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Um quer mais negócios, o outro mais segurança. Putin e Erdogan já não se reuniam… há 17 dias

Os presidentes da Turquia e da Rússia reuniram-se, esta sexta-feira, pela segunda vez em menos de um mês. Recep Tayyip Erdogan viajou até à cidade russa de Sochi, acompanhado por seis dos seus principais ministros. Ao recebê-lo, Vladimir Putin vaticinou que o encontro “abrirá uma página totalmente diferente nas relações turco-russas”

Encontraram-se há menos de um mês, numa cimeira em Teerão, mas os assuntos — e em especial os problemas — que partilham justificaram novo encontro. Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan, presidentes da Rússia e da Turquia, respetivamente, encontraram-se esta sexta-feira na cidade russa de Sochi, ribeirinha ao Mar Negro.

“Espero que hoje possamos assinar um memorando relevante sobre o desenvolvimento dos nossos laços comerciais e económicos”, afirmou o chefe de Estado russo, enquanto os dois se sentavam para conversar. “Acredito que [este encontro] abrirá uma página totalmente diferente nas relações turco-russas.”

Cercada por amplas sanções internacionais, a Rússia tem na Turquia (um gigante com mais de 85 milhões de habitantes) um parceiro económico precioso neste contexto de aperto. Já para Ancara, a Rússia é fundamental para poder defender o seu interesse no vespeiro da vizinha Síria. “Acredito que a nossa forma de lidar com os acontecimentos na Síria nesta altura também trará alívio à região”, disse Erdogan.

A mediação que deu estatuto a Erdogan

Erdogan chegou a Sochi com o seu estatuto internacional reforçado após mediar com êxito o acordo que permitiu a retoma, esta semana, das exportações de cereais ucranianos e de alimentos e fertilizantes russos. Esta sexta-feira, zarparam dos portos do Mar Negro três navios ucranianos carregados.

O acordo esboçou um primeiro entendimento entre Moscovo e Kiev, desde o início da guerra, e fez o mundo respirar de alívio perante a iminência anunciada de crise alimentar à escala global.

A cimeira de Sochi terá servido para Erdogan apresentar a Putin a contrapartida pelos seus esforços de mediação: a “luz verde” de Moscovo para mais uma investida militar sobre as forças curdas, no norte da Síria, do outro lado da fronteira.

Na Síria, a Rússia foi o garante da sobrevivência política do Presidente Bashar al-Assad e hoje controla grande parte do espaço aéreo do norte do país. A minoria curda síria, que se concentra nessa zona, partilha do sonho de um Estado próprio, o que implica a cedência de território por parte de vários países. A Turquia seria amputada da maior fatia.

“Estamos determinados em erradicar os grupos maus que visam a nossa segurança nacional desde a Síria”, afirmou Erdogan na cimeira de Teerão de 19 de julho, onde Rússia e Irão se manifestaram contrários a uma ofensiva turca.

Controladas pelas forças curdas, designadas por Unidades de Proteção Popular (YPG, na sigla inglesa), as cidades sírias de Tal Rifaat e de Manbij são potenciais alvos. As YPG têm ligações ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), um grupo separatista que tem, desde há décadas, uma rebelião armada contra o poder central turco e é considerado uma organização terrorista por Ancara e pela União Europeia.

O homem-forte turco não foi só

Paralelamente ao encontro cara a cara entre Putin e Erdogan, a cimeira de Sochi passou por reuniões sectoriais entre as duas delegações. O presidente turco levou consigo uma delegação de peso que incluia os ministros dos Negócios Estrangeiros, Defesa, Energia, Finanças, Comércio e Agricultura, e ainda o chefe dos serviços secretos.

Este aparato governativo indicia forte investimento numa nova relação bilateral. Mas, atendendo à atual conjuntura internacional, dois assuntos revelaram-se particularmente urgentes.

ENERGIA

No ano passado, a Rússia forneceu à Turquia 45% das suas necessidades de gás. Ancara quer minimizar a dependência das importações e está a desenvolver uma central nuclear a ser construída por uma empresa russa, no sul do país. “É muito importante que o calendário acordado funcione e que [a central de] Akkuyu seja concluída no prazo previsto”, disse Erdogan, antes da partir para Sochi. A conclusão do projeto está prevista para 2025.

ARMAMENTO

Apesar de ter criticado a invasão russa da Ucrânia e de ter fornecido armas a Kiev, a Turquia desafinou da esmagadora maioria dos países ocidentais e não aplicou sanções à Rússia. Sochi revela que a relação tem potencial para crescer. Na guerra da Ucrânia, os drones Bayraktar TB2, de fabrico turco, revelaram-se uma arma poderosa para os ucranianos retardarem o avanço das forças russas.

Notícias recentes, que deram conta do interesse russo em adquirir drones de fabrico iraniano, expuseram a urgência que este assunto tem para Moscovo. Na cimeira de Teerão, Putin terá sugerido a Erdogan a instalação de uma fábrica de drones na Rússia. O impacto da proposta não ficará circunscrito aos dois países, já que a Turquia é membro da NATO.

(FOTO Recep Tayyip Erdogan e Vladimir Putin, em Sochi TWITTER DA PRESIDÊNCIA DA TURQUIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui

Putin, Raisi e Erdogan: três “amigos” em busca de uma ordem alternativa

Os presidentes da Rússia, Irão e Turquia reuniram-se em Teerão numa cimeira com múltiplos interesses. O turco Erdogan procurou apoios para a sua agenda síria, o iraniano Raisi garantias de alívio económico e o russo Putin quis mostrar ao Ocidente que tem amigos. O mundo assistiu, na expectativa de um anúncio do fim do bloqueio russo à exportação de cereais ucranianos, que (ainda) não surgiu

Ao 146.º dia de guerra na Ucrânia, Vladimir Putin saiu da sua zona de conforto e, pela primeira vez desde que ordenou a invasão, viajou para fora do território da antiga União Soviética. O Presidente russo já saíra do país, a 29 de junho, para participar na 6.ª Cimeira do Cáspio, em Asgabate, no Turquemenistão. Esta terça-feira, esteve em Teerão para encontros que envolveram também os Presidentes do Irão e da Turquia, respetivamente Ebrahim Raisi e Recep Tayyip Erdogan.

Esta cimeira Irão-Rússia-Turquia realizou-se dois dias depois de o Presidente dos Estados Unidos terminar a sua primeira visita ao Médio Oriente, muito marcada pela “ameaça iraniana”. Joe Biden esteve em Israel e na Arábia Saudita, que se projetam como pilares de uma coligação emergente na região do Golfo Pérsico destinada a conter precisamente o Irão e aliados.

Neste contexto, o encontro de Teerão constituiu uma espécie de contrapeso à iniciativa norte-americana. Em paralelo, foi uma demonstração de que a Rússia não está sozinha e que, apesar das sanções e do isolamento internacional que afetam vários sectores da sociedade, tem mercados alternativos para onde se projetar. Revelou também a influência de Moscovo em três dos grandes problemas da atualidade.

1. BLOQUEIO DOS CEREAIS UCRANIANOS

Desde o início da guerra na Ucrânia que a Turquia se tem afirmado como país que consegue abrir portas com igual facilidade em Moscovo e em Kiev. Foi, por isso, com naturalidade que Erdogan surgiu no papel de intermediário, junto de Putin, para tentar arranjar solução para o bloqueio à exportação de 20 milhões de toneladas de cereais ucranianos.

“Com a sua mediação, nós progredimos”, disse Putin a Erdogan, em Teerão. “Nem todos os assuntos relativos à exportação de cereais ucranianos através dos portos do Mar Negro foram resolvidos, mas haver progresso já é bom sinal.”

Antes disso, hove um compasso de espera, pois o dirigente turco entrou na sala cerca de um minuto depois do homólogo russo à espera cerca de um minuto. Com os jornalistas já presentes, foi visível o desconforto de Putin.

2. CONFLITUALIDADE NA SÍRIA

A guerra na Síria é o tema que, mais facilmente, justifica um encontro entre Putin, Erdogan e Raisi. Os países que os três homens lideram fazem parte, desde janeiro de 2017, do Processo de Astana, lançado na capital do Cazaquistão para reduzir o nível de violência armada no território. A iniciativa decorre em paralelo ao diálogo de Genebra, promovido pelas Nações Unidas, que visa negociar um futuro político pacífico para a Síria.

No terreno, Rússia e Irão são os maiores aliados do regime de Bashar al-Assad, que sobreviveu a mais de dez anos de guerra graças a esse apoio fundamental. Quanto à Turquia, é, por razões internas, forte opositora do dinamismo curdo, o que a leva, ocasionalmente, a realizar incursões no norte da Síria para travar as movimentações da minoria curda.

Recentemente, Ancara anunciou planos para mais uma ofensiva. Rússia e Irão não concodam e, esta terça-feira, foi o próprio Líder Supremo iraniano a dizê-lo a Erdogan. “O terrorismo tem de ser contrariado, mas um ataque militar na Síria beneficiará os terroristas”, disse o ayatollah Ali Khamenei, que ocupa posição hierárquica superior à do Presidente Raisi.

Há exatamente uma semana, o Conselho de Segurança das Nações Unidas prolongou a abertura do ponto de passagem de Bab al-Hawa, no noroeste da fronteira entre a Síria e a Turquia, por onde é canalizada a ajuda internacional. “É o único corredor humanitário em funcionamento. Havia mais três que, em 2020, foram vetados pela Rússia e acabaram por fechar”, comenta ao Expresso a eurodeputada Isabel Santos, que preside à delegação do Parlamento europeu para as relações com os países do Maxereque, entre eles a Síria.

“Este corredor humanitário é absolutamente imprescindível para o acesso das organizações humanitárias ao terreno. Serve uma população de mais de quatro milhões de pessoas. Só por este corredor passa uma média de 700/800 camiões com ajuda humanitária por mês. Em maio, atingiu-se os 1000 camiões”, transportando água potável, medicamentos, alimentos. “Sem esta ajuda humanitária, está-se a condenar à morte boa parte desta população.”

Rússia instrumentaliza ajuda humanitária

O corredor ficará aberto seis meses, findos os quais o Conselho de Segurança terá de votar outra resolução com vista ao prolongamento por mais meio ano. Foi a posição que prevaleceu, por pressão da Rússia, e que justificou a abstenção de França, Reino Unido e Estados Unidos. “Estes países entendiam — e bem — que o prazo estabelecido devia ser de um ano, por causa da programação da atividade das organizações não-governamentais” que estão no terreno. “Paira uma certa insegurança que, ao fim destes seis meses, possa não haver esse prolongamento”, comenta a eurodeputada.

A seu ver, é claro que “a Rússia está a fazer um jogo político”. A parlamentar socialista prossegue: “Toda a marca negativa que vem do conflito na Ucrânia é transportada para condicionar e servir como moeda de troca para o que se está a passar na Síria. Há uma instrumentalização política da ajuda humanitária”.

“Felizmente, a resolução foi aprovada, mas paira sobre as cabeças das pessoas que são assistidas, e que dependem em absoluto desta ajuda humanitária, a possibilidade de, passados seis meses, a Rússia decidir vetar o funcionamento deste corredor.”

3. DESACORDO SOBRE O NUCLEAR IRANIANO

Rússia e Irão são os países mais castigados por sanções internacionais em todo o mundo. Essa circunstância e as crescentes dificuldades económicas dela decorrentes empurram-nos na direção do outro, e de quem assuma na cena internacional uma amizade com ambos, como é o caso da Turquia.

“Infelizmente, devido à pandemia do coronavírus, o volume de comércio [entre Irão e Turquia] diminuiu significativamente, chegando agora aos 7000 milhões de dólares [valor semelhante em euros]. Acredito que com a determinação dos dois países, conseguiremos atingir o volume comercial de 30 mil milhões de dólares”, afirmou o Presidente turco, esta terça-feira, após encontrar-se com o homólogo iraniano. “Além disso, tomando medidas na área de petróleo e do gás natural, podemos acelerar esta situação.”

Teerão desespera por ver as sanções internacionais levantadas, o que só acontecerá no âmbito de um acordo internacional sobre o seu programa nuclear. Desde abril de 2021 decorrem negociações em Viena, visando a reativação do compromisso, ferido após a retirada dos Estados Unidos ordenada por Donald Trump. Mas o diálogo em que participam sete países tarda em produzir resultados.

Segunda-feira à noite, o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Amir Abdollahian, falou ao telefone com Josep Borrell, Alto Representante da União Europeia para a Política Externa e de Segurança. “A Casa Branca deve pôr de lado as suas exigências e dúvidas excessivas e, de forma realista, caminhar para se encontrar uma solução e se chegue a um acordo”, disse o iraniano ao espanhol. “E deve parar de repetir a abordagem ineficaz do passado e o comportamento improdutivo de recurso a pressões e sanções para influenciar.”

Apesar da insistência num acordo, é cada vez mais percetível que, para os ayatollahs, que governam o Irão desde 1979, as grandes oportunidades estão não no Ocidente, mas a leste, desde logo na Rússia e, por arrasto, na China. Mais ainda numa altura em que veem os inimigos Israel e Arábia Saudita unidos numa aliança improvável, promovida pelos Estados Unidos, e cujo cimento é “conter o Irão”.

(Ao centro, o Presidente iraniano, Ebrahim Raisi, foi o anfitrião dos homólogos russo, Vladimir Putin (à esq. na foto), e turco, Recep Tayyip Erdogan SERGEI SAVOSTYANOV / SPUTNIK / AFP /GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui