A insurgência jiadista em Cabo Delgado dura há mais de seis anos. Nos últimos meses, uma descida consistente da quantidade de ataques fazia prever o fim da ameaça e o regresso à normalidade daquela província no norte de Moçambique. “Houve um otimismo talvez um pouco exagerado. Agora, em janeiro, fomos surpreendidos”, alerta o historiador Eric Morier-Genoud, autor de um livro que aborda as origens do problema

A 3 de janeiro passado, ainda o mundo recuperava da folia própria da entrada num novo ano, um duplo ataque suicida na cidade iraniana de Kerman recentrou a Humanidade nas angústias do dia-a-dia. Esses atentados, que provocaram 94 mortos, fizeram temer o alastramento da guerra na Faixa de Gaza a todo o Médio Oriente pelo duro golpe infligido ao Irão.
O banho de sangue em Kerman foi reivindicado pelo autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh, no acrónimo árabe), a organização terrorista que o Irão ajudou a derrotar no Iraque e na Síria e que se julgava quase inativa, após meses de declínio consistente do número de ataques.
No dia seguinte à chacina, o Daesh içou a bandeira da jihad (guerra santa) e, numa mensagem áudio divulgada na Internet, o seu porta-voz, Abu Hudhayfah al-Ansari, anunciou uma nova campanha global de terror jiadista intitulada “Matem-nos onde quer que os encontrem”. Os “soldados” do Daesh foram instados a “procurar alvos fáceis antes dos difíceis, alvos civis antes dos militares” e a “alvejar judeus, cruzados [cristãos] e os seus aliados criminosos em todos os lugares da Terra e sob todos os céus”.
O anúncio teve repercussões nas semanas seguintes, em especial na África Subsariana, onde está ativa uma constelação de grupos armados leais ao Daesh.
Na República Democrática do Congo, no espaço de uma semana, os jiadistas da Província da África Central do Estado Islâmico (ISCAP, na sigla inglesa) atacaram aldeias cristãs e decapitaram 50 pessoas. No nordeste do Mali, o braço Província do Sahel do Estado Islâmico (ISSP), que se movimenta em áreas muçulmanas, atacou forças governamentais e uma milícia tuaregue rival.
No passado fim de semana, na Nigéria, a célula designada Província da África Ocidental do Estado Islâmico (ISWAP) investiu contra uma sede da polícia, no estado de Borno, matando quatro agentes.
“Viagem de pregação”
Uma quarta frente subsariana deste ressurgimento jiadista é Moçambique. A 29 de janeiro, o Daesh anunciou uma “viagem de pregação” pelo norte deste país lusófono, após acusar o Exército moçambicano de realizar “massacres contra muçulmanos” na província de Cabo Delgado, de maioria muçulmana, uma das mais pobres e distanciadas da capital, Maputo.
Os alvos do Daesh são posições de tropas governamentais, postos administrativos e, não raras vezes, as populações civis. Há notícias de mortes violentas, raptos, saques, destruição e invasões de propriedades agrícolas. “Há relatos de mortos, alguns decapitados, e de populações em pânico e em fuga”, partilhou, a 2 de fevereiro, a Fundação Ajuda À Igreja que Sofre, após receber testemunhos de missionários católicos em Cabo Delgado.
“No último trimestre do ano passado, houve pouquíssimos ataques por parte dos rebeldes e começou a desenvolver-se a ideia de que a insurgência estava na reta final. Em janeiro, surgiram muitos ataques contra bases militares do Governo. Foi uma surpresa geral porque, durante três meses, houve uma acalmia e parecia que as coisas estavam a resolver-se. Agora, os ataques estão a intensificar-se”, comenta ao Expresso Eric Morier-Genoud, autor do livro “Towards Jihad? — Muslims and Politics in Postcolonial Mozambique” [A caminho da Jihad? – Muçulmanos e Políticas em Moçambique Pós-Colonial] (2023, não traduzido na língua portuguesa).

Paralelamente às ações armadas, o Daesh “desenvolveu uma campanha mediática muito forte, com declarações e divulgação de fotografias e vídeos dos ataques”, acrescentou o investigador da Universidade Queen’s de Belfast (Irlanda do Norte). “Começou a surgir a impressão de que havia muita coisa a acontecer, mais do que acontecia na realidade.”
O recrudescimento do terrorismo no norte de Moçambique arrasa a esperança de normalização e estabilidade que tinha começado a instalar-se no país. “Houve um otimismo talvez um pouco exagerado. Agora, em janeiro, fomos surpreendidos. Afinal, a acalmia nos combates não foi uma vitória, talvez uma pausa estratégica.”
Esse otimismo foi, em parte, também potenciado pelo anúncio da Total Energies, a gigante francesa do sector da energia, de que planeia retomar o desenvolvimento do seu projeto de exploração de gás natural liquefeito no norte de Moçambique no primeiro trimestre de 2024. A operar no país desde 1991, a Total suspendeu as atividades em Cabo Delgado em abril de 2021 devido à ofensiva jiadista na região.
“Os insurgentes não têm meios para desenvolver este tipo de estruturas [económicas]. Não penso que tenham em mente controlá-las”, avalia o professor Genoud. “Para eles, é mais um meio de fazerem publicidade e dizerem à população que há desigualdade, que as gentes locais não recebem nada enquanto se desenvolvem grandes projetos e que têm de seguir outra lei, que não a do Governo atual, para poderem ser uma sociedade mais justa.”
As preocupações do Presidente
Nas últimas semanas, o Presidente moçambicano tem abordado com grande frequência a situação no norte do país. “O momento não é dos melhores, não porque o nosso trabalho não esteja bem, mas porque em todas as guerras — refiro-me agora ao combate ao terrorismo — há momentos altos e momentos baixos, mas também há momentos em que o inimigo se reestrutura, e é o que está a acontecer agora. Estão a movimentar-se muito”, disse Filipe Nyusi, a 26 de janeiro, citado pelo jornal moçambicano “O País”.
“O modus operandi dos terroristas nos últimos dias tem exigido fortes medidas de vigilância”, afirmou o chefe de Estado, a 2 de fevereiro, durante uma receção ao corpo diplomático, no Palácio da Ponta Vermelha, em Maputo.
“Queremos apelar à nossa resiliência coletiva, para suster as investidas dos terroristas. Aos jovens, apelamos para não aderirem ao recrutamento e a reportarem qualquer movimento estranho que possa condicionar a segurança das comunidades”, disse no dia seguinte, numa intervenção por ocasião do Dia dos Heróis Moçambicanos.
A insurgência jiadista em Cabo Delgado fez-se anunciar ao mundo a 5 de outubro de 2017, quando homens munidos com facas, machetes e armas de fogo atacaram três postos da polícia na cidade de Mocímboa da Praia, aos gritos de “Allahu Akbar” (Deus é Grande).
Este episódio é descrito nas suas múltiplas vertentes — quem o fez, como e com que objetivo — no livro “Towards Jihad? — Muslims and Politics in Postcolonial Mozambique”, uma investigação histórica sobre a relação entre “a mesquita e o Estado” desde a independência de Moçambique, em 1975, e que aborda também as origens da ameaça jiadista.
Publicada em 2023, a obra procura responder à pergunta: será que as opções políticas relativamente aos muçulmanos moçambicanos — primeiro adotadas pelo poder colonial português, de matriz católica, e depois pela Frelimo, o partido de orientação marxista-leninista que sempre governou o país — empurraram a comunidade na direção da violência?
“A jihad não é um desenvolvimento natural do Islão em Moçambique”, responde Morier-Genoud. “A insurgência podia muito bem não ter acontecido, não há nenhuma inevitabilidade em relação ao que aconteceu. Nesse sentido, penso que o processo pode inverter-se até à renúncia da violência. A esmagadora maioria dos muçulmanos de Moçambique não quer a sharia total nem um califado, nem aceita a violência como forma de atingir esses objetivos.”
“A ideia de que houve uma radicalização por parte dos muçulmanos moçambicanos é errada”
Mais de seis anos após o seu início, a rebelião jiadista já provocou quase 5000 mortos e um milhão de deslocados. Hoje, os terroristas atuam ao estilo de uma guerrilha clássica, com uma circulação de combatentes extremistas através da fronteira com a Tanzânia. Porém, refere o especialista, “a base dos insurgentes está em Moçambique e a maioria da liderança e dos combatentes são moçambicanos”.
Desde julho de 2021, uma força militar africana — formada por efetivos de oito países da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC), que compõem a Missão da SADC em Moçambique (SAMIM), e um contingente de cerca de 3000 soldados do Ruanda — apoia Moçambique no “combate ao terrorismo e aos atos de extremismo violento” em Cabo Delgado, como consta do seu mandato.
“Essa intervenção regional teve um impacto muito grande”, comenta o historiador. “Conseguiu-se reduzir o número de combatentes em 90%, comparativamente aos que existiam em finais de 2020. Também foi possível reduzir a área de atuação dos insurgentes. Nesse sentido, é um sucesso. O problema é o passo seguinte… já foi anunciado que a SADC vai retirar-se de Moçambique a partir de julho. Há preocupações que foram expressas, inclusive, pelo Presidente da República. É uma transição e, como em qualquer transição, há riscos.”
A 14 de dezembro passado, o Parlamento moçambicano aprovou o aumento do serviço militar obrigatório de dois para cinco anos, medida que configura uma resposta direta à necessidade de reforçar a capacidade de combate do país. A mobilização de reservistas é outra possibilidade sugerida pelo chefe de Estado para fazer face à retirada dos militares da SAMIM, a partir de julho próximo.
Em paralelo, na sequência de um pedido de ajuda dirigido por Maputo à União Europeia, a 3 de novembro de 2021, foi lançada a Missão de Formação Militar da UE (EUTM, sigla inglesa), visando o treino de tropas especiais moçambicanas no combate ao terrorismo. Portugal participa com militares e assegura o comando da força.
Ao contrário da Missão da SADC, as tropas ruandesas irão continuar em Moçambique. Além da perseguição aos extremistas, estes efetivos têm adotado uma postura de grande proximidade às populações. Protegem cidades, reabrem estradas e participam na construção de obras públicas, como poços.
Este patrulhamento de proximidade, que possibilitou o regresso a casa de populações que tinham fugido dos ataques, granjeou-lhes prestígio e aprovação junto das populações. “Os ruandeses parecem ser as tropas mais eficientes”, avalia Morier-Genoud. “Falam suaíli [língua predominante no extremo norte de Moçambique], têm ótimas relações com a população e tiveram muito sucesso nas zonas onde estão.”
Califado perdido
Em 2019, o Daesh reconheceu oficialmente os Al-Shabaab moçambicanos (A Juventude, em árabe), a seita que está na origem da insurgência em Cabo Delgado, como uma das suas províncias — o Estado Islâmico de Moçambique (ISM). O juramento de fidelidade dos jiadistas moçambicanos contribuiu para internacionalizar o problema, numa altura em que o Daesh já perdera o califado que chegou a controlar em um terço da Síria e 40% do Iraque (2014-17).
“Eles querem depor o Governo tal como existe e estabelecer um Governo que siga unicamente a sharia [lei islâmica]. Uma vez que agora estão ligados ao Estado Islâmico, há todo um discurso relativo ao estabelecimento de uma província do califado mundial na zona de Cabo Delgado. Eles pedem à população que siga o Alcorão e que não interaja com o governo secular, militares e polícia.”
A presença jiadista em Moçambique distorce a imagem da comunidade muçulmana no país, aproximadamente 20% da população total de quase 35 milhões de pessoas. “A esmagadora maioria dos muçulmanos está satisfeita com a liberdade religiosa que existe no país e com a forma como o Governo atua”, conclui Eric Morier-Genoud. “O que existe é um grupo muito pequeno — falamos de dezenas ou centenas de pessoas — que se radicalizou e quer criar uma sociedade islâmica à margem da sociedade existente.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de fevereiro de 2024, e no “Expresso”, a 16 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui
