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O indisfarçável incómodo dos súbditos caribenhos em relação ao chefe de Estado sentado em Londres

Carlos III terá um grande desafio a milhares de quilómetros de distância do Palácio de Buckingham. Na região das Caraíbas, vários países que o reconhecem como chefe de Estado contestam, cada vez mais, esse vínculo e defendem a opção pela república. Nos últimos anos, casos como o assassínio de George Floyd, nos Estados Unidos, ou visitas reais desastradas aos territórios contribuíram para esse sentimento. Ao Expresso, um professor jamaicano diz que no país se olha para a monarquia britânica como “um fardo insultuoso explicitamente racista”, que não trouxe “nada de bom”

Mapa dos países membros da Commonwealth BRITANNICA

Ao longo da História, a primazia de alguns poderes políticos sobre grandes extensões geográficas cunhou, na terminologia das relações internacionais, a expressão “império onde o sol nunca se põe”. O rótulo chegou a aplicar-se ao império britânico, com domínios, colónias, protetorados, mandatos e territórios governados ou administrados por Londres desde o Canadá até à Nova Zelândia.

O império não resistiu aos ventos da descolonização, mas não erodiu completamente. Hoje, a Commonwealth — originalmente denominada Comunidade Britânica de Nações — é um espaço de cooperação atrativo, que integra 56 países, de colonização britânica e não só. Os francófonos Gabão e Togo foram as últimas adesões, em junho de 2022. O lusófono Moçambique aderiu em 1995.

No caso específico de 14 membros, há uma ligação umbilical que se mantém com a antiga metrópole e que não se rompeu com a independência desses territórios: continuam a reconhecer o monarca britânico como seu chefe de Estado.

14 PAÍSES SÚBDITOS

  • AMÉRICAS E CARAÍBAS (9): Antígua e Barbuda, Bahamas, Belize, Canadá, Granada, Jamaica, Santa Lúcia, São Cristóvão e Névis, São Vicente e Granadinas.
  • PACÍFICO (5): Austrália, Nova Zelândia, Papua Nova Guiné, Ilhas Salomão e Tuvalu.

A substituição no trono britânico de Isabel II — uma líder respeitada — por Carlos III — uma incógnita — está a agitar alguns desses países, que, nos últimos anos, vêm expressando posições antimonárquicas e sonhos republicanos. Esses desejos são especialmente vocais nos oito Estados súbditos na região das Caraíbas, a começar pela Jamaica.

“A morte de Isabel II vai acelerar um diálogo crescente e, em última instância, uma rutura prometida com a coroa britânica enquanto chefe de Estado jamaicano”, defende ao Expresso Jahlani Niaah, professor na Universidade de West Indies, sediada em Kingston (Jamaica).

“Há críticas crescentes dos nacionalistas caribenhos sobre as razões que levaram cidadãos que passaram por histórias de exploração e opressão colonial às mãos dos britânicos a decidirem, voluntariamente, ficar em segundo plano em relação a uma instituição racista representada pela coroa pelo tratamento dado a povos não europeus.”

No dia seguinte à morte de Isabel II, “The Gleaner”, um dos principais jornais da Jamaica, noticiava em manchete: “A morte da rainha é o fim de uma era” e “vai facilitar a rutura da Jamaica com a monarquia”.

No país de Bob Marley, há muito que a submissão ao rei de Londres deixou de ser uma questão meramente académica. A 7 de junho deste ano, Marlene Malahoo Forte, a ministra dos Assuntos Legais e Constitucionais, informou que o processo de transição do país para uma república “começou formalmente”, com a formação de um Comité de Reforma Constitucional, que inclui membros da oposição.

Mal haja acordo no Parlamento, o assunto será submetido a referendo popular. As autoridades de Kingston querem concluir o processo a tempo das eleições gerais previstas para 2025.

Um farol chamado Barbados

“A decisão tomada em 2021 pelo Estado irmão de Barbados, tradicionalmente mais ligado à cultura britânica [era chamado “Little England”], no sentido de remover a rainha [da chefia de Estado], amplificou o debate”, continua Niaah. “E deixou antever ações a nível regional em torno do absurdo que é a coroa e a missão civilizadora da Grã-Bretanha por via de ter um chefe simbólico a morar no Palácio de Buckingham e de haver assuntos de Estado a precisar de aprovação desse gabinete.”

A 6 de outubro de 2021, uma emenda constitucional aprovada por unanimidade no Parlamento de Barbados transferiu para um recém-criado Presidente as competências até então nas mãos do governador-geral do território. Independente do Reino Unido desde 1966, Barbados tornou-se uma república, como já o são, na região, Guiana, Dominica e Trinidad e Tobago.

No mês seguinte, o príncipe Carlos marcou presença na tomada de posse da primeira Presidente de Barbados, Sandra Mason, numa cerimónia em Bridgetown. No uso da palavra, pôs o dedo na ferida: “Desde os dias mais sombrios do nosso passado e da terrível atrocidade da escravatura, que mancha para sempre a nossa história, o povo desta ilha forjou o seu caminho com extraordinária coragem”.

“O passar das décadas ensinou-nos que chegou o tempo de São Cristóvão e Névis rever o seu sistema de governo monárquico e começar o diálogo para avançarmos para um novo estatuto”

Shawn Richards
vice-primeiro-ministro de São Cristóvão e Névis, a 24 de abril de 2022

Para os povos das Caraíbas cujo chefe de Estado é o monarca britânico, esta subserviência em nada corresponde às suas atuais necessidades e aspirações. Igualmente, a instituição tem falhado em tomar medidas que compensem os povos, de alguma forma, pelo histórico papel da coroa no tráfico de escravos.

“Há uma noção comum de que estes são Estados anões e imaturos e que são incapazes de se autogovernarem”, diz Jahlani Niaah. “Mais importante ainda, o soberano permaneceu impassível perante a necessidade de assumir a responsabilidade pelo sofrimento prolongado dos povos coloniais, recusou envolver-se em qualquer forma de justiça reparadora e devolver objetos do património cultural.”

Comparação com George Floyd

No rasto da Jamaica, também o arquipélago de Antígua e Barbuda anunciou recentemente a intenção de convocar um referendo à possibilidade de se tornar uma república. “Provavelmente nos próximos três anos”, disse o primeiro-ministro Gaston Browne já após a morte de Isabel II. “Não se trata de um ato de hostilidade”, explicou, “mas a etapa final para completar o círculo da independência, para assegurarmos que somos uma nação verdadeiramente soberana”.

Niaah desvenda o porquê deste crescente incómodo caribenho: “A distração que representa a vergonhosa exibição de opulência extraída de legados roubados, apresentados como laços empáticos para com uma comunidade [Commonwealth], está a ser cada vez mais encarada com menos ignorância e mais como uma marca à volta do nosso pescoço, um fardo insultuoso explicitamente racista que não nos trouxe nada de bom”.

O professor recua até 2020 quando, nos Estados Unidos, a morte de um negro asfixiado pelo joelho de um polícia teve repercussão mundial. Na Jamaica, o caso voltou os holofotes para uma insígnia do governador-geral, com a imagem de S. Miguel Arcanjo a pisar Satanás, que surge caracterizado em tudo parecido a um homem negro.

Esta polémica, “ao surgir na esteira do caso George Floyd e do movimento #Blacklivesmatter [nos EUA], desencadeou mais desdém por parte dos locais em relação à flagrante audácia dos legados racistas sufocantes que os laços com o Reino Unido representam”.

O governador-geral Patrick Allen comprometeu-se a não mais usar a medalha de honra da Ordem de São Miguel e de São Jorge, que lhe tinha sido presenteada por Isabel II. Houve mesmo apelos para que a insígnia fosse redesenhada.

A realeza britânica é hoje a face visível de um passado colonial que os caribenhos querem esquecer, e nem as gerações mais jovens não escapam ao rótulo. Este ano, dois casais reais perceberam-no da pior forma. Em março, os duques de Cambridge, William e Kate, realizaram um périplo por Belize, Bahamas e Jamaica. No mês seguinte, os condes de Wessex, Eduardo e Sofia, deslocaram-se a Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas e Antígua e Barbuda.

O pretexto das visitas foi a comemoração do Jubileu de Platina de Isabel II — o 70.º aniversário da sua coroação. Mas estas ofensivas de charme foram percecionadas por muitos locais como manifestações de superioridade e transformaram-se em oportunidades para expressarem a revolta.

À chegada ao Belize, o neto de Isabel II e a mulher viram ser cancelado o primeiro ponto do programa — a visita à aldeia de Indian Creek, para visitar uma fazenda de cacau —, perante a indignação de residentes. “Não queremos que eles aterrem na nossa terra, é essa a mensagem que queremos enviar”, disse Sebastian Shol, o chefe da aldeia, citado pelo jornal britânico “Daily Mail”.

O Belize é outro país que pode vir a dispensar o chefe de Estado instalado em Londres. As autoridades já anunciaram a intenção de realizar uma revisão constitucional e, em março, no rasto da visita real, o ministro da Função Pública, Reforma Constitucional e Política, Henry Charles Usher, afirmou no Parlamento: “Talvez seja hora do Belize dar o próximo passo para realmente possuir a independência. É um assunto que o povo de Belize deve decidir.”

Um possível efeito dominó

Por ser, entre os oito, o Estado maior e o mais populoso, a Jamaica é a referência. Se optar pela república, é possível que origine um efeito dominó e leve outros Estados caribenhos a desvincularem-se da coroa britânica.

Nas vésperas da visita dos duques de Cambridge, 100 personalidades do país divulgaram uma carta aberta exigindo a Londres um pedido de desculpa e o pagamento de compensações pelos anos de escravatura e fazendo um alerta ao neto de Isabel II, que é hoje o próximo na linha de sucessão a Carlos III: “Durante os seus 70 anos no trono, a sua avó não fez nada para reparar e expiar o sofrimento dos nossos antepassados que ocorreu durante o seu reinado e/ou durante todo o período de tráfico britânico de africanos, escravatura, servidão e colonização.”

Durante a escala de William e Kate na Jamaica, houve mais momentos que mexeram com a sensibilidade dos jamaicanos ansiosos por virar a página da relação com o Reino Unido. Os príncipes foram especialmente criticados por terem cumprimentado locais através de vedações em arame, durante a sua deslocação a Trenchtown, uma favela nos subúrbios de Kingston onde nasceram e viveram grandes cantores de reggae.

Igualmente, também o desfile de pé na caixa aberta de um Land Rover pareceu uma recriação de visitas de Isabel II e da nostalgia do passado colonial. Nas ruas, o casal foi acusado de beneficiar do “sangue, suor e lágrimas” de escravos.

Eduardo e Sofia também ouviram o que não queriam em Antígua e Barbuda. O primeiro-ministro Gaston Browne pediu-lhes que usassem a sua “influência diplomática” para que fosse feita “justiça reparadora”. E explicou o porquê de não haver “cartazes no ar” a recebê-los. “Terão notado que aqui não há protestos”, disse, acrescentando que o país acredita numa “discussão aberta e muito objetiva”.

“Continuamos a ter a rainha como chefe de Estado, mas terei de dizer que aspiramos, em algum momento, a tornarmos-nos uma república”, disse Browne. Viria a público que o filho mais novo de Isabel II disse não ter tomado notas dos pedidos de Browne.

Já na escala em São Vicente e Granadinas, houve mesmo cartazes no ar a exigir medidas compensatórias.

Mais recentemente, no Reino Unido, o chamado escândalo Windrush contribuiu para cavar ainda mais o fosso entre os súbditos caribenhos e a coroa. Por força do endurecimento da política de imigração no Reino Unido, aprovado em 2012, centenas de descendentes da chamada geração Windrush foram erradamente detidos, deportados ou viram direitos serem-lhe negados.

Tratava-se de caribenhos que chegaram ao Reino Unido entre 1948 e 1971, a convite do governo britânico, para suprirem carências no mercado de trabalho justificadas com a II Guerra Mundial. Em junho de 1948, cerca de 500 jamaicanos chegaram a bordo do navio MV Empire Windrush, que atracou na cidade inglesa de Tilbury. O rótulo aplicado a esta geração vem daí.

Para acentuar o sentimento discriminatório, em 2003 o Reino Unido passou a exigir vistos aos jamaicanos e, consequentemente, o pagamento de taxas de entrada incomportáveis. Para os caribenhos, foi a confirmação de que a suposta relação especial é afinal inútil.

A coroa “está a ser cada vez mais percecionada por todo o Caribe [outra designação para Caraíbas] como uma instituição ofensiva que investe pouco em fazer a coisa certa para aqueles que são vítimas do seu poder”, conclui o professor Niaah. “Esta é a instituição britânica chave. A política britânica usa a Coroa como instrumento para tirar o pulso aos reinos sob hegemonia britânica, medir o sucesso da violência polida da sua missão civilizadora.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Mudança de monarca incentiva súbditos que preferem a república

Carlos III é chefe de Estado de 14 países além do Reino Unido. Vários, sobretudo nas Caraíbas, querem cortar esse laço e enterrar o passado colonial

Bandeira da Comunidade das Nações (Commonwealth) WIKIMEDIA COMMONS

A substituição de Isabel II — uma líder respeitada — por Carlos III — uma incógnita — está a agitar alguns dos 14 países que, apesar de independentes, mantêm o monarca britânico como chefe de Estado. O epicentro da contestação à monarquia localiza-se na região das Caraíbas.

“A morte de Isabel II vai acelerar um diálogo crescente e, em último caso, uma rutura prometida com a coroa britânica enquanto chefe de Estado da Jamaica”, diz ao Expresso Jahlani Niaah, da Universidade de West Indies (Jamaica). “Há críticas crescentes dos nacionalistas caribenhos em relação às razões que levaram cidadãos que passaram por histórias de exploração e opressão colonial por parte dos britânicos a decidir voluntariamente ficar em segundo plano em relação a uma instituição racista representada pela coroa ao nível do tratamento dado a povos não europeus.”

Um farol chamado Barbados

A realeza britânica é hoje o rosto de um passado de escravidão que os caribenhos querem esquecer. No dia seguinte à morte de Isabel II, “The Gleaner”, um dos principais jornais jamaicanos, titulava: “A morte da rainha é o fim de uma era” e “facilitará a rutura da Jamaica com a monarquia”.

Há muito que a submissão a Londres deixou de ser uma questão académica. A 7 de junho deste ano, Marlene Malahoo Forte, ministra dos Assuntos Legais e Constitucionais, disse que o processo de transição para uma república “começou formalmente”. Kingston quer concluir o processo até às eleições de 2025.

“A decisão tomada em outubro de 2021 pelo Estado irmão Barbados, tradicionalmente mais ligado à cultura britânica (era chamado Little England), no sentido de remover a rainha da chefia de Estado, amplificou o debate”, diz Niaah. “E deixou antever ações a nível regional em torno do absurdo que é a coroa e a missão civilizadora da Grã-Bretanha por via de um chefe simbólico a morar no Palácio de Buckingham e de haver assuntos de Estado a precisar de aprovação desse gabinete.”

No rasto da Jamaica, também o arquipélago de Antígua e Barbuda planeia convocar um referendo à república, “provavelmente nos próximos três anos”, disse o primeiro-ministro Gaston Browne. “Não se trata de um ato de hostilidade”, explicou, “mas a etapa final para completar o círculo da independência e assegurar que somos uma verdadeira nação soberana”.

A insignificância política dos países das Caraíbas pode levar à tentação de se relativizar o impacto de um possível divórcio da coroa britânica. Mas esse poderá ser também o rumo de grandes países como a Austrália. Esta semana, o primeiro-ministro Anthony Albanese — um republicano confesso que, pela primeira vez, dotou o governo de um “ministro-adjunto para a república” — descartou haver urgência no assunto. “Questões maiores sobre a nossa Constituição não são chamadas agora”, disse na britânica Sky News.

Um insulto aos indígenas

Uma sondagem divulgada quatro dias após a morte de Isabel II revelou que 60% acham que a Austrália deve permanecer uma monarquia. “Os republicanos defendem que o país deve ter um chefe de Estado australiano, que manter a monarquia é um insulto aos primeiros australianos (indígenas), devido ao passado colonial, e que ‘é hora’ de mudar”, diz ao Expresso Cindy McCreery, da Universidade de Sydney.

Alerta para o facto de o inquérito ter sido feito na emoção da proclamação do novo rei. “Suspeito que as atitudes mudem com o tempo e que a monarquia se torne menos popular. Mas não haverá um referendo sobre a questão republicana nos próximos três anos. No primeiro mandato, Albanese quer concentrar-se em introduzir uma voz indígena no Parlamento.”

Na vizinha Nova Zelândia, a república parece ser também uma questão de tempo. A primeira-ministra, Jacinda Ardern, já disse acreditar que o país a adote no seu tempo de vida. Já o maior entre os grandes não hesita. “Afirmamos a nossa lealdade ao novo rei do Canadá, sua majestade o Rei Carlos III, e oferecemos-lhe o nosso apoio total.” O Canadá foi o país mais visitado por Isabel II, num total de 24 deslocações.

Artigo publicado no “Expresso”, a 16 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui