Os Estados Unidos têm até ao fim do ano para reconhecer a boa-fé da Coreia do Norte e fazer concessões. Se isso não acontecer, diz Pyongyang, a contenção deixa de fazer sentido. “É de prever uma escalada na tensão”, vaticina uma especialista
O relógio está em contagem decrescente na Coreia do Norte. Pyongyang deu a Washington um ultimato que está prestes a expirar: os norte-americanos têm até ao final do ano para fazer concessões importantes e assim salvar o diálogo entre ambos. “Cabe inteiramente aos Estados Unidos escolher que presente de Natal querem receber”, avisou na terça-feira Ri Thae Song, vice-ministro dos Negócios Estrangeiros da Coreia do Norte.
Kim Jong-un e Donald Trump já se encontraram por três vezes — em Singapura (12 de junho de 2018), Hanói (27 e 28 de fevereiro de 2019), e na Zona Desmilitarizada entre as duas Coreias (30 de junho) —, mas essa aproximação tarda em produzir resultados. Os EUA querem que a Coreia do Norte prove que está a desmantelar o seu programa nuclear. Já a Coreia do Norte exige ser recompensada pela suspensão de “uma série de ações”.
“As duras condições impostas pela Coreia do Norte para retomar as conversações sobre desnuclearização com os EUA — a remoção de sanções e as garantias de segurança para as ‘medidas de boa vontade’ que a Coreia do Norte já adotou — refletem uma posição de endurecimento por parte da Coreia do Norte relativamente aos EUA”, comenta ao Expresso Rachel Minyoung Lee, que analisa a realidade norte-coreana a partir de Seul (Coreia do Sul). “Julgo que a próxima movimentação política de Kim Jong-un será no sentido da linha dura, pelo que é de prever uma escalada na tensão.”
Numa avaliação ao estado da relação com os EUA, feita nas Nações Unidas, a Coreia do Norte reclama não ter ganho “nada” com a aproximação entre Kim Jong-un e Donald Trump “a não ser um sentimento de traição”. “É bastante natural que reforcemos as nossas capacidades, a fim de reduzir visivelmente as crescentes ameaças que obstruem a nossa segurança e desenvolvimento”, defendeu a missão norte-coreana.
Nos últimos três meses, Pyongyang vem sinalizando a sua impaciência retomando a realização de testes com mísseis. Aconteceu a 24 de agosto, a 10 de setembro, a 31 de outubro e a 28 de novembro, este último de forma algo provocatória ao coincidir com o feriado de Ação de Graças nos EUA. “Estamos sentados sobre um vulcão ativo”, disse a 12 de novembro Robert L. Carlin, antigo negociador na área do nuclear do Departamento de Estado dos EUA, numa conferência na Universidade de Yonsei, em Seul. “Não temos muito tempo para recuar.”
O diálogo direto entre EUA e Coreia do Norte rompeu-se definitivamente a 5 de outubro, após um encontro de oito horas e meia entre negociadores de topo, nos arredores de Estocolmo (Suécia). Onze dias depois, Kim Jong-un esbanjou confiança, cavalgando no Monte Paektu, o ponto mais alto da península.
“Mais do que uma demonstração de confiança, julgo que o passeio a cavalo foi um desafio”, diz Rachel Minyoung Lee. “A subida ao Monte Paektu seguiu-se a críticas explícitas por parte de Kim Jong-un em relação às sanções dos EUA. Aquela escalada visou sublinhar que a Coreia do Norte seguirá o seu caminho — aquilo que os órgãos oficiais do Estado designam de ‘autossuficiência’ —, apesar das dificuldades resultantes de prolongadas sanções.”
A imprensa norte-coreana condimentou o passeio dizendo que foi um momento de reflexão do líder, de quem se espera para breve “uma grande decisão”. Referido nos hinos nacionais das duas Coreias, o Monte Paektu é também simbólico na relação que a dinastia Kim estabeleceu com o país que fundou em 1948 e que lidera desde então. “De acordo com a propaganda, Kim Il-sung [avô do atual líder] travou batalhas nessa montanha contra o colonizador japonês”, explica a analista.
A associação nacionalista entre o local e os Kim continuou com Kim Jong-il, pai do líder atual, que, diz a propaganda, “nasceu no ‘Campo Secreto’ do Monte Paektu, em 1942, apesar dos registos históricos no mundo real dizerem que nasceu na Rússia em 1941”.
Igualmente, o recurso a um cavalo branco não é um pormenor irrelevante. “Segundo as memórias de Kim Il-sung, um cavalo branco veio de algures na sua direção durante uma batalha contra os japoneses e conseguiu grandes conquistas. Provavelmente por essa razão, os três líderes norte-coreanos foram todos retratados com cavalos brancos”, conclui Rachel Minyoung Lee. Uma forma elegante de mostrarem quem está às rédeas do país.
(FOTO Rodeado por um grupo de atiradores de elite da Força Aérea norte-coreana, Kim Jong-un mostra quem manda no país REUTERS)
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 5 de dezembro de 2019. Pode ser consultado aqui
São “a sombra” do líder da Coreia do Norte em cada visita ao terreno. Anotam todas as suas observações e tratam que depois sejam cumpridas. Esta é uma prática governativa da dinastia Kim, no poder há sete décadas
Sempre que viaja pelo país, Kim Jong-un leva no seu rasto ‘um pequeno exército’ de homens munidos de um pequeno bloco de apontamentos numa das mãos e uma caneta na outra. Poderiam até passar por jornalistas não fosse o caso de muitos deles envergarem o uniforme militar.
Trata-se de membros do Partido dos Trabalhadores da Coreia — o único permitido na República Popular Democrática da Coreia — e também de militares. “Anotam o que o líder diz e depois asseguram que as suas instruções são seguidas e concretizadas”, explica ao Expresso Steve Tsang, diretor do Instituto da China da Escola de Estudos Africanos e Orientais (SOAS), da Universidade de Londres.
Esta prática verifica-se em toda e qualquer visita do líder norte-coreano ao terreno, sejam instalações militares, propriedades agrícolas, escolas, fábricas ou locais de lazer. Em cada sítio, Kim Jong-un “vai dando alguns conselhos sobre como as coisas devem ser feitas”, diz ao Expresso James Grayson, professor jubilado da Universidade de Sheffield especialista em assuntos coreanos. Os “apparatchiks” apontam tudo para que a vontade do líder não fique por cumprir.
Este tipo de aparições públicas enquadra-se na chamada política de Orientação no Local, explica James Grayson, e é um elemento-chave da propaganda norte-coreana e do culto da personalidade incentivados pela dinastia Kim. “Esta é uma prática característica da família que tem governado a Coreia do Norte.”
“Isto não começou com Kim Jong-un”, corrobora Steve Tsang. “Foi iniciada quando estava no poder o seu avô”, Kim Il-sung, o fundador da Coreia do Norte, em 1948. A seguir, foi seguida pelo seu filho Kim Jong-il (1994-2011) e agora pelo neto, que lidera o país há mais de sete anos.
Nas visitas ao terreno, Kim Jong-un faz-se acompanhar pelos órgãos de informação oficiais — nomeadamente pela agência noticiosa KCNA, que disponibiliza as fotos que acompanham este artigo (muitas delas sem referência a data ou local) —, canais transmissores por excelência da sua ‘liderança benevolente’.
Num misto de preocupação, conhecimento e grande sabedoria — já que faz reparos sobre tudo, desde equipamentos militares a espigas de milho —, o líder surge aos olhos dos norte-coreanos como alguém verdadeiramente empenhado no seu bem estar.
Os diligentes funcionários surgem convenientemente enquadrados nas imagens captadas, provando que o Estado — e a ideologia Juche (autossuficiência) — funciona. Próximos do líder, dispensam-lhe toda a atenção e acompanham-no no seu estado de espírito. Não raras vezes, riem-se com ele e chegam a pousar os blocos de notas para o aplaudir.
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 30 de janeiro de 2019 e republicado no “Expresso Online”, a 3 de fevereiro de 2019. Pode ser consultado aqui e aqui
Ir de férias à Coreia do Norte não é tarefa impossível. Um jovem português predispôs-se à aventura para tentar perceber o que era ficção e realidade entre tanta coisa que ouvia sobre um país governado há 70 anos por uma família. O primeiro mito caiu poucos minutos após entrar no país…
Duas grandes estátuas em bronze de Kim Il-sung e Kim Jong-il, os “grandes líderes” falecidos, são uma das imagens icónicas de Pyongyang JOÃO CHALEIRA
João Chaleira levava meia dúzia de horas em solo norte-coreano quando se questionou, pela primeira vez, se aquele país seria tão fechado e rígido como tantas vezes ouvira nas notícias. Sentado à mesa de um restaurante, no centro de Pyongyang, partilhava o jantar com sete outros ocidentais que, como ele, tinham escolhido a Coreia do Norte para umas curtas férias. Nos dias seguintes, iam viajar juntos, acompanhados por duas guias norte-coreanas, uma fluente em inglês, a outra em francês.
Quando pensavam que o jantar tinha terminado, as luzes da sala apagaram-se. “Olhámo-nos sem perceber o que se passava”, conta este abrantino de 29 anos, residente em Lisboa desde os 18. “Surgem, então, duas empregadas com um bolo. As guias levantam-se da mesa e começam a caminhar na minha direção. Cantam os ‘parabéns a você’ e entregam-me um ramo de flores. Depois agradecem-me por eu ter escolhido passar o meu aniversário no seu país. Eu, que esperava o tal país rígido, quase agressivo e de poucos sorrisos, sou de repente confrontado com uma festa surpresa em Pyongyang! A ideia de que ia passar os dias seguintes a olhar por cima do ombro caiu logo ali.”
O português não dissera a ninguém que fazia anos, mas uma situação desmascarou-o. À chegada ao país, tinha a recebe-lo, na estação ferroviária de Pyongyang, uma das guias, que logo lhe pediu o passaporte — o documento só seria devolvido no final da viagem. Daí até à preparação da festa, tudo foi feito na maior discrição.
Vista geral sobre a cidade de Pyongyang, atravessada pelo Rio Taedong JOÃO CHALEIRA
Na Coreia do Norte, só se entra a partir da China, em comboio ou de avião. João optou por ir por terra: primeiro, de Pequim a Dandong (norte da China), onde apanhou outro comboio, que só parou na capital norte-coreana. Ao todo, precisou de quase 24 horas.
O controlo fronteiriço foi feito dentro das carruagens, atravessada a Ponte da Amizade, sobre o Rio Yalu, que separa Dandong e a cidade norte-coreana de Sinuiji. “Ia preparado para um controlo muito rígido. Tinham-me dito que era necessário encarar esse momento com o máximo de cuidado e respeito. Quando chegou a minha vez, a primeira coisa que me perguntarem foi se levava… livros.”
A pergunta não o surpreendeu. Em Pequim, tinha tido um “briefing” preparatório, onde — para além de lhe explicarem que “a Coreia do Norte não existe”, e que o país chama-se República Popular Democrática da Coreia (DPRK, na sigla inglesa) — lhe falaram da realidade que ia encontrar e de regras que havia que cumprir. “Foi-me dito para não levar livros, documentos relacionados com a Coreia ou mesmo bandeiras da Coreia do Sul, Japão ou Estados Unidos estampadas em roupas ou em malas.”
Curiosamente, carimbos no passaporte — ainda que relativos aos mesmos países — não eram problemáticos. Preocupante era a tecnologia que o turista levava consigo para dentro do país. “Camera?” “Phone?” “Computer?”, perguntavam os agentes, num inglês rudimentar, durante a revista, que podia implicar pesquisas nos telemóveis e portáteis.
“Eles anotavam as marcas e os modelos de tudo o que era tecnologia, provavelmente para garantir que os equipamentos que entravam no país eram os mesmos que saíam, e que nenhum ficava lá com informação. Tirando isso, foi tranquilo. Os agentes sorriam e pediam permissão para mexer nas malas. Terminados os procedimentos, podíamos descer do comboio para esticar as pernas. Na plataforma, havia uma senhora a vender ‘duty-free’. Caiu o meu primeiro mito em relação à Coreia do Norte.”
Hora de ponta numa estação do metro, em Pyongyang JOÃO CHALEIRA
Entre os companheiros de viagem, havia uma grega, uma alemã, um canadiano, um finlandês e três franceses. Uns mais viajados do que outros, todos com a mesma motivação para ali estarem: espreitar a Coreia do Norte e, dentro do que fosse possível observar, tentar confirmar o que era realidade e ficção entre tanta coisa que tinham ouvido sobre um país governado há 70 anos pela família Kim.
No “briefing” em Pequim, tinham sido aconselhados a evitar conversas de cariz político. Mas o que fazer quando era a própria guia — João interagiu mais com a falante de inglês — a disparar perguntas? “O que achas da reunificação? Achas que vai acontecer?” “Os EUA devem estar envolvidos? E a China?”
Muitas vezes, as discussões começavam a dois e generalizavam-se ao grupo. “No início, tinha receio de responder. Não sabia se podia dizer o que realmente pensava. Com o passar dos dias, a conversa tornou-se mais distendida. Muitas vezes, ela apenas ouvia; noutras, também dava a opinião. Até que ponto era sincera, não sei. Também não consegui perceber se as perguntas eram curiosidade pessoal ou se tinha indicações para recolher as nossas opiniões e reportá-las. Mas tendo sempre presente que não estava num país livre, e que só via aquilo que me deixavam ver, foi outro mito que caiu, o de que não é possível ter conversas políticas na Coreia do Norte.”
Em Pyongyang, o Arco da Reunificação recorda um projeto antigo que se mantém atual: a reunificação da Península JOÃO CHALEIRA
A Coreia do Norte enquanto destino de férias entra nos planos de João Chaleira — um apaixonado por basquetebol licenciado em gestão de empresas — na senda de um conjunto de “viagens míticas” com que sempre sonhou, e que concretizou. Foi de Moscovo a Pequim a bordo do Transiberiano, visitou Machu Picchu (Peru), viu o nascer do sol no Salar de Uyuni (Bolívia), calcorreou Israel e a Palestina, o Japão e a Islândia. Em dezembro foi à Patagónia.
“Quando comecei a pensar na viagem seguinte, quis optar por algo mais marcante a nível pessoal. E surgiu a ideia da península da Coreia, com o propósito de conhecer os dois lados de uma das fronteiras mais fechadas do mundo que separa, para além de países, duas realidades distintas.” Esteve cinco dias no Norte e sete no Sul.
Se ir ao Sul é fácil, ir ao Norte não é necessariamente difícil. Há agências acreditadas pelas autoridades de Pyongyang que vendem “tours”. Para além da capital, João visitou Nampo, Sariwon, Kaesong e a zona desmilitarizada entre as duas Coreias. As burocracias são céleres e simples — o visto é dado à entrada —, mas também criteriosas… Há que assinar um documento em que o turista garante que não trabalha como jornalista, fotógrafo ou escritor. Nesses casos, a agência deixa de poder ser útil e aconselha-o a contactar diretamente as autoridade norte-coreanas — uma forma polida de fechar a porta, salvo honrosas exceções…
No comboio que levou João até Pyongyang, seguia também o ator Michael Palin, dos Monty Pyhton. “Ia lá gravar um programa de viagens para a ‘National Geographic’. Já ia acompanhado por um guia. Tinham fitas azuis no braço que os identificava como jornalistas.”
O Palácio do Sol, onde estão sepultados Kim Il-sung e Kim Jong-il, avô e pai do atual líder JOÃO CHALEIRA
Na Coreia do Norte, pode-se tirar fotografias em “todo o lado”, salvo onde os guias o proíbem, como edifícios governamentais, controlos militares nas ruas ou situações que revelem pobreza. No metro, pode-se fotografar as estações, mas não os túneis.
Também não é permitida a captação de imagens no Palácio do Sol, onde estão os mausoléus de Kim Il-sung e Kim Jong-il — avô e pai do atual líder, Kim Jong-un — e onde só se entra com traje formal. “Ainda em Lisboa, recebi um email da agência aconselhando a que levasse camisa, calça, gravata e sapatos para a visita ao Palácio do Sol”, diz João.
Em dois momentos do programa, foi também aconselhado ao grupo que fizesse vénias em sinal de respeito: uma no Palácio do Sol, onde o visitante tem de se curvar aos pés, à esquerda e à direita dos corpos (não à cabeça); outra diante das duas grandes estátuas em bronze dos “grandes líderes” falecidos, uma das imagens icónicas de Pyongyang. As vénias não eram obrigatórias, mas quem não as fizesse ficaria excluído das visitas aos locais.
Lembrança do Comité Português de Estudo do Kimilsunismo, na Torre Juche, um monumento em Pyongyang que homenageia a ideologia do regime norte-coreano, segundo a qual “o homem é dono do seu próprio destino” JOÃO CHALEIRA
Contactar com locais foi um obstáculo intransponível. “Com o passar dos dias, fui percebendo até onde é que podia ‘esticar a corda’. Um dia, quando saíamos do autocarro, havia um senhor a pouca distância, que nos olhava com curiosidade. Levantei a mão, ele sorriu e correspondeu. Num ápice, a guia colou-se a mim para se inteirar do que estava a acontecer. Pedi para tirar uma fotografia com o homem e ela autorizou, agindo sempre com pressa. O senhor seguiu-nos, com o telemóvel na mão, e pediu para tirar uma foto comigo. Ela não deixou.”
Durante a estadia na Coreia do Norte, João nunca ficou sozinho — até ao dia em que se sentiu indisposto. “Estávamos num restaurante. A guia ficou preocupadíssima. Imagino a pressão que sofrem para mostrar o melhor do país e fazer com que os turistas não fiquem com má imagem. Seria um grande problema se um ocidental adoecesse num ‘tour’. Pedi-lhe para ir ‘lá fora’ apanhar ar. Ela hesitou mas deixou. Só depois me apercebi que estive 15 minutos sozinho numa rua de Pyongyang.”
Na memória, João guarda a imagem de uma cidade organizada, incrivelmente limpa e estranhamente silenciosa, com pouco trânsito e onde quase não se ouve barulho de crianças. Diz também nunca se ter sentido em risco. “Antes de partir, perguntavam-me se eu não tinha medo de ir à Coreia do Norte. Eu comecei a fazer essa pergunta a mim próprio e uma resposta foi-se formando na minha cabeça. Eu teria medo de ir ao Afeganistão ou à Síria, pelo fator aleatório: podia estar numa praça e acontecer um atentado terrorista. Na Coreia do Norte, bastaria seguir as indicações das guias e manter o foco: Atenção às fotos! Mantém-te com o grupo! Evita conversas com locais! Atenção às risadas e cotoveladas quando nos contam histórias surreais dos líderes!”
“Todas as nossas ações, por mais inocentes que fossem, estavam a ser vigiadas pelas guias. Mas, verdadeiramente, nunca me senti vigiado. Havia um controlo, mas era tão bem feito que eu facilmente me abstraía.”
Foto tirada desde o alto Hotel Yanggakdo, onde ficam hospedados todos os turistas que visitam Pyongyang JOÃO CHALEIRA
No fim de cada dia de visitas, o grupo era deixado no Hotel Yanggakdo, onde ficam hospedados todos os turistas que visitam Pyongyang. Inaugurado em 1995, o edifício é um monstro de betão ao estilo soviético, com 1000 quartos distribuídos por 48 andares. “Nós ficávamos no piso 37. Eu ia jurar que os turistas eram alojados nos andares de cima para parecer que o hotel estava cheio, mas estava muito longe disso.”
Sem as guias por perto, por que não arriscar uma escapada noturna pelas ruas da cidade? “O hotel tem uma localização curiosa”, explica João. Situado numa ilha no meio do Rio Taedong, que atravessa a capital, o acesso faz-se através de duas pontes, uma para cada lado. “Não lhe vou chamar prisão, mas é a comparação que ocorre com facilidade…” Não havia guardas à porta do hotel a impedir a saída para o exterior, mas possivelmente se arriscassem ir sozinhos seriam intercetados e mandados para casa.
João Chaleira junto à guia do Museu da Guerra de Libertação da Pátria Vitoriosa, em Pyongyang. A gravata, que tinha sido necessária para visitar o Palácio do Sol, já estava fora do pescoço JOÃO CHALEIRA
No hotel, não faltava nada: restaurantes, bares e karaoke; casa de câmbio, posto de correios, terminais de telefone, onde se podia ligar para o estrangeiro. A outra forma de fazer chamadas internacionais passava por comprar um chip de telemóvel norte-coreano, que custava mais de 100 euros e que só permitia fazer chamadas, não receber. No fim da viagem, o chip teria de ficar no país.
O grupo almoçava e jantava quase sempre em restaurantes, numa sala reservada só para turistas, sem possibilidade de contacto com locais. “Em alguns lugares, parecia mesmo que éramos os únicos clientes, numa sala cheia de mesas e cadeiras vazias e uma mesa posta para nós.”
Na última noite, em jeito de despedida, a guia pergunta ao grupo o que quer fazer. Sugerem ir a um pub local. Ela recorda que no hotel há bares com fartura, mas o grupo insiste. Encurralada, ela não dá parte de fraca. Terminado o jantar, mergulham na noite norte-coreana — o grupo com a expectativa de testemunhar como os locais se divertem, as guias com a sensação do dever cumprido. Chegados ao pub, não faltava música nem bebidas. Mas o local estava… vazio.
O desanuviamento na Península Coreana tem permitido visitas à Coreia do Norte por parte de repórteres estrangeiros e, consequentemente, uma “espreitadela” demorada sobre a capital do país. Tiradas durante o mês de setembro, estas 30 fotos ajudam a levantar o véu sobre uma das cidades mais desconhecidas do mundo
Num país fechado como a Coreia do Norte, onde só se entra a partir da China, percorrer as ruas da sua capital — ainda que apenas através de fotografias — não é um exercício frequentemente acessível. As imagens da cidade não abundam, muito menos aquelas que registam as rotinas dos seus habitantes.
A recente visita do Presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, a Pyongyang — para a terceira cimeira intercoreana do ano com o homólogo norte-coreano — permitiu um olhar demorado sobre a cidade. Entre 18 e 20 de setembro, a cimeira entre Moon Jae-in e Kim Jong-un foi coberta por repórteres sul-coreanos de 15 órgãos de informação — jornalistas estrangeiros, mesmo os que trabalham a partir de Seul, ficaram de fora. Anteriormente, no início do mês, o Governo norte-coreano organizara uma visita para jornalistas estrangeiros, por ocasião do 70º aniversário da fundação do país.
Essas “espreitadelas” permitiram a captação de imagens “frescas” de Pyongyang, reveladoras de uma cidade tranquila, ordeira e limpa, com edifícios coloridos e sem congestionamentos de trânsito. Mostram também crianças sorridentes e adultos compenetrados na vida, como em qualquer parte do mundo. E também uma dinastia omnipresente: os Kim, que governam a Coreia do Norte há exatamente 70 anos.
Nas ruas, há retratos abundantes de Kim Il-sung (líder entre 1948 e 1994) e Kim Jong-il (1994-2011) — avô e pai do líder atual — que os norte-coreanos reverenciam com vénias. Já os turistas ocidentais — porque também os há em Pyongyang — não resistem às “selfies” naquele improvável destino de férias.
FOTOS EM FALTA
6. O Arco do Triunfo norte-coreano, comemorativo da resistência coreana ao Japão, entre 1925 e 1945 ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGES – FALTA ESTA FOTO!!!
17. Aula de canto para futuras professoras, numa faculdade de Pyongyang DANISH SIDDIQUI / REUTERS – FALTA ESTA FOTO!!!
Militar norte-coreano à saída do Museu de História Natural, em Pyongyang DANISH SIDDIQUI / REUTERSVista sobre a capital norte-coreana, onde se estima que vivam cerca de 2,5 milhões de pessoas ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGESTrabalhadoras de uma fiação, em Pyongyang ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGESCarruagem do metro da capital norte-coreana Trabalhadoras de uma fiação, em Pyongyang ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGESRestaurante no centro de Pyongyang DANISH SIDDIQUI / REUTERSPolícia-sinaleiro norte-coreano. Há muitos em Pyongyang, apesar de o trânsito não ser intenso PYEONGYANG PRESS CORPS / GETTY IMAGESCrianças patinam num parque da cidade ED JONES / AFP / GETTY IMAGESUm baloiço com a forma de um míssil e aviões, num jardim de infância da capital da Coreia do Norte DANISH SIDDIQUI / REUTERSPyongyang é banhada pelo rio Taedong ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGESBanda feminina anima o jantar a bordo de um restaurante flutuante, no rio Taedong ED JONES / AFP / GETTY IMAGESArranha-céus coloridos, em Pyongyang DANISH SIDDIQUI / REUTERSÉ na Praça Kim Il-sung que se realizam as vistosas e impressionantes paradas militares norte-coreanas PYEONGYANG PRESS CORPS / GETTY IMAGESUma norte-coreana produz sabonetes, numa fábrica de Pyongyang DANISH SIDDIQUI / REUTERSNuma fábrica de cosméticos, três mulheres produzem pincéis ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGESEmpregadas de uma fábrica de seda gozam de um momento de descanso, numa piscina DANISH SIDDIQUI / REUTERSAlunas do ensino superior usam óculos de realidade virtual, durante uma aula DANISH SIDDIQUI / REUTERSEsta norte-corena trabalha como guarda à entrada de uma fábrica DANISH SIDDIQUI / REUTERSHora de ponta na estação Puhung, no metro de Pyongyang ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGESGuarda na estação de Puhung ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGESAutocarro elétrico, numa rua da capital da Coreia do Norte ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGESÀ espera do autocarro, numa paragem de Pyongyang PYEONGYANG PRESS CORPS / GETTY IMAGESNa capital norte-coreana, a bicicleta é um meio de transporte popular ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGESOs retratos do avô e do pai do atual líder norte-coreano, Kim Jong-un, proliferam por toda a capital ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGESConvidados de um casamento, com os noivos ao centro, curvam-se diante de duas estátuas em bronze de Kim Il-sung e Kim Jong-il DANISH SIDDIQUI / REUTERSAo fundo, a Torre Juche, um dos monumentos icónicos de Pyongyang DANISH SIDDIQUI / REUTERSDois turistas tiram uma “selfie”, no miradouro da Torre Juche ALEXANDER DEMIANCHUK / TASS / GETTY IMAGESA noite cai em Pyongyang, a Torre Juche ilumina-se e, junto ao rio, um homem navega pela internet norte-coreana DANISH SIDDIQUI / REUTERSA 19 de setembro, muitos habitantes de Pyongyang pararam para fixar atenções em ecrãs que transmitiam notícias sobre a cimeira intercoreana que decorria na cidade. A reunificação é uma esperança permanente Kim WON JIN / AFP / GETTY IMAGES
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de setembro de 2018. Pode ser consultado aqui
O Presidente da Coreia do Sul foi recebido, esta terça-feira, em Pyongyang, pelo homólogo norte-coreano e milhares de pessoas nas ruas. Sobressaíram sorrisos, flores, vestes coloridas e… a bandeira da Coreia Unificada. A cimeira entre Moon Jae-in e Kim Jong-un decorre durante três dias, na capital da Coreia do Norte
Muita cor nas ruas da capital norte-coreana REUTERSA bandeira da Coreia Unificada no Aeroporto Internacional de Sunan, onde aterrou o avião que transportou o líder sul-coreano REUTERSMilhares de norte-coreanos vestidos para um dia especial GETTY IMAGESMomento do brinde entre os dois Presidentes, durante o banquete REUTERSQuilómetros de estrada, filas intermináveis de gente preparada para saudar o líder sul-coreano REUTERSOs dois casais presidenciais, na tribuna do Grande Teatro de Pyongyang REUTERSNorte-coreanos a perder de vista, entre arranha-céus em Pyongyang GETTY IMAGESA bandeira da Coreia Unificada projetada durante a atuação da Orquestra Samjiyon, espetáculo a que assistiram os dois Presidentes REUTERSPasseios cheios de pessoas para receber Moon Jae-in, na sua primeira visita à Coreia do Norte REUTERSA azul, à direita, o mapa da Coreia Unificada, um sonho partilhado pelos dois lados da Península Coreana GETTY IMAGES
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de setembro de 2018. Pode ser consultado aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.