Três semanas após o ciclone Nargis, as carências persistem. Amanhã, doadores e Junta Militar vão conversar

Ban Ki-moon está desde quinta-feira em Rangum, onde amanhã uma conferência internacional organizada pelas Nações Unidas e pela Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) tentará angariar meios para aliviar o impacto devastador do ciclone Nargis.
A Junta Militar pede 11 mil milhões de dólares de ajuda à reconstrução. Mas na véspera da reunião, a expectativa não está em saber se a soma será conseguida mas antes em perceber de que forma se irão compatibilizar duas sensibilidades: por um lado, os doadores internacionais, particularmente os países ocidentais, insistem na transparência das operações de assistência aos 2,5 milhões de birmaneses carenciados; por outro, a Junta Militar que governa a Birmânia está empenhada em manter os funcionários ocidentais à distância, apenas confiando na ajuda proveniente dos países vizinhos — na quarta-feira, o regime recusou uma proposta da Administração norte-americana de transporte de ajuda em navios.
“Conseguimos convencer as autoridades acerca da necessidade de termos pessoal especializado em certas regiões e, esta semana, obtivemos permissão para quatro expatriados irem até à região do Delta”, afirmou ao Expresso Hugues Robert, chefe da unidade de emergência dos Médicos Sem Fronteiras (MSF).
No terreno desde as primeiras horas da tragédia, os MSF constatam, por experiência própria, o que a ONU denunciou esta semana: apenas 20% dos sobreviventes do ciclone Nargis receberam ajuda. “Começamos a dar assistência a umas populações fora da zona de Bogaliy, junto a pequenos rios, que ainda não tinham recebido qualquer ajuda”, diz Hugues Robert. “Fomos os primeiros a chegar lá, mas há muitos outros sítios sem qualquer assistência”.
Os MSF têm 270 pessoas no terreno — uma equipa movimenta-se de barco —, mas apenas 11 estão no Delta do rio Irrawaddy, a região mais atingida. Entrar na Birmânia é um processo burocrático demorado, mas uma vez lá dentro é necessário negociar toda e qualquer movimentação. E é só à medida que as equipas de ajuda vão circulando que é feito o diagnóstico ao nível dos problemas de saúde. Hugues diz que os MSF já detectaram diarreias, malária, dengue e sobretudo infecções respiratórias.
Refere ainda que a maior necessidade das populações prende-se com a falta de abrigos e com a escassez de água potável. “Estas populações estão habituadas a recolher a água das chuvas acumulada nos telhados e a consumir a água recolhida por bombas hidráulicas. Mas a maioria dos telhados foi destruída e as bombas foram contaminadas pelos caudais das inundações. Agora, com as monções, as populações começaram a recolher água boa para consumo, mas em pouca quantidade”, diz.
O início das monções expôs outra faceta deste drama birmanês. “Esta é a época em que costumamos ir para os campos semear o arroz. Seria a altura mais atarefada do ano, mas agora não temos trabalho”, lamentava-se um agricultor de 50 anos, da região de Laputta, ao jornal ‘Mizzima’. Outro agricultor, cuja família escapou ao ciclone, não sabe agora como alimentá-la: “Eu tinha 28 búfalos. Só quatro sobreviveram”.
AS VÍTIMAS DO NARGIS
78 mil birmaneses estão dados como mortos e 56 mil estão desaparecidos, segundo a ONU
Artigo publicado no “Expresso”, a 24 de maio de 2008
