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Esquecidos e assimilados à força, tibetanos já só querem autonomia

Ofuscado pela agitação em Hong Kong, a tensão em Taiwan e o drama dos uigures, o Tibete continua a ser uma pedra no sapato de Pequim

A escala de Mingyur Paldon no aeroporto de Lisboa, a 3 de janeiro passado, devia ter durado só uma hora, mas prolongou-se por quase um dia inteiro. Em trânsito entre os Estados Unidos, onde estuda Relações Internacionais e Desenvolvimento Humano no Connecticut College, e a Bélgica, onde ia fazer um semestre, esta tibetana, de 22 anos, viu a viagem interrompida quando, a caminho da ligação, foi intercetada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Foi interrogada após cinco horas de espera e percebeu que havia desconfianças em relação ao documento com que viajava: um “certificado de identidade” emitido pelo Governo da Índia para refugiados tibetanos. Parecido com um passaporte amarelo, tem ao centro o capitel do Leão de Ashoka, emblema nacional da Índia. Mingyur — que nasceu no Tibete e chegou à Índia aos dois anos — usou-o sem problemas no Reino Unido e nos Estados Unidos. Em Portugal não foi aceite.

No aeroporto, “foram muito ignorantes sobre um conjunto de coisas”, afirma ao Expresso. “Disseram que eu devia ter uma cidadania, de alguma forma, e perguntaram se não tinha passaporte chinês. Expliquei que não é possível, porque sou refugiada. Deixaram-me ir, mas recusaram-se a carimbar o meu passaporte. Fizeram-no no cartão de embarque.” Após pernoitar num hotel perto do aeroporto, deixou o país às 7h20 do dia 4.

Antes morto do que preso

Desde o início do ano, já morreram três tibetanos imolados pelo fogo. Tsewang Norbu, cantor de 25 anos a quem chamam “o Justin Bieber tibetano”, sacrificou-se em frente ao Palácio Potala, em Lassa. Em Ngaba, um homem de 81 anos imolou-se junto a um posto da polícia. Em junho, em Kanlho, um monge morreu ao lado de uma foto do Dalai Lama, o líder espiritual tibetano.

Perante tibetanos que se imolam pelo fogo, o Governo chinês fica impotente. Não sobra ninguém para punir

Desde 2009, foram já 161 os tibetanos a recorrer a esta forma extrema de protesto. “Nos anos 80 havia manifestações quase todos os meses, que o Governo chinês tratou de controlar e eliminar. Quem participasse ia preso, era torturado e via as famílias sofrer. Com práticas coercivas de controlo, intimidavam comunidades inteiras. Por vezes, não apenas a família, mas todo o bairro era punido”, recorda ao Expresso Tsering Shakya, da Universidade de British Columbia, em Vancôver (Canadá).

A experiência de Mingyur em Portugal é apenas um exemplo das dificuldades que enfrentam os estimados 150 mil tibetanos da diáspora. Nada comparável, porém, ao quotidiano de desespero e frustração de mais de seis milhões, que vivem, desde 1950, sob ocupação chinesa, no planalto tibetano: dois milhões na Região Autónoma, quatro milhões noutras regiões chinesas.

“A maioria dos presos só saía em liberdade quando estava prestes a morrer. Os tibetanos começaram a perceber que ser preso significava morrer e que imolarem-se não requeria qualquer organização, apenas que fossem a uma praça e ateassem fogo ao corpo. Não sobraria ninguém para ser punido e o Governo ficaria impotente”, continua o tibetano, nascido em Lassa em 1959. “Negar o poder de torturar é poderoso.”

Mal atendeu a videochamada do Expresso, o professor agarrou no livro que andava a ler e mostrou-o para a câmara. “É sobre os jesuítas portugueses no Tibete. Estavam em Goa, na Índia, e foram para o Oeste do Tibete. Foram muito importantes de 1582 até cerca de 1700. Mas o Papa mandou que se retirassem e deixassem o Tibete para os confucianos. Foi um grande erro.”

JAIME FIGUEIREDO

As armas de Pequim

Desde 1984 que a China tem em vigor uma lei da autonomia regional pela qual formalizou a atribuição de autonomia às suas minorias. Desde que Xi Jinping é Presidente (2013), no entanto, a situação do Tibete “piorou muito”, conta ao Expresso Tsering Tsomo, diretora-executiva do Centro Tibetano para os Direitos Humanos e Democracia, com sede em Dharamshala, na Índia. “O Governo chinês está a aplicar ativamente uma política de assimilação cultural forçada.” O professor Shakya fala de “colonização mental do Tibete”.

Cerca de 800 mil crianças vivem em internatos coloniais e recebem uma educação altamente politizada

A autoridade chinesa exerce-se prioritariamente no sector educativo. Na escola, ensina-se desde tenra idade que o Tibete faz parte da China e que o hino nacional que devem saudar é a “Marcha dos Voluntários”. Tudo é explicado em chinês, sendo o tibetano ensinado como língua estrangeira.

Um relatório recente do Tibet Action Institute expõe “uma vasta rede de internatos coloniais no Tibete, onde os estudantes vivem separados das suas famílias e são sujeitos a uma educação altamente politizada, essencialmente em chinês”. Afeta pelo menos 800 mil crianças, dos 6 aos 18 anos.

O que querem os tibetanos?

Desde que, na década de 80, Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama, teorizou o “Caminho do Meio” — que consagra a interpretação budista da vida quotidiana e rejeita posições extremas — que as aspirações políticas tibetanas ficaram claras. A posição oficial do Governo tibetano no exílio (em Dharamshala, no Norte da Índia, para onde o Dalai Lama fugiu em 1959, após uma revolta tibetana esmagada pelos chineses) é de apelo à autonomia, não à independência.

‘Um país, dois sistemas’ não seduziu Taiwan e não funciona em Hong Kong. Porque haveria o Tibete de aceitar?

Nascida na Índia, Tsering Tsomo, de 45 anos, nunca foi ao Tibete. “É preciso uma autorização das autoridades chinesas. Trabalho na área dos direitos humanos, é impossível. Sei que estou sob vigilância.” Podia obter cidadania indiana com facilidade, mas prefere manter o estatuto de refugiada e lutar pelo sonho nacional. “Apelamos a uma verdadeira autonomia, não só na Região Autónoma como em todas as áreas tibetanas. Devem beneficiar e exercer poderes de autogoverno.”

O quarto problema

Quando o Dalai Lama propôs o “Caminho do Meio” aos tibetanos, a China ofereceu a Hong Kong, Macau e Taiwan a fórmula “um país, dois sistemas”. “Não seduziu Taiwan e não está a funcionar em Hong Kong. Porque é que o Tibete haveria de aceitar algo semelhante?”, questiona Shakya. Se o Tibete já foi o principal fantasma a perseguir Pequim fora de portas, hoje três outros problemas absorvem a atenção mediática: a repressão à minoria uigur (muçulmana) em Xinjiang, o silenciamento do movimento pró-democracia em Hong Kong e a tensa coexistência com a China nacionalista (Taiwan).

A China está a ficar mais descarada. Pode fazer o que quer e a comunidade internacional nada faz

“O Tibete foi relegado para quarto lugar”, apesar de ter sido “o primeiro assunto que chamou a atenção da comunidade internacional para quão implacável e brutal é o regime comunista chinês”, diz a ativista Tsering. “Foi o primeiro aviso, mas tudo continuou na mesma. E outros problemas surgiram. Todo este acumular de questões mostra como a China está a ficar mais descarada, pensando que pode fazer o que quer e que a comunidade internacional não faz nada. O Tibete devia ser um alerta para que mais nenhum assunto fosse adicionado à lista.”

(IMAGEM Bandeira do Tibete WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 29 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui

Seis razões (e cinco ilustrações) que justificam os apelos ao boicote dos Jogos Olímpicos de Pequim

Um conjunto de dossiês polémicos, alguns dos quais duram há décadas, colocam a China sob permanente escrutínio internacional. Sempre que Pequim procura projetar prestígio, como acontece com a realização dos Jogos Olímpicos de Inverno, não falta quem recorde que há problemas que continuam por resolver. Da ocupação do Tibete à ameaça de invasão a Taiwan, da repressão da minoria uigur à falta de transparência em relação à origem da pandemia de covid-19

Ocasiões como os Jogos Olímpicos projetam os países que os organizam à escala planetária. Tornam-se montras de poder e de capacidade, mas podem contribuir também para virar os holofotes para situações que se quer manter discretas. É o que acontece com a China, anfitriã dos XXIV Jogos Olímpicos de Inverno até domingo próximo.

Alguns pesos pesados da política, e também do desporto, como Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, decretaram um boicote diplomático aos Jogos de Pequim. À semelhança do que aconteceu na cerimónia de abertura, não se farão representar na festa de encerramento. 

O boicote não prejudicou o evento a nível desportivo, já que os mesmos países enviaram atletas para competir, mas beliscou o prestígio de Xi Jinping. Nos corredores políticos, significa uma reprovação tácita da atuação do Presidente chinês e, implicitamente, das lideranças que o antecederam, em problemas que se arrastam há anos.

OCUPAÇÃO DO TIBETE

Apelidada de “teto do mundo”, em virtude dos picos montanhosos que a caracterizam, a região do Tibete vive sob ocupação chinesa há sete décadas. A repressão do povo tibetano — que incluiu a destruição de cerca de 6000 mosteiros e templos budistas — atirou grande parte da população para um exílio forçado. Foi também o destino do líder espiritual Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama, galardoado com o Prémio Nobel da Paz em 1989, que acusa o regime chinês de “genocídio cultural”. 

“Estes 50 anos trouxeram sofrimento e destruição incalculáveis à terra e ao povo do Tibete. Hoje, a religião, a cultura, a língua e a identidade estão em vias de extinção. O povo tibetano é visto como um criminoso que merece ser morto”, afirmou em 2009, por altura do 50.º aniversário de uma tentativa de revolta tibetana, que foi reprimida e que o levou ao exílio na Índia. “No entanto, é uma conquista a questão do Tibete estar viva e a comunidade internacional interessar-se cada vez mais por ela. Não tenho dúvidas de que a justiça da causa do Tibete prevalecerá, se continuarmos a trilhar o caminho da verdade e da não-violência.”

Se fosse um país independente, o Tibete seria, em área, o 10.º maior do mundo. Para a China, esse imenso território — que faz fronteira com Myanmar, Butão, Nepal e Índia, nomeadamente com a conflituosa região da Caxemira — é parte inalienável da sua soberania. Para o povo tibetano, é a sua pátria ancestral e um Estado independente desde 1913 (após o fim da dinastia Qing), hoje sob ocupação ilegal.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

Aquando dos Jogos Olímpicos (de verão) de Pequim de 2008, a campanha “Liberdade para o Tibete” motivou protestos em todo o mundo. O tradicional rito do transporte da tocha olímpica desde a Grécia até ao local dos Jogos transformou-se numa prova de obstáculos, com ativistas a tentarem romper o cordão de segurança à volta do estafeta para apagar a chama.

Em outubro passado, em vésperas de se repetir o ritual, dois ativistas foram detidos junto à Acrópole de Atenas, após desfraldarem uma bandeira do Tibete e uma tarja que dizia: “Revolução Hong Kong Livre”. Eram uma tibetana de 18 anos e um rapaz de 22, nascido em Hong Kong e a viver no exílio, outro dossiê quente que a China tem em mãos.

CERCO À DEMOCRACIA EM HONG KONG

Quando Hong Kong foi transferido do Reino Unido para a República Popular da China, em 1997, ficou acordado um período de transição de 50 anos, durante o qual a antiga colónia britânica conservaria a sua autonomia económica, bem como direitos e liberdades não extensivos à população da China Continental. 

Esse estatuto — ao abrigo do princípio “um país, dois sistemas” — tem sofrido erosão, com sucessivas leis a subordinarem crescentemente o quotidiano de Hong Kong à vontade de Pequim. A 30 de junho de 2020, a introdução de uma nova Lei da Segurança Nacional no território, na sequência de gigantescas manifestações populares pró-democracia, acentuou esse controlo político e o cerco à oposição democrática.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

A nova lei “limpou” as ruas de manifestantes, que passaram a correr o risco de terem de responder por crimes de “secessão, subversão, terrorismo”, e colocou uma mordaça no sector da comunicação social. Jornais independentes tiveram de fechar portas na sequência da prisão de jornalistas ou da apreensão de ativos. O último foi o “Zhongxin News”, em janeiro passado, e antes dele o “Stand News”, em dezembro. Um dos títulos mais populares, o “Apple Daily”, encerrou em junho de 2020. O seu proprietário, o milionário Jimmy Lay, foi preso e condenado a 14 meses de prisão por “organização de protestos ilegais”.

Na avaliação da organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a China surge como um dos “predadores” da liberdade de informação. No relatório de 2021, ocupa o 177º lugar (em 180), devido a “censura na Internet, vigilância e propaganda a níveis sem precedentes”. Há 78 jornalistas e 39 “jornalistas cidadãos” presos na China.

‘BIG BROTHER’ CHINÊS

À partida para Pequim, vários comités olímpicos nacionais sugeriram aos membros das respetivas delegações que usassem telemóveis provisórios durante a sua estada na China. Segundo o jornal holandês “De Volkskrant”, o Comité Olímpico dos Países Baixos proibiu mesmo os seus atletas de levarem smartphones e laptops pessoais.

Com o evento a decorrer em tempo de pandemia, a organização solicitou a atletas, dirigentes e jornalistas que instalassem a aplicação MY2020 para reportarem, diariamente, o seu estado de saúde. Esta medida desencadeou receios de espionagem digital.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

Nos últimos anos, na China, um sistema de vigilância intrusivo tem ganho contornos cada vez mais Orwellianos. Uma das suas dimensões é o Sistema de Crédito Social, que consiste num mecanismo de pontuação dos cidadãos e que os recompensa ou penaliza em função de comportamentos. 

De iniciativa governamental, este projeto lançado em 2014 ambiciona traçar o perfil pormenorizado de cada um dos mais de 1300 milhões de habitantes da China Continental — numa primeira fase, Macau e Hong Kong ficam de fora.

REPRESSÃO DOS UIGURES

A segregação e a violência com que as autoridades chinesas tratam a minoria uigur (muçulmana) têm-lhes valido acusações de “genocídio”. Segundo organizações internacionais dos direitos humanos, nos últimos anos, mais de um milhão de uigures foram enviados para “campos de reeducação” na província de Xinjiang, no noroeste da China. Há denúncias de trabalhos forçados, de esterilização à força de mulheres e relatos de tortura e abusos sexuais.

Pequim tem repetidamente negado maus tratos aos uigures e defende as suas ações em Xinjiang com a necessidade de combater o terrorismo. Dentro desta narrativa, os campos são considerados uma espécie de centros de formação vocacional cujo objetivo é manter os uigures longe da radicalização.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

Quando anunciaram o boicote diplomático aos Jogos de Pequim, os Estados Unidos justificaram a posição com o “genocídio e os crimes contra a Humanidade em curso em Xinjiang e outras violações dos direitos humanos” pelo regime chinês.

Numa tentativa de limpar a imagem — ou de passar a mensagem de que não aceita lições em matéria de direitos humanos —, a China proporcionou um momento de grande simbolismo na cerimónia de abertura dos Jogos: um dos dois atletas escolhidos para acender a chama olímpica no interior do estádio foi um esquiador uigur.

ASSÉDIO’ A TAIWAN

Também chamada China Nacionalista, Taipé ou Formosa, esta ilha situada a cerca de 180 km da costa chinesa é um Estado independente para apenas 15 países em todo o mundo (e funciona como tal, sob um regime democrático). Mas a disputa geopolítica em torno do seu futuro político é um desafio à paz mundial.

Para Pequim, Taiwan simboliza a dificuldade de implantar a revolução maoísta em todo o território chinês e corporiza um projeto político alternativo que ameaça a política da “China Única”, segundo a qual há apenas um Estado chinês soberano e Taiwan faz parte dele.

De tempos a tempos, a China manifesta o seu ascendente sobre a ilha fazendo incursões aéreas na área de defesa de Taiwan. Em finais de janeiro, Pequim bateu o recorde diário de intrusões, com 39 aviões de guerra a aproximarem-se da “província rebelde”. Este modus operandi tem valido à China condenações internacionais, mas para Pequim funcionam como simulações de uma eventual invasão de Taiwan no caso de falhar a reunificação por via pacífica, como aconteceu com Hong Kong e Macau.

A ORIGEM DA COVID

Mais de dois anos após o início da pandemia de covid-19 — cujo vírus foi detetado, pela primeira vez, em dezembro de 2019, na cidade chinesa de Wuhan —, a falta de explicações sobre como tudo começou origina desconfianças em relação à responsabilidade da China. “Infelizmente, o que vimos da República Popular da China, desde o início desta crise, é incumprimento das suas responsabilidades básicas em termos de acesso e partilha de informações”, acusou o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

Entre 14 de janeiro de 10 de fevereiro de 2021 — quase um ano após ser declarada a pandemia —, uma missão da Organização Mundial da Saúde (OMS) esteve por fim na China, para tentar apurar factos. Divulgado o relatório final, um conjunto de 14 países, entre os quais os EUA, Reino Unido, Japão e Israel, emitiu um comunicado conjunto dizendo que o relatório “foi significativamente atrasado e não continha acesso a dados e amostras completos e originais”.

Esta posição soou como crítica à influência da China dentro da OMS e à incapacidade da organização conduzir uma investigação independente, já que Pequim pôde vetar cientistas destacados para integrar a missão e impor limitações aos investigadores durante a visita.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui

Um boicote olímpico para Xi Jinping ver

Vários países decretaram um boicote diplomático aos Jogos de Pequim, que arrancam hoje. Com que eficácia?

Há oito anos, por esta altura, o mundo temia que a Rússia invadisse a Ucrânia. Para desanuviar a tensão, a 28 de janeiro de 2014 União Europeia e Rússia reuniram-se numa cimeira, em Bruxelas, que terminou com um aperto de mão entre o Presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso. A trégua era aparente: passado menos de um mês, tropas russas entravam em território ucraniano e a 18 de março seguinte a Crimeia era anexada.

De permeio, a Rússia esbanjou capacidade e organizou os Jogos Olímpicos de Inverno, em Sochi. “Penso que Putin aceitou participar na cimeira de Bruxelas porque queria assegurar que os Jogos se realizassem sem boicotes e constituíssem uma vitrina diplomática”, diz ao Expresso Sandra Fernandes, do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade do Minho. “Putin organizou os seus Jogos e assentou a sua imagem como parte de um clube. Instrumentalizou muito bem os Jogos de Sochi.”

O evento não escapou a polémicas, com protestos em todo o mundo contra a perseguição à comunidade LGBT russa, mas nenhum país o boicotou. Oito anos depois, é o Presidente chinês, Xi Jinping, que está confrontado com o êxito de uns Jogos Olímpicos em contexto de grande pressão política.

Direitos humanos no centro

Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e outros anunciaram um “boicote diplomático” aos Jogos de Inverno que começam hoje em Pequim. Justificam-no com violações dos direitos humanos pelo regime chinês — da questão do Tibete à vigilância draconiana da população, de Hong Kong à repressão da minoria uigure. Putin confirmou a sua presença em Pequim.

“Este boicote diplomático acontece num momento de grande tensão entre Estados Unidos e China. Nesse sentido, não é assim tão diferente dos boicotes históricos da Guerra Fria”, afirma Sandra Fernandes. Assinala a relação de poder entre “uma China expansionista, muito segura de si, e países que tentam mostrar que há oposição a essa assertividade”. Por outro lado, “na atualidade, a agenda dos direitos humanos e dos valores universalistas é central”, com grande exposição de violações dos direitos humanos nas redes sociais.

Os países alvo de sanções tendem a reorientar a política externa para quem lhes abre as portas

Um boicote político neste contexto significa que os países que o aprovam não se farão representar nas cerimónias de abertura e de encerramento, ainda que enviem atletas para competir. Mancha o evento, mas não compromete desportivamente os segundos Jogos Olímpicos na China em 14 anos.

A interrogação é, pois, legítima. Que eficácia têm, na verdade, boicotes e sanções materiais (económicas, financeiras ou comerciais)? Tomemos como exemplo a Coreia do Norte, país isolado do mundo e castigado com várias sanções internacionais.

“A Coreia do Norte guia-se por um modelo de autossuficiência [doutrina Juche] que a leva, em certas alturas, a rejeitar assistência da comunidade internacional, apesar de referências a dificuldades económicas pelo próprio regime, às quais atualmente acresce a pandemia”, diz ao Expresso Rita Durão, especialista em estudos asiáticos. “O facto de ser um país muito fechado resulta de conjunturas internas que o impedem de procurar algo melhor, mas também é reforçado pelas sanções económicas, que o isolam ainda mais.”

Sanções sem efeito

As sanções a Pyongyang têm como principal objetivo forçar o regime a abdicar do armamento nuclear. “Estando uma intervenção na península coreana fora de questão, aplicar sanções tornou-se meio preferencial para lidar com este país e as suas ambições nucleares.” O peso que o regime de Kim Jong-un lhes atribui está exposto: sempre que se perspetivam negociações, o levantamento das sanções surge como principal exigência norte-coreana para fazer cedências. O mesmo acontece com o Irão.

Porém, demonstrações bélicas como a de domingo passado, quando a Coreia do Norte testou um míssil balístico Hwasong-12, de médio e longo alcance — foi o quinto lançamento de mísseis só em janeiro —, provam que as sanções não surtem efeito e podem até estar a provocar um efeito contrário ao desejado. “Ao invés de levarem à desnuclearização da Coreia do Norte, promovem maior apego ao programa, reforçando a ideia, a nível interno, de que a ameaça americana e da comunidade internacional é real, logo a aposta no desenvolvimento do nuclear torna-se necessária para fazer face ao ‘inimigo’”, diz Durão. Para Pyongyang, “as sanções são exemplo da ‘atitude hostil’ de Washington e seus aliados”.

No “quintal” dos Estados Unidos, também a Venezuela é pressionada de fora, visando uma mudança de regime. “As sanções internacionais, sobretudo dos Estados Unidos, não são eficazes quando há apoio de outros poderes, como a Rússia, Irão e outros menos formais, mas muito bem organizados, como a criminalidade”, explica ao Expresso Nancy Gomes, professora na Universidade Autónoma de Lisboa. “As sanções provocaram uma mudança económica — o dólar passou a circular livremente, empresas públicas estão a ser privatizadas —, mas não política. O Governo de Nicolás Maduro continua a controlar as instituições, meios de comunicação e Forças Armadas.”

Não muito longe, Cuba sofre há décadas um embargo dos Estados Unidos. “A ditadura dura há mais de 60 anos, primeiro com apoio da ex-União Soviética e depois do Governo venezuelano”, acrescenta. “Vemos mudanças no modelo económico, mas pouco ou muito pouco a nível político.”

Os países alvo de sanções tendem a reorientar a política externa para quem lhes abre as portas. “Procuram outro tipo de alianças, se possível”, conclui Sandra Fernandes. “No contexto atual, em que os Estados Unidos perdem a sua posição hegemónica, ou pelo menos a partilham com outros, isso é cada vez mais real. A universalidade na adoção das sanções é cada vez mais difícil.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de fevereiro de 2022

A maior prisão mundial para jornalistas continua a regredir ao nível do acesso à informação

Numa semana especial para o jornalismo, a organização Repórteres Sem Fronteiras tomou o pulso à liberdade de imprensa na China e concluiu que “sob a liderança do Presidente Xi Jinping, o Partido Comunista Chinês aumentou drasticamente o seu controlo sobre jornalistas”. Para este retrato negro contribui, entre outros, 127 jornalistas presos e uma ampla estratégia de controlo do acesso à informação a que nenhum chinês escapa

© 2019 Brian Stauffer for Human Rights Watch

Nas últimas semanas, duas mulheres têm sido rostos dos limites ao exercício de direitos e liberdades na República Popular da China. Uma delas é Peng Shuai, tenista de 35 anos que representou o país em três edições dos Jogos Olímpicos e que acusou um ex-vice-primeiro-ministro chinês de a ter forçado a relações sexuais. Após a denúncia, a atleta desapareceu das redes sociais e da vida pública. O Comité Olímpico Internacional conseguiu contactá-la, mas há suspeitas de que possa estar refém das autoridades de Pequim, proibida de sair do país e forçada a negar a história que denunciou.

Outra chinesa em rota de colisão com as autoridades chinesas é Zhang Zhan, jornalista de 38 anos que, no início da pandemia de covid-19, expôs a situação na cidade de Wuhan, onde primeiro foi identificado o vírus SARS-CoV-2, publicando nas redes sociais mais de 100 vídeos filmados com o telemóvel. A 28 de dezembro passado, foi condenada a quatro anos de prisão.

“Em maio de 2020, Zhang Zhan foi levada pela polícia do seu hotel em Wuhan. A sua reportagem sobre o surto de covid-19 no epicentro da pandemia foi interrompida de forma abrupta. Na prisão, tem feito greves de fome para reclamar os seus direitos constitucionais enquanto cidadã chinesa, poder expressar-se livremente e protestar contra a sua detenção arbitrária. O seu advogado pôde visitá-la algumas vezes e disse que, desde o primeiro dia, ela não fez uma única refeição normal.”

Este relato foi feito por Jane Wang, coordenadora da campanha #FreeZhangZhan, durante um webinar organizado pela organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), que este ano atribuiu um prémio à jornalista chinesa. “No final de julho”, continuou Wang, “Zhang Zhan foi internada num hospital penitenciário, amarrada a uma cama e alimentada à força durante 11 dias. No início de agosto, a sua família foi informada de que ela pesava menos de 40 quilos e tinha sintomas de má nutrição grave. No final de outubro, não conseguia andar ou sequer levantar a cabeça.”

webinar dos RSF, a que o Expresso assistiu terça-feira, visou a apresentação do novo relatório da organização sobre o estado do jornalismo na China. Nas palavras de Christophe Deloire, secretário-geral dos RSF, o documento expõe “como o regime tenta construir uma sociedade-modelo sem jornalismo” e “uma sociedade onde o Estado diz aos cidadãos o que se pressupõe que possam pensar e na qual partilhar informação factual é crime”.

O relatório constata ainda que “sob a liderança do Presidente Xi Jinping, o Partido Comunista Chinês aumentou drasticamente o seu controlo sobre jornalistas”, não só na China continental como em Hong Kong e Macau.

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jornalistas estão, atualmente, presos na China. Trata-se de uma parte considerável dos 293 repórteres que, segundo o Comité para a Proteção de Jornalistas, estão detidos em todo o mundo

Um caso referido no relatório é o de Cheng Lei, jornalista australiana nascida na China que trabalhava como pivô na China Global Television Network (CGTN). Em novembro de 2019, foi oradora na WebSummit, em Lisboa; meio ano depois era detida na China, acusada de “fornecer segredos de Estado a um país estrangeiro”. Desde então, continua sem data de julgamento marcada.

“Para silenciar os jornalistas, o regime chinês acusa-os de ‘espionagem’, ‘subversão’ ou ‘fomento de altercações e provocação de problemas’, três ‘crimes de bolso’, termo usado por especialistas em direito chinês para qualificar ofensas que são definidas de forma tão ampla que podem ser aplicadas a quase todas as atividades”, lê-se no relatório dos RSF. As duas primeiras acusações podem valer prisão perpétua.

Convite traiçoeiro para um chá

Com 82 páginas, o relatório dos RSF tem como título “O grande salto atrás do jornalismo na China”, num jogo de palavras alusivo ao “Grande Salto em Frente”, a campanha económica e social com que Mao Tsé-Tung pretendeu modernizar a China, entre 1958 e 1962.

Entre os vários obstáculos à liberdade de informação na China, o documento destaca:

  • Bloqueio de sites na Internet
  • Vigilância de grupos de conversação online, como a app WeChat, que se tornou uma espécie de cavalo de Tróia da polícia
  • ‘Exército’ de trolls ao serviço do regime
  • Colocação de jornalistas em regime de “Vigilância Residencial num Local Designado”, durante meses
  • Convite para “um chá” com responsáveis pela censura e propaganda, como forma de intimidação
  • Diretrizes diárias do Partido Comunista Chinês sobre assuntos sensíveis, como Tibete, Xinjiang, Hong Kong, Taiwan, corrupção e dissidência
  • Aumento de assuntos tabu sobre os quais é proibido reportar, como Tiananmen e, mais recentemente, o movimento #Me Too e a covid-19
  • Confissões forçadas na televisão, por parte de jornalistas detidos pelo regime
  • Lei da Segurança Nacional (no caso de Hong Kong)
  • app Study Xi

Adotada para “fortalecer o país”, a aplicação Study Xi — uma encomenda do Partido Comunista Chinês à gigante do comércio digital Alibaba — é uma ferramenta educativa destinada a difundir o pensamento do Presidente Xi Jinping. Desde outubro de 2019, os jornalistas chineses têm sido forçados a fazer o download dessa app para renovar a carteira profissional.

A aplicação permite que o regime avalie o conhecimento e a lealdade dos jornalistas à doutrina oficial, mas mais do que isso… também permite que as autoridades espiem o conteúdo dos smartphones dos jornalistas, pondo em perigo profissionais e fontes.

“Sabemos que a livre circulação de informação é a fundação de uma sociedade civil e que informar os cidadãos é a fundação da democracia”, disse Wu’er Kaixi, antigo dirigente dos protestos estudantis na Praça Tiananmen, durante a apresentação do relatório dos RSF.

“Na China, não temos democracia nem sociedade civil, temos totalitarismo, um regime que oprime a dissidência do seu povo, envia jornalistas para a prisão, dissemina informação falsa e transforma os media do Estado numa máquina de propaganda que mente não só ao seu povo como a todo o mundo, mesmo perante a verdade.”

O ativista justifica o declínio da liberdade de imprensa na China com “as atrocidades que o regime comete contra o povo uigur. No século XXI, [a China] mantém mais de um milhão de uigures em campos de concentração”, diz Wu’er Kaixi, que se questiona como é possível que tal aconteça nos dias de hoje.

“Como pode um regime realizar tal ato? Com a tolerância do mundo”, continua. “O mundo tem concordado com a China. Não fazer nada, é concordar”, diz. “É muito importante acordarmos que as democracias ocidentais lideradas pelos EUA e a Europa têm sido cúmplices nas últimas décadas. E é hora de parar.”

No Índice Mundial de Liberdade de Imprensa 2021, dos RSF, a China surge na 177ª posição entre 180 países. Atrás de si, tem apenas o Turquemenistão, a Coreia do Norte e a Eritreia.

Badiucao, o cartoonista político que desenhou a capa do relatório dos RSF, e que vive na Austrália, viu recentemente o Governo chinês tentar cancelar uma exposição sua num museu de Brescia, no norte de Itália. A pressão foi exercida de múltiplas formas: sobre as autoridades italianas, nas redes sociais do artista, junto da sua família em Xangai e através de visitas suspeitas, durante a sua estadia em Itália, onde recebeu ameaças de morte de forma velada.

“A liberdade do jornalismo na China não diz respeito apenas ao bem-estar das pessoas na China. Também tem tudo a ver com as pessoas de fora da China, com a sociedade democrática, com os países que ainda gozam de liberdade de imprensa”, disse Badiucao.

“A propaganda da China como um vírus, que não pára dentro da China e infetará o mundo exterior, e o objetivo é tirar a liberdade de todos. O problema da liberdade de imprensa da China é também um problema nosso”

Badiucao
 cartoonista político chinês

A divulgação deste relatório teve em conta a realização de dois eventos, nos próximos dias, com potencial para indispor a China. Por um lado, a Cimeira pela Democracia, organizada de forma virtual pelo Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, esta quinta e sexta-feiras, que reunirá cerca de 110 países. “A China, claro, não foi convidada, mas estará com toda a certeza nas mentes de todos, uma vez que o regime de Pequim é uma das mais importantes ameaças à democracia em todo o mundo”, disse Christophe Deloire.

Por outro, a entrega do prémio Nobel da Paz, sexta-feira, a dois jornalistas — a filipina Maria Ressa e o russo Dmitry Muratov — numa cerimónia em Oslo, na Noruega. “Será uma mensagem muito forte e poderosa para os predadores da liberdade de imprensa e um encorajamento para todos aqueles que defendem o jornalismo em todo o mundo”, concluiu o secretário-geral dos RSF. “Esta é, na realidade, uma semana muito especial para o jornalismo.”

Os Repórteres Sem Fronteiras divulgaram apenas as versões inglesa e francesa do relatório, disponíveis neste link. A 24 de janeiro, dez dias antes dos Jogos Olímpicos de Inverno, em Pequim, o documento será divulgado em outras oito línguas, inclusive em português

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de dezembro de 2021. Pode ser consultado aqui

Censura com humor se paga. “South Park” brinca com Pequim

A China não gostou de um episódio da série de animação “South Park” e apagou-a de todas as suas plataformas digitais. O “pedido de desculpas” dos criadores da “sitcom” transformou-se numa jornada de gozo ao regime de Pequim

Na China, o humor tem rédea curta. Os últimos a sentirem-no na pele foram os criadores da série animada “South Park”. Habituados a recorrer sem limites à sátira e ao humor negro para retratar a sociedade norte-americana, viram a “sitcom” ser censurada em todas as plataformas digitais na China na sequência de um episódio incómodo para Pequim.

Numa cena, um personagem é detido no aeroporto quando tenta entrar na China com marijuana para vender a “chineses com dinheiro” e enviado para um campo de trabalhos forçados, numa alusão ao que hoje se passa com as minorias da região chinesa de Xinjiang.

Noutro quadro, outro personagem aborda algo apresentado como uma tendência nos Estados Unidos e que passa por ajustar as manifestações culturais à censura chinesa. “Não vale a pena viver num mundo em que a China controla a arte do meu país”, diz.

LINK DO EPISÓDIO “BAND IN CHINA”: https://www.southparkstudios.com/episodes/4yl119/south-park-band-in-china-season-23-ep-2

O episódio “Band in China” [Banda na China] alude ainda à semelhança física entre o Presidente Xi Jinping e o ursinho Pooh, imagem proibida na China. Fotografias do boneco ou da comparação surgem com frequência em protestos anti-China, em Hong Kong, Taiwan ou em países onde o chefe de Estado chinês não é presença desejada.

Reagindo às notícias de censura da sua série na Internet e nas redes sociais chinesas, veiculadas pela publicação “The Hollywood Reporter”, os criadores da série recorreram ao Twitter para endereçar um “pedido de desculpa oficial à China”. Carregado de humor e ironia, esse aparente “mea culpa” transformou-se numa nova jornada de gozo.

“Tal como a NBA, nós acolhemos os censores chineses nas nossas casas e nos nossos corações. Também nós amamos mais o dinheiro do que a liberdade e a democracia. Xi não se parece nada com o Ursinho Pooh. Sintonize o nosso 300.º episódio esta quarta-feira às 10! Longa vida ao grande Partido Comunista da China! Que a colheita de sorgo deste outono seja abundante! Nós bem agora China?”

https://twitter.com/SouthPark/status/1181273539799736320

A referência à NBA, a principal liga norte-americana de basquetebol profissional, decorre de um tweet recente do diretor-geral dos Houston Rockets, Daryl Morey, de apoio aos manifestantes em Hong Kong. A mensagem foi entretanto apagada, mas não evitou que várias empresas chinesas cortassem apoios à equipa e à liga. O canal estatal CCTV 5, por exemplo, anunciou que deixaria de transmitir os jogos da equipa do Texas.

(IMAGEM A imagem do ursinho Pooh é proibida na China, devido à semelhança física com o Presidente Xi Jinping ASIA NEWS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui