Arquivo da Categoria: Coreias

Norte e Sul querem firmar a paz. Estavam em guerra?

A relação entre as Coreias é uma ferida aberta desde os tempos da Guerra Fria. Cicatrização vai demorar

Península da Coreia: a norte, a República Popular Democrática da Coreia; a sul, a República da Coreia FREE*SVG

1. Porquê assinar um tratado de paz?

Porque, desde que terminou a guerra entre ambas (1950-1953), as duas Coreias assinaram um armistício (cessação temporária de hostilidades), mas nunca um tratado de paz. Isso significa que, tecnicamente, continuam em guerra. Esta semana, durante uma visita à Austrália, o Presidente sul-coreano, Moon Jae-in, afirmou que as Coreias, a China e os Estados Unidos chegaram a um “acordo de princípio” para alcançar um encerramento formal do conflito.

2. Porque foi Moon a fazer o anúncio?

O Presidente da Coreia do Sul está pessoalmente apostado em resolver o problema, na crença de que será um passo decisivo para trazer Pyongyang para as conversações sobre a sua desnuclearização. Moon está a meses de deixar o cargo. A 9 de março haverá presidenciais e ele não pode recandidatar-se (a reeleição não é permitida na Coreia do Sul). Em setembro, diante da Assembleia-Geral da ONU, disse: “Mais do que tudo, uma declaração de fim da guerra marcará um ponto de partida fundamental na criação de uma nova ordem de ‘reconciliação e cooperação’ na península coreana.”

3. O que pode levar a que não aconteça?

Sanções internacionais, por exemplo. Uma pré-condição colocada pela Coreia do Norte para dialogar sobre o fim do conflito é o abandono da atitude “hostil” dos Estados Unidos. Este requisito foi interpretado como exigência do levantamento das sanções. Ora, domingo passado (Dia Internacional dos Direitos Humanos), véspera do anúncio de Moon Jae-in, Washington informou que imporia novas sanções contra a Coreia do Norte — as primeiras da era Biden.

4. Porque são os EUA parte da questão?

Os Estados Unidos participaram na Guerra da Coreia ao lado de Seul. Hoje, têm cerca de 28.500 soldados estacionados a sul do paralelo 38 (que separa os dois países) e realizam exercícios militares anuais conjuntos com os sul-coreanos. Para a Coreia do Norte, esses treinos mais não são do que preparativos para uma invasão do Norte.

5. Quão realista é a reunificação?

“A perspetiva da reunificação entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul é diferente em ambos os lados”, explicou ao Expresso Jenny Town, diretora do site “38 North”, de análise sobre a Coreia do Norte. “A Coreia do Norte ainda olha para o acordo de 2000, que apontava para uma confederação: um país, dois governos. A Coreia do Sul tende a olhar para um hipotético país único.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de dezembro de 2021. Pode ser consultado aqui

Quando as primeiras-damas cantam a mesma canção

A aproximação entre países beneficia de um trabalho diplomático transversal que, muitas vezes, envolve também as primeiras-damas. É o caso da China e das duas Coreias, onde as mulheres dos Presidentes têm um passado comum: são as três antigas cantoras. Duas delas voltam agora a estar juntas, numa capital pouco comum para um encontro entre ambas

Ri Sol-ju (à esquerda) e Kim Jung-sook convivem durante um almoço em Pyongyang, à margem da cimeira intercoreana de setembro de 2018 FOTO GETTY IMAGES

A recente abertura da Coreia do Norte ao mundo, tornada possível pela mão que lhe estendeu Donald Trump, provocou uma discreta mudança no protocolo norte-coreano. Dias antes da histórica cimeira intercoreana de 27 de abril de 2018, na zona desmilitarizada de Panmunjom — onde, pela primeira vez, um líder norte-coreano pisou território do Sul —, a televisão pública norte-coreana noticiou a presença da mulher do líder Kim Jong-un, Ri Sol-ju, num espetáculo de ballet de uma companhia chinesa, em Pyongyang.

O espaço informativo foi apresentado por Ri Chun-hee, a famosa pivô dos anúncios importantes, que se referiu a Ri Sol-ju como “respeitada primeira-dama”. Até então, ela era sempre referida como “camarada Ri Sol-ju”.

Em vésperas de cimeiras importantes com a Coreia do Sul e com os Estados Unidos, este impulso ao estatuto da mulher do Presidente norte-coreano tornou-a “igual entre iguais” no contacto com outras primeiras-damas e deu para o exterior uma aparência de normalidade ao regime de Pyongyang.

Kim Jong-un e a mulher inauguram um parque de diversões em Pyongyang REUTERS

Desde março de 2018, quando Kim Jong-un efetuou a sua primeira viagem ao estrangeiro — à China —, Ri Sol-ju já privou com duas homólogas: a chinesa Peng Liyuan e a sul-coreana Kim Jung-sook. Dos encontros saíram imagens de grande empatia, que as obrigações protocolares não explicarão na sua totalidade. É que as três partilham uma paixão comum que, no passado, as levou a trilhar o mesmo percurso: são antigas cantoras.

A chinesa e a norte-coreana acabam aliás de estar novamente juntas, desta vez numa capital pouco comum para encontros entre ambas – e respetivos maridos -, Pyongyang, aonde o Presidente chinês termina esta sexta-feira uma visita oficial de dois dias, a primeira em 14 anos.

Os líderes chinês e norte-coreano e respetivas mulheres, esta quinta-feira, em Pyongyang EPA

O secretismo que envolve a Coreia do Norte faz com que pouco se conheça da personalidade de Ri Sol-ju. Terá nascido em 1984, no seio de uma família da elite norte-coreana. No sítio na internet da Universidade Kim Il-sung, de Pyongyang, o seu nome consta da lista de antigos alunos. Algumas notícias citando fontes ligadas aos serviços secretos sul-coreanos dão conta que terá estudado Canto na China. Certo é que foi solista na Orquestra Unhasu e notabilizou-se, em especial, na interpretação do tema “Pegadas do Soldado”.

https://www.youtube.com/watch?v=xsAUBG1KADM

A carreira artística da primeira-dama norte-coreana é anterior ao casamento com Kim Jong-un, que terá ocorrido em 2009. Dela diz-se também que integrou um grupo de “cheerleaders” que, em 2005, viajou até à Coreia do Sul para animar os Campeonatos Asiáticos de Atletismo, em Incheon. Esta é uma prática recorrente com a qual a Coreia do Norte procura atrair atenções fora de portas e transmitir uma imagem de talento, beleza, juventude e felicidade.

Aquando da cimeira intercoreana de Pyongyang, em setembro de 2018, a música teve um papel central na convivência das primeiras-damas. Visitaram o Conservatório Kim Won-gyun, acompanhadas pelo compositor Kim Hyung-suk e por duas estrelas da K-Pop, a cantora Ailee e o “rapper” Zico, todos membros da delegação sul-coreana.

No Grande Teatro de Pyongyang, Ri Sol-ju e Kim Jung-sook assistiram a um espetáculo com os maridos. Oriundas de países contrastantes a tantos níveis e aparentando uma o dobro da idade da outra, aproveitaram os momentos juntas para encurtar distâncias.

De mão dada, as primeiras-damas coreanas seguem os maridos, durante a primeira cimeira entre Kim Jong-un e Moon Jae-in, em Panmunjom GETTY IMAGES

Também no caso da sul-coreana Kim Jung-sook a música preencheu a sua vida de solteira. Nascida em 1954, conheceu Moon Jae-in na Universidade Kyung Hee, um estabelecimento privado da Seul, onde ele estudou Direito e ela Canto Lírico.

No mesmo ano em que terminou o curso, 1978, ela entrou como soprano para o Coro Metropolitano de Seul, de onde saiu em 1982, um ano depois de se casar com Moon. Após anos de ativismo pró-democracia contra a ditadura militar, que o tinham levado à prisão, ele começara finalmente a exercer advocacia.

Kim Jung-sook abandonou os palcos e passou a acompanhar o marido, filho de refugiados norte-coreanos, num percurso que os levaria até à Casa Azul, a sede da presidência sul-coreana.

O casal presidencial sul-coreano, no Monte Paektu, Coreia do Norte, a 20 de setembro de 2018 REUTERS

Na China, a subida à presidência de Xi Jinping, em 2013, também sentenciou o fim da carreira musical de Peng Liyuan, a atual primeira-dama. O casal conheceu-se em 1986, era ele vice-presidente da Câmara de Xiamen (sul) e ela já uma famosa cantora — em 1983, tornara-se uma celebridade nacional após atuar na Gala de Ano Novo transmitida pela televisão CCTV, o programa mais visto do ano. Quando se casaram, em 1987, Xi pouco mais era do que o marido de “Mama Peng”, como lhe chamavam alguns fãs.

Nascida em 1962, em Yuncheng (leste), começou a estudar música aos 15 anos. Atingida a maioridade, entrou no Exército de Libertação do Povo, em 1980, onde viria a chegar a general, e foi admitida no Conservatório de Música de Pequim. No Exército, tornou-se uma espécie de “combatente artística e cultural”, interpretando temas patrióticos, de exaltação da China e do exército chinês.

Neste espetáculo transmitido na CCTV a 1 de agosto de 2007, Peng Liyuan canta “Ei, quem nos vai ajudar a virar uma nova página? Quem nos vai libertar? É o querido Exército de Libertação do Povo, a estrela salvadora do Partido Comunista. O Exército e o povo são uma família, ajuda-nos a lavar as nossas roupas.”

A entronização do casal presidencial tornou alguns episódios da carreira de Peng Liyuan incómodos. Numa foto de junho de 1989, a soprano surge vestida com o uniforme militar verde, de microfone na mão, rodeada por militares de cócoras que a ouvem cantar. A foto foi tirada na Praça Tiananmen, a seguir à repressão das manifestações pró-democracia. Peng Liyuan cantava para os militares que tinham defendido os interesses do regime chinês.

Em Lisboa, Xi Jinping e Peng Liyuan posam numa varanda do Palácio de Belém, a 4 de dezembro de 2018, após serem recebidos pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa PEDRO FIÚZA / GETTY IMAGES

Em 2017, a primeira-dama chinesa foi homenageada pelos Estados Unidos. Numa cerimónia realizada no Conservatório de Música de Pequim, foi condecorada com o grau de Professora honorária conferido pela Juilliard School, famosa escola de música e artes cénicas de Nova Iorque.

“Esta honra não é apenas dada a mim, é também um reconhecimento da música popular chinesa e um reflexo dos laços culturais cada vez mais próximos entre chineses e norte-americanos”, disse Peng Liyuan durante a cerimónia. “Espero que a cooperação entre escolas de artes e organizações dos dois países se aprofunde no futuro.” Um desejo superior à guerra comercial em que vivem os dois países.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 21 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui