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O inexperiente Kim segue no poder, já lá vão 10 anos

Ao apostar, em simultâneo, no desenvolvimento da economia e do programa nuclear, Kim Jong-un mergulhou o país num círculo vicioso

(IMAGEM Kim Jong-un, líder da Coreia do Norte VECTORPORTAL)

Quando Kim Jong-un (KJU) subiu ao poder, muitos invocaram a sua juventude, inexperiência e a forma súbita como herdou a presidência — após a morte do pai de ataque cardíaco, faz 10 anos na próxima sexta-feira — para lhe perspetivarem um mandato curto. “Especulou-se muito quanto à possível queda iminente do regime”, comenta ao Expresso Rita Durão, especialista em estudos asiáticos. “Dez anos depois, o regime perdura, apesar de processos de transição de poder, desastres naturais, sanções económicas internacio­nais e até a pandemia.”

Para esta doutoranda em Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa, o principal sucesso da liderança de KJU “é a capacidade de resiliência da Coreia do Norte, que prova, ano após ano, que, apesar das dificuldades, está cá para ficar”, na senda do que aconteceu com os seus antecessores.

Um ‘negócio de família’

Desde a fundação do país, em 1948, que a liderança é um ‘negócio de família’. Oficialmente uma república, a Coreia do Norte é governada ao estilo de uma dinastia, com o poder a passar de pai para filho por morte do primeiro: Kim Il-sung mandou até 1994, Kim Jong-il até 2011 e KJU desde então.

“Kim Il-sung [avô do líder] e Kim Jong-il [pai] viveram num contexto histórico diferente e, a certos níveis, mais complexo”, continua Rita Durão. “As experiências na luta contra o imperialismo japonês [1910-1945] e na Guerra da Coreia [1950-1953] marcaram o regime de Kim Il-sung, enquanto Kim Jong-il assumiu o poder no final da Guerra Fria, após a queda da URSS e o desafio da adaptação do país a uma nova ordem internacional.”

O programa nuclear é simultaneamente a solução e a base de vários problemas com que o regime se depara

Chegado ao poder com 29 anos, KJU revelou-se um líder “menos ideológico do que o seu pai ou avô e mais extrovertido do que o pai”, acrescenta ao Expresso Jenny Town, diretora do “38 North”, um site de análise sobre a Coreia do Norte que vai buscar o nome ao paralelo que divide a península coreana em dois países. “Enquanto os antecessores construíram a sua legitimidade na condução do país através de conflitos e adversidades extremas, KJU, sem essa experiência, tem tentado construir um legado de prosperidade económica, e não apenas de sobrevivência.”

Com memórias da “Marcha Árdua” — um período de fome que afetou milhões de norte-coreanos entre 1994 e 1998, era o pai Presidente —, KJU assumiu a missão de fazer com que o povo não tivesse mais de morrer à míngua. Mas esse objetivo permanece uma intenção.

A ameaça da fome

Após uma visita à Coreia do Norte para avaliar o impacto da grave seca de 2018, o Programa Alimentar Mundial da ONU calcula que 11 milhões dos 25 milhões de norte-coreanos sofram de subnutrição. O cálculo não considera ainda os efeitos da pandemia. “A Coreia do Norte foi dos primeiros países a fechar fronteiras para evitar a entrada do vírus”, recorda Rita Durão. “A imposição de sanções internacionais — que não foram levantadas, como a Coreia do Norte pediu —, o impacto da pandemia e o aparente abandono de reformas económicas fazem temer pelo futuro económico do país e pelo possível surgimento de novo período de fome.”

“O acesso aos alimentos é uma preocupação séria. Crian­ças e idosos vulneráveis correm o risco de morrer à fome”, alertou Tomás Ojea Quintana, relator da ONU para os direitos humanos na Coreia do Norte, num relatório de 8 de outubro.

O acesso aos alimentos é uma preocupação séria. Crianças e idosos vulneráveis correm o risco de morrer à fome

A prioridade dada por KJU à proximidade com o povo, à promoção do bem-estar e à prosperidade não significou a abertura do país nem a rejeição do programa nuclear. “Comparativamente aos líderes anteriores, KJU é quem mais tem apostado no desenvolvimento do programa nuclear e balístico. Acredita ser esse o meio que lhe assegura a sobrevivência face a ameaças externas, nomea­damente dos Estados Unidos”, diz a analista portuguesa. “É também com KJU que vemos o programa nuclear desenvolver funções adicionais para o regime, tornando-se fonte de prestígio a nível externo e projetando a imagem da Coreia do Norte como potência nuclear, como os Estados Unidos, China e Rússia.”

“KJU parece ser um líder pragmático e disposto a correr riscos, embora a forma como conduziu o país durante a pandemia e antes, ao longo dos fracassos diplomáticos de 2018/2019, tenha enorme impacto na forma como governará daqui em diante”, diz Jenny Town. KJU coprotagonizou manchetes ao realizar cimeiras com os homólogos da Coreia do Sul e Estados Unidos, Moon Jae-in e Donald Trump. Porém, nenhum diálogo frutificou e hoje vinga a desconfiança de sempre.

Nuclear: bom e mau

O desenvolvimento simultâneo da economia e do programa nuclear e balístico mergulham o país num “círculo vicioso”, continua Rita Durão. “A Coreia do Norte realiza testes devido à ameaça externa. O programa nuclear é necessário para salvaguardar a segurança e para que o regime possa, posterior­mente, canalizar recursos para a economia. No entanto, é a constante aposta no nuclear que origina sanções internacio­nais. O programa nuclear é a solução e a base de problemas com que o regime se depara.”

Com uma saúde fragilizada pelo tabaco e pela obesidade, KJU está frequentemente na origem de rumores sobre a sua sucessão. “A sua saúde é importante, já que lidera um país com armas nucleares e pouco se sabe sobre quem as controla”, conclui Jenny Town. “Mas há uma reação exagerada sempre que ele desaparece dos olhares públicos.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de dezembro de 2021. Pode ser consultado aqui

Covid-19 ameaça o país, mas Kim não aceita ajuda

Para os norte-coreanos, a noção de que aceitar ajuda humanitária da Coreia do Sul cria expectativas políticas é inaceitável

A Coreia do Norte admitiu por fim que, como o resto do mundo, também enfrenta a covid-19 e noticiou o primeiro caso suspeito. O anúncio, aliado à previsível disponibilidade da comunidade internacional para ajudar o país, poderia indiciar um desanuviamento na península. Mas Pyongyang tem resistido a aceitar o ramo de oliveira que a Coreia do Sul, sobretudo, lhe tem estendido desde o início da pandemia.

“As relações intercoreanas, sobretudo agora, são altamente políticas. Se estivessem boas, como em 2018 [quando os líderes se encontraram três vezes], e houvesse otimismo no sentido da cooperação económica e das negociações de paz, a Coreia do Norte provavelmente teria aceitado a cooperação na frente covid”, diz ao Expresso Jenny Town, vice-diretora do site de análise norte-coreana “38 North”. “Mas a Coreia do Norte encara os dois últimos anos de negociações com a Coreia do Sul como algo de que regressou de mãos vazias. Os compromissos otimistas nas declarações de Panmunjom e Pyongyang [2018] não foram cumpridos, exceto cedências menores na zona desmilitarizada.”

Ajuda humanitária sem a perspetiva de cooperação substancialtorna a oferta pouco atrativa para os norte-coreanos

O real impacto da pandemia num território tão fechado como a Coreia do Norte é impossível de avaliar, mesmo para pessoas atentas ao que se passa no país, como Rachel Minyoung Lee, ex-analista do Governo dos EUA. “No início do ano, a Coreia do Norte não aceitou a oferta de cooperação da Coreia do Sul em matéria de covid e agora não há provas de que a situação epidemiológica esteja pior do que nessa altura”, diz ao Expresso. “Julgo que a Coreia do Norte [ao fazer o anúncio] sentiu a necessidade de alertar para uma potencial ameaça à saúde pública o mais depressa possível. Isto está em linha com as medidas de quarentena que tem tomado.”

Uma frustração maior

Vizinha da China, de onde partiu a pandemia, a Coreia do Norte começou a impor restrições logo em janeiro. A 22 limitou a circulação de pessoas, mercadorias e embarcações e a 31 suspendeu os voos de e para o país. A 25 de julho, após reunião de urgência da cúpula do partido único, convocada pelo líder Kim Jong-un, a cidade costeira de Kaesong foi colocada em confinamento, após ser identificado um caso suspeito “importado do Sul”: um homem de 24 anos que tinha desertado para a Coreia do Sul em 2017 e reentrara ilegalmente na Coreia do Norte a 19 de julho.

Seul confirmou a fuga do homem, acusado de violação no país, mas não a infeção pelo novo coronavírus. “Penso que a Coreia do Norte pode ter-se referido à Coreia do Sul para desviar a culpa por um surto de covid-19 que possa já ter ocorrido no país ou por quaisquer futuros surtos”, explica Rachel Lee.

Apesar dos apelos a Sul para que as duas Coreias assumam o seu desígnio comum e cooperem em matéria de covid, da perspetiva da Coreia do Norte há uma frustração maior que o inviabiliza. “Embora benéfico para a Coreia do Norte, o simbolismo de aceitar este tipo de cooperação humanitária sem qualquer perspetiva de obtenção da cooperação substancial que o regime quer torna esta oferta pouco atrativa”, analisa Jenny Town.

Os norte-coreanos sabem que, por si só, a Coreia do Sul não tem autoridade para levantar as sanções internacionais. Mas têm expectativas em relação ao desenvolvimento de linhas férreas entre os dois países, à reabertura do complexo industrial de Kaesong, à cooperação militar e a uma declaração de fim da guerra que evolua para um tratado de paz entre as Coreias (oficialmente em guerra desde 1950).

“Seul tem sido incapaz de forçar a cooperação dos Estados Unidos para avançar nalgum ponto desta agenda e não tem mostrado vontade de seguir por conta própria”, diz Town. “Além disso, o Governo [sul-coreano] de Moon Jae-in politiza constantemente este tipo de gestos humanitários, fazendo declarações públicas que os vinculam à esperança do regresso às negociações. Essa noção de que aceitar ajuda da Coreia do Sul obriga ou cria expectativas em relação a certas ações políticas recíprocas é inaceitável para os norte-coreanos.”

(ILUSTRAÇÃO SECURITY MANAGEMENT)

Artigo publicado no “Expresso”, a 1 de agosto de 2020 e no “Expresso Online”, a 31 de julho de 2020. Pode ser consultado aqui

Sucessão de Kim é assunto de família

O sumiço do Líder Supremo fez disparar a especulação sobre o seu estado de saúde e possíveis sucessores

Kim Jong-un está longe dos olhares públicos há exatamente 20 dias, sem qualquer justificação oficial. Não é situação inédita na Coreia do Norte, já que, em setembro e outubro de 2014, o Líder Supremo andou desaparecido 41 dias, pensa-se que devido a uma cirurgia ao tornozelo. Antes dele, também o pai, Kim Jong-il, tinha sumido durante 51 dias.

A ausência do líder, de 36 anos, aliada à sua condição de obeso viciado em cigarros, licores e queijo suíço — prazeres revelados pelo amigo norte-americano Dennis Rodman, excêntrico ex-basquetebolista da NBA que o visitou várias vezes em Pyongyang —, fizeram disparar rumores sobre o seu estado de saúde e análises à sua sucessão.

Desde a sua fundação, em 1948, a República Popular Democrática da Coreia tem sido governada pela mesma família, a “linhagem Paektu”, numa alusão ao monte mais alto da península coreana, que tem para o regime uma conotação nacionalista. Segundo a propaganda, Kim Il-sung, fundador do país em 1945, travou ali batalhas ferozes contra o ocupante japonês. Foi também onde nasceu o seu filho, Kim Jong-il, que esteve no poder entre a morte do primeiro Kim, em 1994, e o seu próprio falecimento, em 2011. Era o pai do atual Líder Supremo. É natural que, no curto ou longo prazo, possíveis herdeiros sejam procurados entre os membros da dinastia Kim.

KIM JONG-CHOL
Demasiado “efeminado”
para liderar

Nascido em 1980, o irmão mais velho de Kim Jong-un nunca foi formalmente preparado para herdar o cargo. O seu pai considerava-o “demasiado efeminado”, sentença que o atirou para fora dos círculos do poder e faz com que não seja opção para suceder ao irmão.

Kim Jong-chol vive na Coreia do Norte e leva o que se pode considerar uma vida normal, ainda que não para padrões norte-coreanos. Apaixonado por música e guitarras, foi notícia em 2015 ao ser reconhecido em Londres, no Royal Albert Hall, onde assistiu a um concerto de um seu ídolo: Eric Clapton.

KIM YO-JONG
Uma estrela em ascensão

A única irmã do Líder Supremo nasceu em 1988 e é hoje a mais forte garantia de uma quarta liderança da família. Debutou no estrangeiro em fevereiro de 2018, quando representou Kim Jong-un na tribuna presiden­cial na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de PyeongChang (Coreia do Sul). Não mais parou de crescer nos corredores da política. Quatro meses depois surgiu em Singapura como a mulher de confiança do irmão na histórica cimeira com o Presidente dos EUA, Donald Trump.

Pensa-se que, oficialmente, Kim Yo-jong seja a número dois de um dos principais departamentos políticos do Partido dos Trabalhadores: o da Propaganda e Agitação ou o da Organização e Orientação. Em março passado começou a emitir comunicados políticos em nome próprio. No primeiro, acusou a Coreia do Sul de parecer “um cão assustado a ladrar” depois de Seul ter protestado contra um exercício militar norte-coreano com fogo real.

KIM PYONG-IL
O tio diplomata

Tio de Kim Jong-un e meio-irmão do seu pai, passou os últimos 40 anos a servir o país em missões diplomáticas na Europa (Hungria, Bulgária, Finlândia, Polónia e República Checa). Regressou a Pyongyang em novembro de 2019. Aos 65 anos, é uma opção a considerar na eventualidade de a elite política e militar, conservadora e patriarcal, resistir à ideia de uma mulher — Kim Yo-Jong — na liderança do país.

Ao contrário de outro tio do líder, Jang Song-thaek (casado com a única filha de Kim Il-sung), que foi executado pouco depois de Kim Jong-un subir ao poder, Kim Pyong-il tem sobrevivido às purgas. Talvez nunca tenha sido encarado como ameaça credível.

KIM JU-AE
Ordem para brincar

A escolha sucessória mais óbvia numa república dinástica como a Coreia do Norte não é, por enquanto, viável. Do casamento de Kim Jong-un com Ri-Sol-ju, de 30 anos, pensa-se que haja dois ou três filhos, todos crianças. A única certeza é a existência de uma filha que terá nascido em 2013. O seu nome foi revelado pelo amigo Rodman a seguir a uma visita a Pyongyang. “Eu segurei na bebé deles, Ju-ae.”

KIM JONG-NAM
O favorito que se tornou
um embaraço

No clã presidenciável houve um meio-irmão do líder, mais velho 13 anos, que chegou a ser o favorito do pai. Kim Jong-nam caiu em desgraça em 2001, após tentar entrar no parque da Disney em Tóquio com um passaporte falso. Foi assassinado em 2017, no aeroporto de Kuala Lumpur (Malásia), atingido por gás nervoso. O crime foi atribuído ao regime de Pyongyang.

(IMAGEM Bandeira da Coreia do Norte PUBLIC DOMAIN PICTURES.NET)

Artigo publicado no “Expresso”, a 1 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

Kim Jong-un continua desaparecido, mas seguem cartas em seu nome

O Supremo Líder da Coreia do Norte está desaparecido há mais de duas semanas mas, segundo a agência noticiosa do país, durante esse período Kim Jong-un despachou nove cartas pessoais para diferentes destinatários — de chefes de Estado a um camarada centenário

Kim Jong-un, líder da Coreia do Norte VECTORPORTAL

Kim Jong-un terá enviado uma carta ao Presidente da África do Sul, felicitando Cyril Ramaphosa pelo Dia da Liberdade, que os sul-africanos comemoraram na segunda-feira (data das primeiras eleições democráticas pós-apartheid, que levaram Nelson Mandela à Presidência em 1994).

Na missiva, divulgada pela agência de notícias estatal norte-coreana KCNA, Kim Jong-un congratula a África do Sul e o seu povo por terem “alcançado a liberdade” e derrotado o apartheid, enviando “ao povo amigo da África do Sul sinceros desejos de mais sucesso na promoção da unidade nacional” e de que a relação entre os dois países “fique mais forte”.

A notícia ganha relevância numa altura em que o Supremo Líder norte-coreano não é visto em público desde o passado dia 11 de abril. A cada dia que passa adensa-se rumores de que possa estar gravemente doente ou mesmo ter morrido.

A publicação “The South African” chega ao ponto de questionar a lógica da missiva. Se Kim enviou uma carta associando-se às celebrações do Dia da Liberdade, e “considerando que esse feriado assinala as nossas primeiras eleições pós-apartheid, é muito estranho que um tirano elogie a nossa República por se levantar contra um Governo opressivo”, escreve o jornal esta terça-feira.

Nove cartas em 16 dias

Segundo o sítio norte-americano NK News, que recolhe informações designadamente junto de desertores e visitantes ocidentais regressados da Coreia do Norte e está atento às notícias da agência norte-coreana KCNA, a carta de Kim a Ramaphosa não foi caso único.

Nos 16 dias em que Kim Jong-un não foi visto em público, o jornal “Rodong Sinmun”, órgão oficial de informação do Partido dos Trabalhadores (comunista, no poder), noticiou o envio de mensagens pessoais do Supremo Líder por nove vezes. “São, na maioria, formalidades mundanas, desde a carta na segunda-feira a elogiar os trabalhadores da recém-construída cidade da ‘utopia’, em Samjiyon, até uma mensagem pessoal de ‘aniversário’ enviada a um centenário.”

Há também cartas a camaradas no estrangeiro e aos presidentes de Cuba, Zimbabwe e Síria — Bashar al-Assad terá mesmo recebido duas mensagens de Kim. Se nos casos mais pessoais as cartas até podem ter sido enviadas pelo seu gabinete, no caso da correspondência com os homólogos é expectável que Kim a tenha assinado por mão própria.

Mas nem esta questão gera consenso entre os analistas da realidade norte-coreana. Há quem defenda que dada a natureza vertical do sistema político — e o medo instalado junto dos funcionários de que possam passar por usurpadores dos poderes do Líder Supremo —, é muito pouco provável que alguém envie cartas sem, pelo menos, a aprovação de Kim.

No domingo, a Coreia do Sul deitou água fria sobre a fogueira dos rumores. Em entrevista à CNN, Moon Chung-in, alto conselheiro do Presidente sul-coreano Moon Jae-in para a segurança nacional, afirmou: “A posição do nosso Governo é firme: Kim Jong-un está vivo e está bem”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui

Com Kim Jong-un em parte incerta, já se fala da sua sucessão

O líder norte-coreano faltou às cerimónias do Dia do Sol, o feriado mais importante no país. Essa ausência fez disparar rumores sobre o seu estado de saúde e voltou os holofotes para uma estrela em ascensão na política interna: a sua irmã

A saúde de Kim Jong-un é um segredo tal na Coreia do Norte que sempre que o Supremo Líder viaja para o estrangeiro segue na bagagem da comitiva uma sanita portátil especial, para Kim usar à vontade sem receios de deixar para trás vestígios de ADN que revelem informações sobre o seu estado.

Foi assim em especial no ano 2018 quando Kim Jong-un fez história ao encontrar-se separadamente com os homólogos da Coreia do Sul e dos Estados Unidos, Moon Jae-in e Donald Trump, respetivamente, na parte sul da zona desmilitarizada entre as duas Coreias e em Singapura.

“As reuniões proporcionaram perceções em estado puro sobre o que pode ser o maior fator de risco para Kim Jong-un: a sua saúde”, defende a jornalista Anna Fifield, no livro “O Grande Sucessor” (Casa das Letras, 2019). “O jovem líder parece um ataque cardíaco prestes a acontecer. Teve claramente problemas de saúde. Aquele período no final de 2014 foi um indício prematuro. Tinha apenas 30 anos quando desapareceu durante seis semanas, consequência aparente de um episódio grave de gota, tendo regressado de bengala.”

Onde anda Kim?

Agora é novo sumiço de Kim Jong-un que relança o debate sobre o seu estado de saúde. A confirmação de que algo incomum se passava aconteceu a 15 de abril, quando faltou às celebrações do Dia do Sol, o feriado mais importante no ano, comemorativo do nascimento de Kim Il-sung, seu avô e fundador da República Popular Democrática da Coreia, em 1948. Morreu em 1994 mas ainda é oficialmente Presidente Eterno.

A televisão norte-americana CNN justificou a ausência com o cenário mais negro de todos, noticiando que Kim tinha sido submetido a uma cirurgia cardiovascular e que poderia estar “em estado grave”. O diagnóstico não foi confirmado por sul-coreanos ou chineses, mas — até que Kim reapareça — a dúvida está plantada.

“Sabemos que já teve vários problemas de saúde. Há alguns anos, os órgãos de informação estatais mostraram-no a reaparecer em público a coxear, após rumores de que tinha feito uma cirurgia no tornozelo”, diz ao Expresso Rachel Lee, antiga analista de informação sobre a Coreia do Norte para o Governo dos EUA. “Se recentemente foi sujeito a um procedimento médico ou operado, é pouco provável que isso esteja relacionado com o coronavírus.”

Não é preciso ter especiais conhecimentos médicos ou acreditar em teorias da conspiração para perceber que o líder da Coreia do Norte tem uma saúde débil. Kim tem visivelmente excesso de peso, um andar bamboleante para uma pessoa de 36 anos e sabe-se que é um fumador inveterado.

A 27 de abril de 2018, aquando da cimeira intercoreana na zona desmilitarizada de Panmunjom, “quando os dois líderes coreanos lançaram terra na base de um pinheiro”, recorda Anna Fifield, “o Presidente sul-coreano, com 65 anos de idade, fê-lo sem dificuldade, ao passo que o norte-coreano, de 34 anos, estava ofegante. Após o mais leve esforço, o seu rosto ficava vermelho”.

Num reencontro posterior, em setembro, quando subiram juntos ao monte Paektu, “Kim Jong-un arfava intensamente. Comentou que Moon não parecia minimamente sem fôlego. Numa caminhada tão fácil como esta, não, respondeu o sul-coreano, que adora andar a pé”, lê-se no livro.

Um mistério chamado Kim

Cada aparição pública de Kim Jong-un diante de órgãos de informação internacionais, sem os filtros da censura norte-coreana, foi oferecendo vislumbres sobre alguém profundamente enigmático e proporcionou observações inéditas sobre a sua saúde.

As filmagens captadas foram analisadas ao pormenor por médicos que chegaram ao ponto de contar as exalações de Kim. “Numa caminhada de 42 segundos com Moon, durante a primeira cimeira exalou, 35 vezes. Ou estava muito nervoso ou a sua capacidade pulmonar estava deficitária por falta de exercício”, conta Anna Fifield.

A número dois oficiosa

Além de Kim, outra ausência nas cerimónias do Dia do Sol, no Palácio Kumsusan, que contribuiu para adensar o mistério foi a de Kim Yo-jong, a irmã do líder, que o segue como sombra e é uma estrela em ascensão na política norte-coreana.

“Oficialmente, Kim Yo-jong é primeira vice-diretora de um departamento do partido. Não se sabe ao certo qual, mas é provável que seja o Departamento de Propaganda e Agitação ou o Departamento da Organização e Orientação, os mais poderosos dentro do Partido dos Trabalhadores [comunista e o único no país]”, explica Rachel Lee.

“O seu papel e perfil no regime de Kim Jong-un aumentaram e alargaram-se ao longo dos últimos dois anos. É muitas vezes referida como estando envolvida em assuntos que transcendem o seu próprio cargo. E tem sido retratada nos media estatais como alguém que goza de estatuto especial dentro do regime, como membro da ‘linhagem do Monte Paektu’”, um local sagrado para a dinastia Kim.

Nos últimos anos, Kim Yo-jong tem surgido em público quase que no papel de número dois do regime. Numa missão politicamente relevante, foi ela a enviada à Coreia do Sul para representar o país na cerimónia de inauguração dos Jogos Olímpicos de Inverno de PyeongChang e foi inseparável do irmão nas importantes cimeiras com Moon e Trump.

Mais recentemente, passou a emitir comunicados em nome próprio, não abdicando da agressividade característica da retórica de Pyongyang. No primeiro, no início de março, visou a Coreia do Sul, que manifestara preocupação com exercícios com armamento a Norte.

“Tanto quanto sei, o lado Sul também gosta de exercícios militares conjuntos [com os EUA] e está preocupado com todos os atos repugnantes, como a compra de equipamentos militares ultramodernos”, ironizou. “Precisam de se preparar militarmente, mas nós devemos ser desencorajados a realizar exercícios militares. Nunca é de esperar uma afirmação gangster destas de alguém com uma forma de pensamento normal.”

“Julgo que Kim Yo-jong vai provavelmente suceder a Kim Jong-un, quando este não tiver mais condições de governar o país por mais 10 anos. Os filhos de Kim Jong-un serão muito novos para lhe suceder”, defende Rachel Lee. “Alguns peritos têm referido a possibilidade de um ‘sistema coletivo de liderança’ e também de uma luta pelo poder, mas não me parece que nenhuma dessas situações seja provável. É difícil pensar em alguém que não faça parte da família Kim a governar a Coreia do Norte.”

Num país fechado, conservador, respeitador dos princípios confucianos da antiguidade e da masculinidade, poderia Kim Yo-jong encontrar obstáculos sociais à sua aceitação como líder do país, desde logo por ser mulher?

“Neste caso, o facto de ser membro da linhagem do Monte Paektu é mais importante do que a circunstância de ser mulher”, conclui Lee. “Não creio que o género possa ser impedimento quer para a população em geral quer para a liderança do país. Kim Yo-jong tem um estatuto especial na Coreia do Norte.”

(IMAGEM Kim Jong-un, líder da Coreia do Norte VECTORPORTAL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui