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Estratégia suicida em Hong Kong

Ativistas pró-democracia, que invadiram e vandalizaram o Parlamento, já não creem em marchas pacíficas

Hong Kong está nas ruas há quase um mês. Desde 9 de junho que milhões de pessoas protestam contra uma nova lei da extradição que sentem ser um tentáculo de Pequim, com o objetivo de estrangular a autonomia desta região administrativa especial. A última manifestação, esta semana, descambou em violência inédita — invasão e vandalização do Parlamento —, que não foi unânime no seio do movimento e, num primeiro momento, contribuiu para reforçar a narrativa do Governo de Hong Kong, para quem os protestos são obra de “desordeiros”.

Esperar-se-ia que tão cedo não houvesse novas marchas, mas não é o que está previsto. Ontem, as “Mães de Hong Kong” concentraram-se no parque público Chater Garden. Para amanhã, domingo, está previsto um protesto em Tsim Sha Tsui, zona comercial e de vida noturna. “Espero menos participantes”, diz ao Expresso Evan Fowler, 39 anos, cidadão de Hong Kong. “A China Continental não está propícia a grandes manifestações.”

CONTEXTO

Colónia
Derrotada na I Guerra do Ópio, a dinastia Qing cede Hong Kong à coroa britânica em 1842

Transição
Em 1997, Londres devolve o território à China

Estatuto
Durante 50 anos, é região administrativa especial, com sistema político e económico próprio

Protestos
Os cidadãos estão contra a nova lei da extradição, que pode levá-los a julgamento na China

Os novos protestos acontecem numa altura em que a polícia procura responsáveis pelo “assalto” ao Parlamento (LegCo, abreviatura inglesa de Conselho Legislativo) levado a cabo durante o tradicional protesto de 1 julho, que lamenta o regresso de Hong Kong a soberania chinesa, em 1997. No terreno, equipas forenses recolheram impressões digitais e amostras de ADN para identificar os invasores. O primeiro detido, quarta-feira de manhã, foi Poon Ho-chiu, de 31 anos, que tem a alcunha de “Pintor” por desenhar nas ruas durante as manifestações pró-democracia de 2014 (Movimento dos guarda-chuvas). “Quase todos os que invadiram o LegCo foram presos pela polícia em 2014”, explica Fowler. “Muitos não foram acusados por falta de provas. Sentem-se frustrados, pois mesmo quando protestam pacificamente são presos.”

Segunda-feira, no exterior do LegCo — onde, em 70 membros, 43 são pró-Pequim —, uma mensagem grafitada numa coluna confirmava esta leitura: “Foram vocês que me disseram que as marchas pacíficas não funcionam”. Lá dentro, um grafito junto à porta do refeitório dava mais uma pista sobre as motivações da invasão. “Como conseguem comer quando alguém morreu por vossa causa?” A mensagem alude a três suicídios relacionados com os protestos contra a nova lei. Faz amanhã uma semana, Zhita Wu, de 29 anos, funcionária num notário, atirou-se de uma ponte. “Gostava de ver a vossa vitória. Não posso ir à manifestação de 1 de julho, perdi toda a esperança”, escreveu no Facebook.

Na véspera, a universitária Lo Hiu-yan escreveu na parede de um 24º andar: “Exigimos a total retirada da lei, o fim da designação de ‘tumultos’ para os protestos do dia 12 [reprimidos pela polícia], a libertação dos estudantes, a demissão de Carrie Lam [chefe do Governo] e a punição da polícia”, exigiu. “Por favor, continuem a persistir.” Antes de mergulhar no abismo, fotografou a mensagem e publicou-a no Instagram.

Polícia ausente

Durante a invasão ao LegCo, Jeffie Lam, jornalista do “South China Morning Post”, escrevia no Twitter: “Pan-democratas [deputados pró-democracia] tentaram persuadir os manifestantes a não invadir, mas muitos estão dispostos a sacrifícios independentemente das consequências [arriscam mais de dez anos de prisão]. Culpam-se por não fazerem o suficiente, o que já resultou em três casos de suicídio aparentemente relacionados com esta saga. É triste e alarmante.”

Terça-feira de manhã, o chefe da polícia negava à imprensa que tivesse sido montada “uma armadilha”. A ausência de agentes no momento em que a entrada do LegCo foi arrombada — e a sua reação apenas três horas depois — levantou suspeitas sobre a origem da violência, oportuna para a narrativa do Governo. “Os manifestantes estavam a abandonar o local, mas a polícia varreu a área com excecional rapidez, com gás lacrimogéneo e bastonadas. Isto levanta perguntas sobre porquê esperaram tanto tempo para agir”, tuitava James Griffiths, produtor da CNN no local.

Independentemente de ter sido ou não montada uma cilada, a tomada do Parlamento foi uma declaração: “Não temos alternativa”, após marchas, protestos permanentes, cercos a edifícios governamentais e da polícia, sem reação do Governo. “Eles dizem que a seguir à marcha de um milhão de pessoas [dia 9], Carrie Lam não se mexeu. E foi só com a escalada no dia 12, quando a polícia disparou balas de borracha, que aconteceu algo: a suspensão da lei [no dia 15]”, recorda Fowler. “Após dois milhões protestarem [a 16] e de, a não ser um seco pedido de desculpa, nenhuma exigência ter sido atendida, sentem que só terão respostas com ação.”

(IMAGEM Bandeira de Hong Kong WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 6 de julho de 2019

Hong Kong em corrida contra o tempo

O estatuto de autonomia do território acaba em 2047. Ao protestar, o povo tenta proteger as suas liberdades

“Imagine que Espanha decidia que há uma nação ibérica, reivindicava Portugal, impunha a língua espanhola ao povo português e dizia que para se ser ibérico você teria de adotar a identidade, cultura e tradições espanholas. E também que teria de esquecer a sua própria história e concentrar-se na história de Espanha.”

O exercício é proposto ao Expresso por um cidadão de Hong Kong a viver no Reino Unido. Através dele, pretende explicar o que se passa atualmente no território onde nasceu há 39 anos e que tem levado às ruas gigantescas manifestações populares — no protesto de domingo passado terão participado dois milhões de pessoas.

“Os chineses de Hong Kong são predominantemente falantes de cantonês, com cultura própria e uma identidade formada num território mais liberal e livre, onde podiam discutir abertamente tudo o que queriam, protegidos pelo Estado de direito. No entanto, Pequim está a construir uma nação e a tentar criar um único povo chinês”, diz Evan Fowler, diretor do jornal digital “Hong Kong Free Press”.

“Isto tem provocado mudanças nas escolas, substituindo o ensino do cantonês, como língua-mãe, pelo do ‘putonghua’ [mandarim]. Vemos lojas, especialmente de luxo, a usarem o ‘putonghua’”, conclui.

A avançada chinesa sobre Hong Kong começou a desbravar caminho em 1997, após a transferência para soberania chinesa daquela que era uma colónia britânica — cedida ao Império Britânico pela dinastia Qing no fim da Primeira Guerra do Ópio, em 1842.

Um país, dois sistemas

O território passou a gozar de um estatuto especial que lhe confere autonomia em relação a Pequim, sobretudo a nível económico (“um país, dois sistemas”), e permite que os cidadãos beneficiem de direitos não extensíveis aos habitantes da China Continental. Entre eles, a possibilidade de se manifestarem nas ruas, o que têm feito profusamente quando sentem as liberdades ameaçadas ou, como diz Evan Fowler, “as suas vidas invadidas”.

Os protestos destacam uma acérrima defesa das liberdades num território que não goza de democracia plena

Na mira dos megaprotestos atualmente em curso está uma polémica revisão à lei da extradição (que expira em julho de 2020) que passaria a permitir o envio de cidadãos de Hong Kong para serem julgados na China.

“As pessoas temem que, dadas as falhas dos sistemas legais da China — acusações falsas, recurso à tortura, confissões forçadas —, todos possam potencialmente ser presos e extraditados para a China para enfrentar acusações. Como se diz em Hong Kong, a lei da extradição produzirá ‘desaparecimentos’ legais, com agentes a raptarem pessoas e a levarem-nas para a China. Há muito medo. Hong Kong deixará de ser um lugar seguro, não será diferente do resto da China.”

Num plano mais sistémico, os protestos em Hong Kong revelam uma acérrima defesa das liberdades num território que não goza de uma democracia plena. O sufrágio universal popular apenas é usado para eleger os conselheiros distritais (que não têm poder político) e metade dos 70 lugares do Conselho Legislativo, o órgão onde ia ser debatida a nova lei da extradição até o Governo a ter suspendido por pressão da rua. O chefe do Executivo — que desde 2017 é Carrie Lam, de 62 anos — é escolhido por um colégio eleitoral, maioritariamente pró-Pequim.

“Este sistema é menos democrático do que aquele que Chris Patten [o último governador britânico de Hong Kong] implantou com a reforma de 1994”, diz Evan Fowler. “Está desenhado para assegurar a forma de governação de Hong Kong e que os interesses pró-Pequim beneficiem de uma maioria na assembleia legislativa. Por isso o povo de Hong Kong recorreu à obstrução para atrasar o processo legislativo. O protesto do dia 12 [dia em que o Conselho Legislativo ia começar a debater a nova lei e os manifestantes cercaram o edifício] foi um exercício de obstrução pública”, para boicotar a sessão da assembleia.

Um país, um sistema?

Em 2014, numa ação de protesto que ficaria conhecida como Movimento dos Guarda-Chuvas, o centro de Hong Kong foi ocupado e bloqueado durante 77 dias por manifestações permanentes. O motivo da contestação foi uma reforma do sistema eleitoral que daria ao povo o direito de voto na escolha do chefe do Executivo, mas subordinaria os candidatos ao cargo à aprovação de Pequim. A proposta seria rejeitada pelo Conselho Legislativo por 28 votos contra 8, com muitos legisladores pró-Pequim a saírem da sala para tentar evitar a votação.

Antes, Hong Kong era a ‘vanguarda’ que abriria caminho à China. Agora Hong Kong tem de mudar para se integrar na China autoritária

Ceder à pressão das ruas — neste caso, retirando a lei em definitivo e não apenas suspendendo-a — é incómodo para Pequim pelo sinal que dá a nível interno. Porém, o tempo corre a seu favor… O estatuto especial de que beneficia Hong Kong desde 1997 não pode ser alterado durante 50 anos. No território receia-se que, chegados a 2047, entre em vigor uma fórmula “um país, um sistema” que prive os habitantes das liberdades de que agora usufruem.

“Antes dizia-se que Hong Kong seria a ‘vanguarda’ que abriria caminho à China, enquanto esta se liberalizava. A esperança era de que a China se tornasse um país mais aberto, liberal e democrático, no sentido do que Hong Kong representa. Infelizmente, não me parece que a China tenha intenção de ir por esse caminho. Desde 2012 o sentimento é de que é Hong Kong que tem de mudar para se integrar na China autoritária em 2047”, conclui Evan Fowler.

“A questão é: quanto tempo demorará Hong Kong a ser despojado das suas diferenças fundamentais para garantir uma integração suave na China Continental?” É contra esse desígnio que o povo de Hong Kong se manifesta.

IMAGEM Megaprotesto em Hong Kong contra a lei da extradição, a 16 de junho de 2019 STUDIO INCENDO / WIKIMEDIA COMMONS

Artigo publicado no “Expresso”, a 22 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui

A vida ao ritmo do algoritmo

Num futuro próximo, além do bilhete de identidade, os chineses terão um código que atesta a sua credibilidade

Imagine um país onde, para poder fazer um seguro, matricular um filho numa escola privada ou comprar um bilhete de TGV, o cidadão vê a sua vida escrutinada ao mais ínfimo pormenor. Os sítios de internet que consulta, o que faz nos tempos livres, como se saiu nos exames médicos, que jornais compra, como se comporta ao volante, se costuma dar sangue — tudo é levado em linha de conta na hora de autorizar ou rejeitar o pedido.

Esse país já existe — é a República Popular da China — e essa forma de intrusão cívica está em acelerada concretização, através do Sistema de Crédito Social, um mecanismo de pontuação dos cidadãos que ora os recompensa ora os penaliza em função de comportamentos. “O Sistema de Crédito Social não é ficção científica, existe realmente”, diz ao Expresso a investigadora Meia Nouwens, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos de Londres. “Através dele, uma grande quantidade de informação pessoal, registos, geolocalização com recurso a câmaras e check-ins, transgressões da lei ou maus comportamentos diminuem a pontuação de um indivíduo. Nalguns casos, as pontuações decorrem de registos, noutros são calculadas por algoritmos, embora não haja transparência em relação à forma como os algoritmos fazem os cálculos.”

Muitas horas a jogar no computador podem rotular alguém de ocioso. Se atravessar a rua fora das passadeiras pode passar por indisciplinado. Já comprar artigos para bebé contribui para uma imagem responsável. Andar a pé indicia hábitos saudáveis. E há que ter cuidado com os amigos das redes sociais: maus exemplos podem prejudicar quem apenas os tem na lista.

A Baihe, maior plataforma chinesa de encontros, já permite que os utilizadores publiquem a sua pontuação. A aplicação Honest Shanghai, onde são avaliadas experiências — como comer num restaurante caro, por exemplo —, já usa tecnologia de reconhecimento facial. “A melhor forma de descrever o que o crédito social faz é dizer que é uma forma de tecnologia aumentada de ‘gestão social’”, diz Meia Nouwens.

Fotos de ‘cidadãos-modelo’

De iniciativa governamental, este projeto ambiciona traçar o perfil pormenorizado de cada um dos mais de 1300 milhões de habitantes da chamada China Continental — para já, Macau e Hong Kong ficam de fora. “O crédito social é uma ferramenta que torna o controlo político do Partido Comunista Chinês [PCC] inseparável do desenvolvimento económico e social da China”, explica ao Expresso a analista de política chinesa Samantha Hoffman, colaboradora do Instituto Australiano de Políticas Estratégicas. “Foi planeado para supervisionar, moldar e classificar comportamentos através de processos económicos e sociais.”

Este tipo de controlo — efetuado por agências estatais e por empresas privadas — não é uma inovação da liderança de Xi Jinping. No passado, cada cidadão tinha um ficheiro pessoal permanente (dang’an) que descrevia todo o seu percurso, nomeadamente a nível escolar e profissional. Hoje, a mais-valia é a tecnologia e “a capacidade de analisar grandes quantidades de dados em todo o país de uma forma mais holística e rápida”, explica Meia Nouwens. “Ainda não existe um sistema nacional único — é uma tarefa muito grande. Mas está decerto a ser testado.”

FRASE
“A China quer instalar um sistema orwelliano baseado no controlo virtual de todas as facetas da vida humana”
(Mike Pence, vice-presidente dos EUA, a 4 de outubro)

Em várias localidades chinesas, há programas-piloto a serem experimentados. Um dos laboratórios é a cidade de Rongcheng, na ponta leste da China. A cada um dos 740 mil residentes adultos é atribuído um crédito de 1000 pontos, que vai aumentando ou diminuindo consoante o seu comportamento. Uma multa de trânsito desconta cinco pontos. Atos heroicos acumulam 30 pontos.

Na via pública, há retratos enormes dos ‘cidadãos-modelo’. Um deles é a viúva Yuan Suoping, de 55 anos, que continuou a cuidar da sogra acamada após a morte do marido.

Em Shenzhen, no sul, há câmaras de vigilância com tecnologia de reconhecimento facial que identificam, por exemplo, peões que atravessam as ruas fora das passadeiras. Instantaneamente, são enviadas multas por mensagem. A tecnologia é desenvolvida pela startup local Intellifusion.

Na aldeia de Jiakuang Majia, no Leste, a pontuação é gerida de forma mais artesanal. Há fichas em papel onde funcionários do Estado vão fazendo contas: montar novos cestos no campo de basquetebol, oferecer uma televisão ao centro cívico, fazer voluntariado ou ter um filho a servir no Tibete dão pontos.

A nível nacional, este sistema já deixou em terra 5,4 milhões de chineses que pretendiam viajar em comboios de alta velocidade. Outros 17 milhões foram impedidos de comprar bilhete de avião. Em 2013, a justiça chinesa aprovou uma “lista negra” de devedores e estima-se que seja esse ranking que esteja na origem dessas proibições.

Para Pequim, há que promover a confiança na sociedade e na economia. Samantha Hoffman faz outra leitura: “O crédito social está ligado ao conceito de ‘construção espiritual da civilização’. A sua origem remonta à propaganda dos anos 1980 em resposta à desilusão popular com o PCC e à atração por ideias estrangeiras”. O objetivo é “impedir que versões alternativas da ‘verdade’ ameacem o poder do partido”.

FOTO: O reconhecimento facial é um dos elementos do sistema de vigilância chinês FOTO ILUSTRAÇÃO DA “TIME”, SOBRE UMA FOTO DE GILLES SABRIÉ / THE NEW YORK TIMES / REDUX

Artigo publicado no “Expresso”, a 9 de março de 2019 e republicado no “Expresso Online”, no mesmo dia, com o título “Não é ficção: a china quer pontuar todos os comportamentos de cada cidadão”. Pode ser consultado aqui