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Kamala Harris, a possível candidata que terá ainda de conquistar os Estados Unidos

A resiliência do Partido Democrata nas midterms, eleições que se projetavam como uma “onda vermelha” favorável aos republicanos, relançou o interesse à volta da corrida democrata às presidenciais de 2024. Com Joe Biden prestes a fazer 80 anos, o foco volta-se para Kamala Harris, a sua vice, que partilha com o Presidente taxas de aprovação… negativas

Caricatura da vice-presidente dos Estados Unidos Kamala Harris GAGE SKIDMORE

“Era uma vez dois irmãos. Um deles correu na direção do mar; o outro foi eleito vice-presidente dos Estados Unidos. E nunca mais se ouviu falar de nenhum deles.” Esta curta história é uma piada atribuída ao norte-americano Thomas Marshall, que a contava para ilustrar a insignificância do cargo que desempenhou entre 1913 e 1921 — a vice-presidência dos Estados Unidos. Governava então Woodrow Wilson.

Com igual humor, Nelson Rockefeller, o n.º 2 de Gerald Ford entre 1974 e 1977, disse sentir-se em permanente estado de prontidão para acudir a “funerais e terramotos”. Já Benjamin Franklin, governador da Pensilvânia entre 1785 e 1788, sugeriu que se chamasse aos titulares do cargo “sua supérflua excelência”.

Nos Estados Unidos, a vice-presidência está longe de ser o posto mais cobiçado para quem ambiciona fazer carreira na política. “O cargo é muito ingrato e arriscado”, explica ao Expresso Germano Almeida, especialista em política norte-americana e autor de quatro livros sobre Presidentes dos EUA. “Não tem poder real e a sua função é, por definição, ‘negativa’. Ou seja, só se tornará importante se algo de errado e inesperado ocorrer com o Presidente.”

A anunciada presença da atual vice-presidente, Kamala Harris, em representação de Joe Biden, na tomada de posse de Lula da Silva como Presidente do Brasil, a 1 de janeiro de 2023, é exemplo da subalternização do cargo em relação ao inquilino da Casa Branca.

Os casos de JFK e Nixon

Além das funções de representação, e do voto de qualidade no Senado conferido pela Constituição — crucial num cenário em que haja empate a 50 senadores entre os dois partidos, como sucedeu desde 2020 e pode continuar até 2024 —, espera-se de um vice-presidente que se mantenha ‘em forma’ para a eventualidade de o Presidente morrer ou renunciar. Aconteceu, e tempos recentes, com Lyndon Johnson após o assassínio de John F. Kennedy, em 1963, e com Gerald Ford após a demissão de Richard Nixon, na sequência do escândalo Watergate, em 1973.

Em 1945, quando ascendeu à presidência após a morte de Franklin D. Roosevelt, Harry Truman teve de tomar decisões exigidas a um chefe de Estado experiente. “Teve de assumir a Casa Branca nos meses finais da II Guerra Mundial, tendo sido dele a ordem de envio das bombas atómicas de Hiroxima e Nagasáqui”, recorda Germano Almeida.

Passadas as midterms para o Congresso dos EUA, terça-feira, e com o Partido Democrata (no poder) a revelar uma resiliência que as sondagens não conseguiram descortinar, a corrida do partido do burro às presidenciais de 2024 ganhou renovado interesse. A meio do mandato — e com Joe Biden prestes a atingir os 80 anos de idade (a 20 de novembro) —, quão sólida é uma possível candidatura de Kamala Harris à Casa Branca?

A democrata mais conhecida

Por ser a outra metade do ticket (a dupla Presidente e vice-presidente que vai a votos como um só), Harris, de 58 anos, surge como sucessora natural do mais velho Presidente a ser eleito. “Se Biden não voltar a concorrer à presidência em 2024, julgo que Kamala Harris será a favorita para ganhar a nomeação democrata”, diz ao Expresso Christopher Devine, professor de Ciência Política da Universidade de Dayton (Ohio), com livros publicados sobre a vice-presidência norte-americana.

“Isso não se deve necessariamente ao desempenho de Harris como vice-presidente, mas aos fundamentos de uma campanha para as primárias. Ela seria provavelmente a democrata mais conhecida a concorrer à presidência e não enfrentaria nenhum candidato óbvio. Teria o apoio do Presidente Biden, de muitos altos funcionários democratas e, quase de certeza, amplo apoio entre políticos e eleitores negros — o que, como demonstraram os casos de Hillary Clinton em 2016 e Biden em 2020, pode mais ou menos garantir a nomeação numas primárias democratas.”

BILHETE DE IDENTIDADE

  • Nome: Kamala Devi Harris
  • Data de Nascimento: 20 de outubro de 1964
  • Local de Nascimento: Oakland, Califórnia
  • Pais: Shyamala Gopalan (cientista indiana, na área do cancro da mama) e Donald J. Harris (professor universitário jamaicano, da área da economia)
  • Estado civil: Casada com o advogado Douglas Emhoff, desde 2014. Sem filhos
  • Formação académica: Curso de Direito, no Hastings College of the Law, da Universidade da Califórnia
  • Experiência profissional: Promotora, procuradora-geral e senadora pelo estado da Califórnia

Quarta-feira, na ressaca de uma derrota eleitoral que não lhe foi tão penalizadora como se anunciava, Biden anunciou que vai aproveitar as festividades de Natal para maturar, com a família, a possibilidade de se recandidatar. A decisão será comunicada aos norte-americanos no início de 2023.

“Diria que, neste momento, é altamente improvável que a nomeada presidencial democrata para 2024 seja Kamala Harris”, diz Germano Almeida. “Biden é mais provável, se nessa altura estiver em condições de saúde para tal; se não for o atual Presidente, apontaria outros dois nomes com mais condições políticas do que Kamala: o secretário dos Transportes, Pete Buttigieg, e o governador da Califórnia, Gavin Newsom.”

Quando tomou posse como vice-presidente, Harris fez história — e gerou entusiasmo — no país. Foi a primeira mulher eleita para o cargo e, ainda por cima, era negra e descendente de jamaicanos e asiáticos. “Sendo tudo isso, a verdade é que não representa qualquer desses segmentos no posto”, alerta Almeida.

“O flanco esquerdo do Partido Democrata queria que ela fosse mais radical, a ala moderada e centrista nem com Biden está plenamente satisfeita. Por último, Kamala recebeu do Presidente um dossiê muito complicado de gerir: a imigração e a pressão fronteiriça, tema em que esta Administração ainda não conseguiu marcar pontos.”

“Não venham” para o ‘el dorado’

No seu primeiro dia em funções, Biden derrubou dois pilares da política migratória de Donald Trump: suspendeu a construção de novos troços do muro na fronteira com o México e introduziu legislação com vista à legalização de quase 11 milhões de imigrantes que já viviam no país.

Ao rejeitar uma abordagem securitária do acolhimento de migrantes, Biden incentivou, ainda que involuntariamente, a formação de caravanas de migrantes com origem na América Central, que se fizeram à estrada, muitos a pé, rumo ao El dorado americano.

As imagens degradantes de milhares de pessoas à espera dias a fio para cruzar a fronteira entre EUA e México e dos centros de triagem no Texas sobrelotados, com migrantes instalados em jaulas coletivas, pressionaram a vice-presidente.

A 7 de junho de 2021, durante uma visita à Guatemala — um dos países de origem do problema migratório —, Kamala não criou ilusões a quem só queria fugir da pobreza: “Não venham!”, disse numa conferência de imprensa, ao lado do Presidente guatemalteco.

Migrantes: tema difícil para marcar pontos

“Kamala Harris ficou com uma das tarefas mais difíceis: lidar com os fluxos migratórios da América Latina para os EUA, tema explorado de forma exaustiva pelos republicanos, independentemente da dimensão desses fluxos”, diz ao Expresso Pedro Ponte e Sousa, professor na Universidade Portucalense.

“A forma como a vice-presidente tem gerido esta questão, e sobretudo a forma mediática como o tem feito — a visita à Guatemala onde disse aos possíveis migrantes ‘Do not come’ ou as reticências em visitar a fronteira com o México —, tem gerado contestação na ala mais à esquerda do Partido Democrata’, acrescenta.

“Num tema que os EUA pretendem gerir de uma perspetiva estritamente securitária, sem tentar promover o desenvolvimento económico e social, e em que a análise deste está fortemente politizada e carregada de estereótipos, não parece possível que Harris consiga obter vantagens na gestão do tema para a sua carreira política.”

Outro dossiê quente que ficou a cargo de Harris é a questão do “direito ao voto”, tema que causa grande atrito com os republicanos e que muito dificilmente lhe permitirá apresentar trabalho.

“Parte do problema da vice-presidente Harris é que muitos problemas que foram negligenciados sob a Administração anterior ou assuntos sobre os quais ela e o Presidente Biden têm controlo limitado, como a guerra da Rússia contra a Ucrânia, criaram dificuldades económicas que prejudicaram a sua posição”, diz ao Expresso Joel K. Goldstein, professor de Direito na Universidade de Saint Louis (Missuri) e autor do livro “The White House Vice Presidency: The Path to Significance, Mondale to Biden” (2017).

“Harris tem sido uma das principais porta-vozes de conquistas e questões importantes do Governo Biden, como os direitos reprodutivos, a inclusão, a necessidade de responder às alterações climáticas. Isso deve proporcionar uma oportunidade para que ela fortaleça a sua posição enquanto desenvolve trabalho importante a nível governamental.”

A dois anos das próximas presidenciais, as taxas de aprovação não têm sido simpáticas para Harris. Há mais de um ano que tem ininterruptamente uma avaliação no vermelho. O reconhecido projeto FiveThirtyEight, que analisa sondagens, atribuía-lhe, no dia das midterms, 52% de “reprovação” e 39,5% de “aprovação”.

Os números baixos não lhe devem ser imputados em exclusivo. “É muito difícil para um vice-presidente manter popularidade alta quando o índice de aprovação do Presidente é relativamente baixo”, diz Goldstein. É o que acontece com Biden. “A popularidade de Kamala Harris vai andar sempre de braço dado com a do Presidente Biden, muito mais do que pela sua própria ação política”, acrescenta Ponte e Sousa.

“Harris não é muito popular entre os americanos, em geral. Mas é difícil dizer se isso é por caisa dela, ou especificamente da sua atuação como vice-presidente”, afirma Devine. “O mais provável é que esteja a sofrer de uma estreita associação com o Presidente, que tem números baixos. Se Biden não concorrer em 2024, e Harris sim, ela terá a oportunidade de se distinguir dele e concorrer por si própria. Mas, para o bem ou para o mal, a reputação dela estará ligada a Biden. É o dilema que qualquer vice-presidente enfrenta ao concorrer à presidência.”

Adversários de ontem, hoje aliados

Kamala e Joe não são aliados desde a primeira hora, ao contrário do que pode insinuar este descontraído vídeo divulgado no dia da vitória eleitoral de ambos. Foram adversários nas primárias democratas — em que participaram 29 candidatos — e, nos debates, protagonizaram momentos de oposição e tensão.

Na história dos Estados Unidos, não faltam exemplos reveladores do quão dependente estão os vice-presidentes do sucesso dos seus superiores para se aventurarem à Casa Branca. “É uma dependência quase total”, diz Germano Almeida.

“Foi assim com George HW Bush depois de dois mandatos de Ronald Reagan, foi assim com Joe Biden depois de dois mandatos de Barack Obama [com Donald Trump a seguir]. No caso do atual Presidente, o facto de ter sido o escolhido de Obama para vice, em 2008, foi determinante”, apesar dos 36 anos como senador pelo Delaware.

O ‘azar’ de Al Gore

“Nos tempos modernos, quase todos os vice-presidentes foram considerados futuros candidatos presidenciais depois de terem servido como vice-presidente”, conclui Goldstein. “Ser vice-presidente dá vantagem. Mas nunca se deve presumir que garante que se tornarão Presidentes ou candidatos à presidência.”

Almeida dá um exemplo recente de como o trampolim da vice-presidência nem sempre funciona. “Quem tinha tudo para ser um vice-presidente a ascender à presidência após dois mandatos bem-sucedidos era Al Gore [vice de Bill Clinton entre 1993 e 2001]. Teve mais 500 mil votos do que o opositor, mas nunca viria a tomar posse: perdeu no Colégio Eleitoral após três recontagens na Florida.” Especificidades de um sistema eleitoral único, aqui a dar vantagem a George W. Bush.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui