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Moon foi ao Norte, Kim irá ao Sul

Juntos pela terceira vez este ano, os líderes coreanos avançaram na desnuclearização e relançaram o diálogo com os EUA

Cerca de 80 milhões de coreanos — do Norte e do Sul, sem distinção — iniciam amanhã uma época festiva. Durante três dias, as famílias reúnem-se para celebrar o Chuseok, dia de ação de graças. Recuperam-se tradições gastronómicas e histórias antigas e, em especial, recordam-se os antepassados com saudade e respeito.

Na zona de Lisboa a comunidade coreana agendou esta comemoração para o próximo sábado, dia 29, com um piquenique, pelo meio-dia, no Parque Municipal do Cabeço de Montachique, em Loures. A viver em Portugal há mais de 30 anos, Byung Goo Kang, de 60, não faltará ao convívio. Além de celebrar a sua cultura, será um momento para partilhar com conterrâneos o que lhe vai na alma sobre as notícias que chegam da Península Coreana.

“Estou muito esperançado”, confidencia ao Expresso. “Esta cimeira presidencial entre as duas Coreias foi bastante diferente das anteriores, em 2000 e 2007. As partes esforçaram-se muito por criar e manter um ambiente de confiança e compromisso para que a paz chegue, por fim, à Península. Claro que na Coreia do Sul há partidos políticos que não estão de acordo com aquilo que o Governo diz ter alcançado. Pessoalmente, quero acreditar nos bons resultados.”

Kim Jong-un e Moon Jae-in, respetivamente líderes das Coreias do Norte e do Sul, reuniram-se esta semana, durante três dias, em Pyongyang, a capital norte-coreana. A terceira cimeira intercoreana do ano confirmou a vontade de um futuro unido e — ao serem acordadas novas medidas no sentido da desnuclearização da Península — contribuiu para aliviar a tensão que vinha minando a aproximação entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte.

DESNUCLEARIZAÇÃO: Medidas práticas, como exige Trump

Pela primeira vez, do diálogo intercoreano saíram passos concretos com vista à desnuclearização da Península. A Coreia do Norte comprometeu-se a encerrar, de forma permanente, o recinto de testes e a plataforma de lançamento de mísseis de Dongchang-ri, “sob a observação de peritos de países relevantes”, diz a Declaração de Pyongyang. Igualmente neutralizadas serão instalações nucleares em Yeongbyeon, se “os EUA tomarem medidas correspondentes de acordo com o espírito da declaração conjunta de 12 de junho”, assinada em Singapura por Kim Jong-un e Donald Trump. O documento não concretiza, mas sabe-se que, para a Coreia do Norte, é prioritário um tratado de paz que se sobreponha ao armistício assinado no fim da Guerra da Coreia (1950-53) e que garanta a segurança do país. “Concordamos em libertar a Península Coreana dos medos da guerra”, afirmou Moon Jae-in. “A Coreia sem nuclear não está longe.”

DESMILITARIZAÇÃO: Aliviar a tensão é a palavra de ordem

As Coreias partilham uma fronteira de quase 250 quilómetros, fortemente vigiada e militarizada. Num acordo complementar à Declaração de Pyongyang, assinado pelos ministros da Defesa, foram adotadas medidas para reduzir a tensão junto à fronteira e criar confiança entre os dois lados. Entre elas está a expansão da Zona Desmilitarizada dos atuais quatro para dez quilómetros de largura. Para prevenir incidentes aéreos, foi estabelecida uma zona de exclusão de 40 quilómetros de largura na zona ocidental da Península e 80 quilómetros a leste. Ficou decidido também o estabelecimento de uma zona-tampão marítima, para impedir confrontos navais, e ainda uma área de pesca conjunta. Os dois países decidiram parar com os exercícios militares perto da Linha de Demarcação Militar (fronteira efetiva) e retirar alguns postos de vigia fronteiriços. Estima-se que, desde a assinatura do Armistício de Panmunjom (1953), norte e sul-coreanos já se tenham envolvido em trocas de fogo 96 vezes. Dias antes da cimeira, Seul e Pyongyang lançaram outra ponte: acabaram com a comunicação por telefone e fax e abriram um escritório de ligação na cidade norte-coreana fronteiriça de Kaesong. Ali funcionários de Norte e Sul falam todos os dias, de olhos nos olhos.

COOPERAÇÃO: Pôr as famílias em contacto e organizar os Jogos Olímpicos

O drama das famílias separadas pela guerra não foi esquecido nesta cimeira. O Presidente sul-coreano é, ele próprio, filho de refugiados do Norte. As Coreias acordaram a abertura de uma “instalação permanente para encontros familiares” e a concretização de um sistema de comunicação através de vídeo para as famílias, impedidas de comunicar por meios próprios. Kim e Moon prometeram arregaçar as mangas para desenvolver ligações terrestres e ferroviárias até ao fim do ano, projetos industriais e turísticos e uma candidatura conjunta aos Jogos Olímpicos de 2032.

REUNIFICAÇÃO: Regresso a um passado com 5000 anos

A Declaração de Pyongyang refere uma única vez a palavra “reunificação”, mas não deixa margem para equívocos em relação ao que as duas Coreias pretendem: “Os desenvolvimentos em curso nas relações intercoreanas levarão à reunificação”, como é “aspiração e esperança de todos os coreanos”. Num discurso de sete minutos no Estádio 1º de Maio, perante 150 mil norte-coreanos, Moon abriu o coração e abordou o assunto: “Vivemos juntos durante 5000 anos e temos vivido separados durante apenas 70 anos. Peço a todos que acabem com essas hostilidades e deem um grande passo na direção da reunificação”, disse, emocionado, o sul-coreano, quarta-feira à noite, após assistir a um megaevento desportivo que envolveu mais de 100 mil participantes. “O Presidente Kim Jong-un e eu trabalharemos de mãos dadas para construir um novo país, com 80 milhões de pessoas na Coreia do Norte e do Sul. Avancemos juntos no sentido de uma nova era.” Moon foi ovacionado de pé. No mesmo dia, já Kim Jong-un anunciara que “em breve” visitará Seul, decisão tomada pelo próprio, que o homólogo sul-coreano encorajou. A confirmar-se, será a primeira visita de um líder da Coreia do Norte ao Sul.

WASHINGTON VOLTA A ABRIR PORTAS A PYONGYANG

Há apenas um ano, quando debutou na Assembleia Geral (AG) das Nações Unidas, Donald Trump ameaçou “destruir completamente a Coreia do Norte”. Uma guerra entre duas potências nucleares parecia iminente e a forma como o Presidente dos Estados Unidos desprezava Kim Jong-un — chamando-lhe “little rocket man” — não tornava previsível o encontro histórico entre ambos, meses depois, em Singapura. Na maratona de discursos que vai marcar o arranque da 73ª AG da ONU, que começa na próxima terça-feira, a intervenção de Trump será necessariamente diferente. “Recebemos notícias muito boas” das Coreias, reagiu o Presidente dos EUA, conhecida a Declaração de Pyongyang. “Reuniram-se e tivemos grandes respostas. Estamos a fazer avanços tremendos em relação à Coreia do Norte.” Em Nova Iorque, à margem da AG, a questão coreana merecerá importantes diligências diplomáticas: terça-feira, têm encontro marcado Trump e o sul-coreano Moon Jae-in; no dia seguinte o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, reúne-se com o seu homólogo norte-coreano, Ri Yong-ho. Se na frente intercoreana o processo de paz flui lento mas contínuo — com abraços cada vez mais fortes e sorrisos cada vez mais abertos entre Moon e Kim —, a presença dos EUA nesta negociação, motivada por razões históricas, pode pôr tudo em causa. Basta um tweet de Trump para deitar tudo por terra.

Artigo publicado no Expresso, a 22 de setembro de 2018