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A “joia da coroa” das presidências portuguesas

A Índia é assunto querido à diplomacia portuguesa. Foi em 2000, durante uma presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, que se realizou a primeira cimeira UE-Índia, em Lisboa. Este sábado, no Porto, uma nova edição tenta reatar as negociações comerciais entre ambas, paralisadas há oito anos. Para a UE, este caminho para a Índia revela a procura de alternativas à dependência da China. Para Portugal, é o continuar de uma relação histórica com mais de 500 anos. “Portugal pode desempenhar o papel de um facilitador especial e fazer a ponte entre a Índia e a Europa”, diz ao Expresso uma investigadora indiana

A Índia é um país tão grande e diversificado que a dúvida se instala com legitimidade: é a Índia um país ou será mais um continente? Em superfície, o mapa indiano engole os 16 territórios menores da União Europeia (UE). Já em termos populacionais, estima-se que dentro de cinco anos ultrapasse a China e se torne o país mais populoso do mundo.

É este colosso geográfico e demográfico que este sábado se vai ‘sentar à mesa’, ainda que de forma virtual, com a União Europeia. A cimeira decorrerá no Palácio de Cristal do Porto e foi, desde a primeira hora, rotulada por António Costa de “joia da coroa” da presidência portuguesa do Conselho da UE, em matéria de política externa.

“Tanto Portugal como a UE reconhecem que é necessário aprofundar as relações com a Índia para depender menos da China. Mas o desafio é que, ao contrário da China, a Índia tem sido um ator económico menos relevante e também relutante em relação à liberalização do comércio e dos investimentos, com negociações que se arrastam desde 2007, e que foram interrompidas em 2013”, comenta ao Expresso Constantino Xavier, investigador no Centro do Progresso Económico e Social de Nova Deli. “A cimeira de sábado deverá indicar um novo compromisso político para aprofundar a dimensão económica, reatando negociações.”

A relação entre a UE e a Índia — duas das maiores economias do mundo — formalizou-se em 1994, através de um Acordo de Cooperação bilateral. O objetivo maior de um acordo de livre comércio nunca viu a luz do dia, inviabilizado por divergências, sobretudo a nível das tarifas alfandegárias a pagar pela indústria automóvel e da livre circulação de determinadas categorias profissionais. A cimeira do Porto ambiciona desbloquear o impasse e relançar o diálogo.

COMÉRCIO UE-ÍNDIA

10º

lugar é a posição da Índia no ranking dos parceiros comerciais da União Europeia

posição é a que a União Europeia ocupa na lista de destinos das exportações indianas

“A Índia tem procurado aprofundar o seu relacionamento com a Europa desde meados dos anos 2000, como parte de um impulso geral na política externa indiana para diversificar as suas parcerias em todo o mundo. A novidade é que a Índia começou a envolver-se, além de Berlim, Paris e Bruxelas, com outros estados europeus, incluindo Portugal, Espanha, países nórdicos, da Europa Central e Oriental também”, diz ao Expresso a indiana Garima Mohan, investigadora no German Marshall Fund. “Enquanto a Índia tenta recuperar das consequências da pandemia, precisará de trabalhar mais com a Europa, também na questão da distribuição equitativa de vacinas.”

Tanto para Bruxelas como para Nova Deli, a cimeira do Porto servirá para tomarem o pulso uma à outra. “Do lado europeu, vai permitir aferir quão tangível é o interesse da Índia em cooperar mais com a UE, e em que setores a cooperação pode ser acelerada”, comenta ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense.

“Para a Índia, permite a Modi aferir das intenções da UE no que toca a objetivos geopolíticos e geoeconómicos. Nova Deli tem a grande expectativa de a cimeira resultar num empurrão ao Acordo de Cooperação de 1994 e procura alavancar a iniciativa ‘Make In India’ (que tem por mote ‘Zero Defeitos e Zero Efeitos’), através da qual se posiciona como alternativa viável à ideia da China como fábrica do mundo. A Índia procura parceiros que a confirmem como uma potência regional emergente, alicerçada na ideia de tailored-by-size diplomacy [diplomacia à medida].”

2000, 2007 e 2021

A confirmar-se o relançamento das negociações entre europeus e indianos, será mais um marco na afirmação de Portugal como ponte entre a Índia e a Europa, alicerçada numa relação histórica bilateral com mais de 500 anos.

“O facto de este histórico encontro de líderes decorrer sob a presidência portuguesa tem sido amplamente notado na Índia”, diz Mohan. “Portugal pode desempenhar o papel de um facilitador especial e fazer a ponte entre a Índia e a Europa.”

Foi durante uma presidência portuguesa do Conselho da UE, a 28 de junho de 2000, que se realizou a primeira cimeira UE-Índia, em Lisboa. Foi ainda na presidência portuguesa do segundo semestre de 2007 que foram lançadas as negociações com vista a um acordo de comércio livre, que agora se tenta retomar.

“A Índia é a maior democracia à escala global e nós temos de valorizar, tendo um relacionamento cada vez mais estreito, designadamente pelo contributo que poderemos dar em conjunto para componentes fundamentais dos processos de transição climática e digital. Falo do desenvolvimento da inteligência artificial ou da ciência de dados. Europa e Índia podem desenvolver uma aliança estreita para o futuro.”

António Costa primeiro-ministro português

“Portugal tem desempenhado um papel importante na aproximação entre Nova Deli e Bruxelas, agindo essencialmente como facilitador de diálogo”, acrescenta Tiago André Lopes. “O facto de ser, uma vez mais, em Portugal que se discutem as relações entre o bloco europeu e o gigante asiático permite-nos, como anfitriões, gozar de um canal de influência não apenas como moderadores da discussão, mas como parte ativa na fixação da agenda. O sucesso desta cimeira irá firmar o crédito de Portugal no seio da UE como ponte e porta-voz dos 27 na relação com a Ásia e com África.”

A cimeira deste sábado não pode deixar de ser enquadrada na Nova Estratégia de Cooperação no Indo-Pacífico, que a UE lançou a 19 de abril e que tentará injetar “estabilidade”, “segurança”, “prosperidade” e “desenvolvimento sustentável” numa região que é palco de grande concorrência geopolítica e revela muitas tensões. “Durante a sua presidência, Portugal tem tido um papel pioneiro na revisão da política europeia para a Ásia, que nos últimos anos tem pendido para a China, culminando no polémico acordo de investimentos de 2020”, diz Constantino Xavier.

“Portugal cedo reconheceu que é necessária uma política para a Ásia mais equilibrada, não só com a Índia, mas também com o Japão, e que essa diversificação europeia contribui para uma Ásia mais multipolar e estável. É nesse sentido que a UE está a assumir um perfil mais estratégico na Ásia, além de uma mera abordagem mercantilista, focada sobretudo nos grandes negócios da China. Seja na Índia ou no resto da Ásia, esse papel de peso da UE é recebido de braços abertos, como mais uma alternativa para preservar uma Ásia multipolar, menos exposta ao crescente poderio e centralidade da China.”

A ÍNDIA E PORTUGAL

0,2%

das exportações portuguesas tiveram como destino a Índia, em 2020. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), a Índia é o 46º cliente das exportações portuguesas de bens

0,9%

do total de importações portuguesas vêm da Índia. É o 15ª mercado onde mais Portugal compra

17.619

cidadãos estrangeiros de origem indiana vivem em Portugal, segundo o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) referente a 2019. São, na esmagadora maioria (13.235), homens

“O fator China é uma explicação importante para a aproximação entre UE e Índia. As perceções europeias sobre a Índia têm mudado à medida que aumentam as tensões com a China”, diz Garima Mohan. “Revigorar a parceria com a Índia é também um pilar fundamental da estratégia Indo-Pacífico da UE.”

“Da mesma forma, a resposta da Índia ao desafio da China concentrou-se no fortalecimento de parcerias, dissociação económica e diversificação. Isso inclui não só o fortalecimento dos laços com os seus parceiros do grupo Quad (Austrália, Japão e Estados Unidos) e com o Sueste Asiático, mas também com a Europa. Não é por acaso que assuntos da agenda UE-Índia — como a segurança marítima no Oceano Índico, alternativas à Belt and Road Initiative (Nova Rota da Seda), tecnologias emergentes, 5G e Inteligência Artificial —, todos têm elementos de competição com a China.”

A relação entre europeus e indianos tem potencial para exercer um impacto geopolítico maior. “UE e Índia também procuram liderar esforços para proteger a ordem internacional da crescente rivalidade sino-americana”, alerta Constantino Xavier.

“Seja na luta contra as alterações climáticas, na regulação das novas tecnologias ou no desenvolvimento sustentável, Bruxelas e Nova Deli estão a coordenar posições comuns para oferecer soluções globais, especialmente pela via do multilateralismo. Ambas reconhecem que para depender menos dos Estados Unidos ou da China, têm de aprofundar as suas relações e coordenar as suas políticas com outras potências e blocos regionais.”

É todo este longo caminho que a presidência portuguesa do Conselho da UE tem promovido e que a cimeira do Porto quer ajudar a trilhar.

(FOTOS A 24 de junho de 2017, António Costa recebeu Narendra Modi, no Palácio das Necessidades, em Lisboa GABINETE DO PRIMEIRO-MINISTRO DA ÍNDIA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui