xingu e do Brasil ao dar destaque a uma indígena que vem atuando constantemente nas redes sociais com o objetivo único de ofender e desmoralizar as lideranças e o movimento indígena do Brasil”.

E acrescentam: “O governo brasileiro não se contentando com os ataques aos povos indígenas do Brasil, agora quer legitimar sua política anti-indígena usando uma figura indígena simpatizante de suas ideologias radicais com a intenção de convencer a comunidade internacional de sua política colonialista e etnocida.”

Para Bolsonaro, a indígena era o melhor trunfo que poderia jogar diante do mundo para responder a quem o acusa de ser um governante negligente em relação ao ‘pulmão da Terra’ — ideia que Bolsonaro, na ONU, disse ser “um equívoco”, tal como dizer que a Amazónia é património da Humanidade é “uma falácia”. Indiferente às polémicas internas, Ysani foi, para Bolsonaro, a prova de que é apoiado pelas vítimas imediatas da destruição da Amazónia.

No Brasil, 14% do território está demarcado como terra indígena, há 225 povos indígenas identificados e referências a 70 tribos isoladas. Vivem do que a floresta lhes dá: alimentos e medicamentos, materiais para construir casas, arcos e flechas, cestas e redes. Essa autossuficiência faz deles botânicos e zoólogos de excelência — os melhores cuidadores que a Amazónia pode ter.

“Nossos nativos são seres humanos”, contrapôs Bolsonaro, que “querem e merecem usufruir dos mesmos direitos que todos nós”. “Infelizmente, algumas pessoas de dentro e fora do Brasil, apoiadas por organizações não governamentais, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas.”

Uma das organizações que está na mira de Bolsonaro é a Survival International, considerada o movimento global de defesa dos povos indígenas. “Quando a floresta é destruída, o acesso aos territórios indígenas torna-se mais rápido e mais fácil, o que incentiva invasores ilegais: grileiros, mineiros, agricultores”, explica ao Expresso Fiona Watson, ativista da organização.

“Alguns incêndios começam deliberadamente, ateados por grileiros e colonos que querem roubar terras indígenas para vende-las ou ocupa-las ilegalmente. Muitos sentem-se encorajados pelo discurso de ódio do Presidente Bolsonaro e pelo seu apoio ao sector do agronegócio, interessado na exploração de terras indígenas.”

No estado brasileiro do Maranhão (nordeste), um grupo de Guajajaras — um dos povos indígenas mais numerosos no Brasil — realiza patrulhas na floresta. Conhecidos como “Guardiões”, estão atentos às visitas indesejadas de madeireiros e fazendeiros. “Eles são forçados a defender os seus territórios das máfias madeireiras e dos colonos que as invadem impunemente”, denuncia Fiona Watson. “É um trabalho perigoso, pois esses invasores estão fortemente armados.”

Data de 23 de julho o último assassínio conhecido de um indígena. O sexagenário Emyra Waiãpi, um dos líderes do povo Waiãpi, foi encontrado morto pela mulher junto a um rio, na região do Amapá. O cadáver tinha os olhos perfurados e o órgão genital decepado. Numa posição excecional na cultura waiãpi, os familiares autorizaram a exumação do cadáver para ajudar as investigações. Antecipando-se a conclusões, acusaram garimpeiros da morte de Emyra.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 24 de setembro de 2019. Pode ser consultado aqui

Bolsonaro não é Trump. É pior?

Elegem a mentira como arma política e valorizam mais a perceção que têm do mundo do que os factos. Donald Trump e Jair Bolsonaro parecem alunos da mesma escola. O Expresso ouviu três estudiosos da governação do norte-americano e confrontou-os com o fenómeno Bolsonaro. Há mais diferenças do que semelhanças, concordam. Mas as frases de ambos são parecidas

Jair Bolsonaro, o lambe-botas de Donald Trump CARLOS LATUFF

Exploração do ódio e de notícias falsas (“fake news”) para fins eleitorais, narrativa anti-media e anti-sistema, discurso intolerante, populista e demagógico. As semelhanças entre Donald Trump e Jair Bolsonaro são óbvias, mas há mais diferenças do que, à primeira vista, se pode pensar.

“Trump é um extremista sonso: insulta, depois diz que não insultou e culpa os media por terem deturpado o que disse de forma inequívoca”, explica Germano Almeida, autor do livro “Isto não é bem um Presidente dos EUA” (Prime Books), que chegará às bancas na segunda semana de novembro. “Bolsonaro é pior: mais gráfico na violência, mais assumido na rejeição do sistema e das regras democráticas, mais demagógico no populismo, ainda mais primário no discurso.”

Recentemente, numa entrevista à BBC Brasil, Steve Bannon, que liderou a campanha de Donald Trump e foi o grande mentor do discurso nacionalista do magnata, não poupou nos adjetivos a Bolsonaro: “líder”, “brilhante”, “sofisticado”. “Muito parecido” com Trump.

Durante meses, no Brasil, especulou-se sobre se Bannon iria integrar a equipa de Bolsonaro. Para esse ruído muito contribuiu um tweet de um dos filhos do ex-militar, após um encontro em Nova Iorque. “Foi um prazer conhecer Steve Bannon, estratega na campanha presidencial de Donald Trump. Tivemos uma ótima conversa e partilhamos a mesma visão do mundo. Ele afirmou-se um entusiasta da campanha de Bolsonaro e ficamos em contacto para unir esforços, especialmente contra o marxismo cultural.”

É o próprio Bolsonaro quem diz ser “uma espécie de discípulo de Donald Trump”, recorda Diana Soller, autora do livro “O método no caos” (Dom Quixote), juntamente com Tiago Moreira de Sá. “Ele é o primeiro a dizer que está a seguir as pisadas de Trump para conquistar a presidência do Brasil. Diz, inclusive, que está disposto a mudar profundamente a política externa brasileira no sentido de uma aliança com os Estados Unidos.”

Aproveitando momentos de fragilidade social nos respetivos países, Trump e Bolsonaro, dois estranhos à política — o segundo um deputado federal desde 1991 sem trabalho digno de nota —, lançaram-se numa escalada do poder, “dizendo aos respetivos povos que vão fazer as mudanças por que eles verdadeiramente anseiam”, diz Diana Soller. “No fundo, dizem às pessoas aquilo que elas querem ouvir”, independentemente da honestidade com que o fazem.

“Trump pintou os EUA muito piores do que, na realidade, eles são. A América não precisa de ser ‘grande outra vez’ porque nunca deixou de o ser. Bolsonaro só precisou de surfar a onda do medo e da raiva, porque, na verdade, a coisa no Brasil ‘está mesmo preta’”, acrescenta Germano Almeida. “Trump assusta porque é Presidente da maior potência do mundo. Mas o sucesso de Bolsonaro é ainda mais assustador e difícil de compreender.”

Eduardo Paz Ferreira, autor do livro “Os anos Trump — O mundo em transe” (Gradiva), recentemente editado, não se alarga nas parecenças entre o chefe de Estado norte-americano e o candidato da extrema-direita brasileira. “Muitas táticas eleitorais, das ‘fake news’ à manipulação das redes sociais, foram comuns, mas eu não levaria muito mais longe as semelhanças.”

E explica porquê: “O Brasil [uma democracia desde 1985] é um país castigado pela mais profunda miséria, onde os coronéis foram sempre o rosto da democracia ou então os generais nos tempos da ditadura. Nos Estados Unidos [uma democracia desde a Declaração da Independência, em 1776] há uma tradição democrática, que passa por um período especialmente mau, mas que é difícil admitir que possa ser totalmente extinta.”

A consolidação dos valores democráticos num e noutro país pesam no perfil dos dois líderes. “Trump, apesar de ser um conservador de uma espécie populista muito diferente que responde a um eleitorado que costumava ter pouca expressão, não deixa de ser um democrata”, constata Diana Soller. “Bolsonaro, por várias vezes, disse sentir uma grande nostalgia da ditadura militar. Tendo em conta a tradição da América Latina, não será surpreendente se Bolsonaro tentar transformar as instituições brasileiras de forma a ter cada vez mais poder. E isto Trump não tem tentado fazer.”

“A vida dos ditadores está muito facilitada”, conclui Eduardo Paz Ferreira. “Veja-se o exemplo de Rodrigo Duterte, nas Filipinas, e outros amigos do Presidente norte-americano”. O mais recente deles é o norte-coreano Kim Jong-un. Poderá Jair Bolsonaro ser o próximo?

Este domingo, Diogo Freitas do Amaral – fundador do CDS – classificou Jair Bolsonaro com “fascista”, numa entrevista ao Diário de Notícias e à TSF, depois de questionado sobre o que está a passar no Brasil. “Acho que é altura sem excessivo alarmismo, sem excessiva precipitação, de começar a chamar os bois pelos nomes: isto é fascismo. Não lhe chamem populismo, que até pode parecer uma coisa simpática. É extremismo, sim. Extremismo de direita, sim. Logo, é fascismo. São autoritários, elogiam a violência, condenam os direitos das mulheres…” E alertou para os três fatores que podem contribuir para o regresso das ditaduras: debilidade dos governos democráticos, crise económica e medo do comunismo.

“Tive uma conversa muito boa com o novo Presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, que ganhou a sua corrida com uma margem substancial. Concordamos que o Brasil e os Estados Unidos trabalharão proximamente juntos nas áreas do Comércio, Militar e todo o mais! Telefonema excelente, desejei-lhe parabéns!”

O QUE ELES DISSERAM DE…

Apesar das diferenças apontadas pelos especialistas, há frases dos dois candidatos que os aproximam nas opiniões e nas atitudes.

MULHERES

Trump — “Agarra-las pela vagina”, disse quando lhe perguntaram como gosta de lidar com mulheres bonitas.

Bolsonaro — “Não vou estuprar você porque você não merece”, afirmou na Câmara dos Deputados à ex-ministra Maria do Rosário.

IMIGRANTES

Trump — “Por que todas essas pessoas desses países merdosos vêm parar aqui?”

Bolsonaro — “A escória do mundo tá chegando aqui no nosso Brasil como se nós já não tivéssemos problemas demais para resolver.”

ARMAS

Trump — “Não quero armar todos os professores. Quem nunca pegou numa arma não o vai fazer. Podem ser 10 ou 20%.”

Bolsonaro — “Todo o vagabundo tá armado! Só falta o cidadão de bem!”

IMPRENSA

Trump  “Vocês são fake news!”, dirigindo-se a um repórter da CNN.

Bolsonaro  “A Folha de S. Paulo é o maior fake news do Brasil. Vocês não terão mais verba publicitária do Governo.”

Artigo publicado no Expresso Online, a 28 de outubro de 2018. Pode ser consultado aqui

“Mexeu com Marielle, atiçou o formigueiro”

Brasileiros e portugueses a uma só voz, em frente ao Consulado do Brasil no Porto. Mais do que uma manifestação de solidariedade para com Marielle Franco, a vereadora recentemente assassinada, foram apontadas soluções para o Brasil: “Não tem saída, só a educação salva”

“Alguém tem fita cola?” Terminada a manifestação “Marielle, Presente!”, em frente ao Consulado-Geral do Brasil, no Porto, houve quem sugerisse deixar os cartazes no local do protesto para que as mensagens chegassem a Brasília. Eram cerca das oito da noite de segunda-feira e a porta de entrada do edifício já estava encerrada. Colar os cartazes ao vidro parecia uma opção razoável, até se perceber que, por baixo da porta, havia uma ranhura suficiente larga para enfiar os cartazes. O chão da entrada do prédio rapidamente ficou coberto com algumas inquietações que assolam os brasileiros da Invicta: “Quem matou Marielle?” “Até quando vamos perguntar ‘até quando’?”

Para trás, ficava hora e meia de palavras de ordem, das quais a mais repetida foi “Marielle”, a vereadora do município do Rio de Janeiro assassinada a tiro, na semana passada, quando seguia de carro após um encontro com mulheres negras.

“Este caso diz-nos que, no Brasil atual, muito se faz mas nada se faz”, desabafa Sílvia Aline Ribeiro, uma baiana de 32 anos, a viver no Porto há dois anos e meio. “Ao invés de se investir em educação, e outras prioridades sociais, está-se a colocar o exército nas ruas para atacar os bandidos, só que eles não sabem quem é e quem não é bandido. Então, se você é negro ou pobre, você é bandido.”

Sílvia vai interrompendo a conversa para unir a sua voz às palavras de ordem que se vão sucedendo. “Há muitos assassínios, muita gente a morrer injustamente e a Marielle estava a investigar essas situações.”

Mulher, negra, lésbica e favelada

Marielle Franco, de 38 anos, investigava a violência policial nas ruas do Rio de Janeiro. A sua execução “revela o preconceito, o racismo e a dificuldade que o povo tem na luta pelos direitos humanos”, defende Pedro Valle, de 23 anos, estudante de Gestão de Património, no Porto.

“Há muita coisa que precisa de ser mudada, principalmente em relação à mulher: colocar a mulher no poder, aceitar a palavra da mulher, das pessoas negras, das pessoas faveladas. Essas pessoas precisam de ser ouvidas. Essa é a maioria dos brasileiros.”

Essa era também a realidade de Marielle – mulher, negra, lésbica, nascida na favela da Maré. A pulso, a ativista fintou um destino que parecia traçado à nascença, aproveitando as políticas de integração. Estudou Sociologia e Ciência Política e conquistou a confiança do povo para desempenhar um cargo público.

“A maioria dos brasileiros não é como os que vivem em Portugal, que têm opções e oportunidades”, continua Pedro. “Essa maioria não está a ser ouvida, precisa de ‘lugar de fala’”, conceito que surgiu, no debate público, como contraponto ao silenciamento da voz de minorias sociais por grupos privilegiados. “O povo negro precisa de ser ouvido, inclusive fora do Brasil.”

É o caso de Raísa Cabral, fisioterapeuta a trabalhar em Portugal há oito meses. “Nós somos a maioria da população”, recorda esta carioca de 26 anos. “Somos os que mais morrem de forma violenta, porque a maioria de nós é marginalizada, desde a escravatura. E isso não evoluiu ao ponto de, hoje, podermos ter uma vida equiparada à de uma pessoa branca. Somos a maioria que está nas favelas, a maioria que estão nas escolas públicas, a maioria que não tem acesso a educação, a saúde e aos direitos básicos…”

O frio que pontuou a chegada da noite na Invicta não desmobilizou as centenas de pessoas que se concentraram em frente ao n.º 20 da Avenida de França, próximo da Rotunda da Boavista. Nas mãos, muitas erguiam pequenos papéis onde, no verso do rosto de Marielle, estava transcrita a letra do “Canto das Três Raças”, de Clara Nunes, tema que fala do povo indígena, dos negros e da luta pela liberdade.

Ao ritmo de um grupo de percussão, que ia marcando o compasso, as mensagens foram ganhando criatividade – “Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem mexeu com Marielle atiçou o formigueiro”.

“Os brasileiros não estão a viver num estado de direito, mas num estado de exceção”, continua Raísa. “Mais do que uma execução, foi deixado um recado: se a gente continuar a falar, eles vão continuar a matar quem se levantar contra o que está a acontecer no nosso governo. Eu acredito que o Brasil tem um governo golpista, o Presidente não foi eleito pelo povo. Isso eles deixaram bem claro.”

A intervenção militar decretada por Michel Temer, que fez o Rio regressar aos tempos da ditadura e colocar o exército nas ruas, até ao fim do ano, para controlar a violência, mereceu muitas vaias. “Não acabou, tem de acabar, eu quero o fim da polícia militar”, gritou-se.

“Eu vivi no Rio de Janeiro a minha vida inteira”, diz Pedro. “Nunca vi tal coisa, é um absurdo, para mim, imaginar que a cidade está a ser tomada por militares. Acredito que isso aconteça por interesses políticos e financeiros, já que antes de isso acontecer nenhuma medida foi tomada. Falaram que não tinha mais jeito, que era preciso ajuda federal, mas não tomaram nenhuma medida antes disso.”

A carioca Raísa concorda. “A priori, os militares nas ruas do Rio não é útil. Eles têm ordem para entrar nas comunidades e agem com violência. Essa não é a melhor medida. A principal medida devia ser a descriminalização das drogas, retirar esse poder aos traficantes.”

“O povo não é bobo!”

Paralelamente à violência gratuita da polícia, os manifestantes criticaram alguma cobertura noticiosa do caso – “Abaixo a Rede Globo! O povo não é bobo!” “A Globo filtra as notícias que são dadas ao povo”, explica Sílvia. “É do interesse só de uma classe branca, que está no poder. Na primeira notícia, a Globo disse que Marielle tinha sido executada. Depois corrigiu a notícia e disse que se tinha tratado de um assalto.”

Mais do que uma demonstração de solidariedade para com Marielle Franco, os brasileiros a viver no norte de Portugal procuraram apontar soluções para alguns dos problemas do Brasil.

“Deveria ser dada mais atenção à classe pobre”, defende Sílvia. “Não tratá-la como bandidos, mas tentar melhorar a desigualdade social para que os negros percebam que podem ter voz e podem ser mais ativos politicamente.”

“Não tem saída, só a educação salva”, concorda Raísa. “Seria positivo um maior investimento na educação, uma diminuição dessa militarização da polícia, uma consciencialização do povo em relação aos seus direitos e deveres.”

Todos esperam que a morte de Marielle não tenha sido em vão e que os protestos que ela inspira continuem e que deles frutifique uma maior consciência cívica. Como se lia num dos cartazes erguidos à porta do Consulado brasileiro: “Não sabiam que eras semente!”

(Foto: Marielle Franco, em agosto de 2016 MÍDIA NINJA / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso Online, a 20 de março de 2018. Pode ser consultado aqui