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O que se passa no mundo ao nível da vacinação? Uma discrepância comprometedora

Portugal tem quase 90% dos seus habitantes imunizados. Com uma população semelhante, o Burundi administrou as duas doses da vacina a apenas 0,1% de quem vive no país. A pandemia é global, mas a vacinação ainda não o é

IMAGEM PIXABAY

Ao terceiro ano de pandemia, tornou-se chavão — e uma certeza absoluta — dizer-se que a covid-19 não será controlada no mundo enquanto cada país não a controlar individualmente. Ao estilo de um tsunami, que vai e vem, também as vagas da doença se vão sucedendo, contagiando à vez todos os países. Ou quase todos…

A nível oficial, há quatro países que ainda não reportaram qualquer caso de covid-19. Dois deles têm regimes políticos opacos — a Coreia do Norte e o Turquemenistão — e outros dois são Estados insulares, rodeados pelas águas do Oceano Pacífico: Tuvalu e Nauru.

Em todos os outros, corre-se contra o tempo perante a emergência de novas variantes, como a Ómicron, mais contagiosa do que as anteriores. Mas olhando para o mapa-mundo da vacinação, esta é uma corrida muito desigual, que decorre a múltiplas velocidades.

Israel, por exemplo, já começou a administrar a segunda dose de reforço — na prática, a quarta vacina — a maiores de 60 anos, profissionais de saúde e qualquer pessoa considerada vulnerável. Os israelitas deram este passo no combate à pandemia apoiados nas conclusões preliminares de um estudo do Centro Médico Sheba, nos arredores de Telavive, segundo as quais a quarta dose produz cinco vezes mais anticorpos, uma semana após ser administrada.

Em contraste com a vanguarda de Israel, que tem 9 milhões de habitantes e já imunizou 64,3% da população, a República Democrática do Congo, onde vivem dez vezes mais pessoas, tem apenas 0,1% da população com a vacinação completa.

MALÁSIA (ANNICE LYN / GETTY IMAGES)

Segundo o site Our World in Data, que atualiza diariamente um conjunto de índices relativos à pandemia, 59,2% da população mundial já recebeu pelo menos uma dose da vacina para a covid-19. Porém, no conjunto dos países de baixo rendimento (segundo terminologia usada pelo Banco Mundial), essa percentagem não vai além dos 8,9%.

E quando se toma em consideração a vacinação completa (duas doses), a discrepância ao nível da percentagem da população imunizada é ainda mais gritante.

  • África: 9,7%
  • América do Norte e Central: 58,5%
  • América do Sul: 64,7%
  • Ásia: 58%
  • Europa: 61,9%
  • União Europeia: 69,9%
  • Oceânia: 58,6%

Numa outra abordagem ao estado da vacinação no mundo, em cada um dos cinco continentes, um grande fosso separa os países com maior percentagem de imunização daqueles com mais dificuldade em obter e aplicar as vacinas.

1. ÁFRICA

As ilhas Seicheles são o país com mais habitantes com vacinação completa (79,1%). No polo oposto está o Burundi, com menos de 0,1%.

2. AMÉRICA

Na metade norte do continente, o Canadá já garantiu a imunização de 77,6% da sua população, enquanto no Haiti apenas 0,7% está na mesma situação. A sul, o Chile é quem mais vacinou até ao momento (86,6%) e a Guiana menos (37,4%).

3. ÁSIA

Os Emirados Árabes Unidos lideram com 91,7% da sua população vacinada. Inversamente, o martirizado Iémen ainda só conseguiu imunizar 1,2%.

4. EUROPA

Com 89,9%, Portugal é o país com maior percentagem de população vacinada. Com apenas 22,1%, a Bósnia-Herzegovina é quem está mais atrasado. Entre os membros da União Europeia, o país com taxa de vacinação mais baixa é a Bulgária (28,2%).

5. OCEÂNIA

No mais pequeno dos continentes, a Austrália tem 77,3% dos seus cidadãos com duas doses tomadas, enquanto a Papua-Nova Guiné ainda só vai nos 2,5%.

Em muitos casos, os países com taxas de vacinação mais baixas terão dificuldades em aceder ao mercado das vacinas e estarão dependentes de doações. Mas em algumas latitudes, há fatores naturais que tornam as campanhas de vacinação verdadeiros desafios à destreza humana. Para que as vacinas cheguem às populações, as equipas médicas têm de subir montanhas, atravessar lagos ou desbravar caminhos cobertos de neve.

PERU (CARLOS MAMANI / AFP / GETTY IMAGES)
INDONÉSIA (ZUL KIFLI / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES)
FILIPINAS (EZRA ACAYAN / GETTY IMAGES)
ZIMBABWE (TAFADZWA UFUMELI / GETTY IMAGES)
MALÁSIA (ANNICE LYN / GETTY IMAGES)
BRASIL (MICHAEL DANTAS / AFP / GETTY IMAGES)
TURQUIA (CHRIS MCGRATH / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de janeiro de 2022. Pode ser consultado aqui

Nova variante complica planos de viagem dos emigrantes na África do Sul. “Estão aí à minha espera para passarmos a consoada juntos”

A época do Natal é das mais procuradas pelos emigrantes portugueses na África do Sul para virem a Portugal. Com a perspetiva de as fronteiras se fecharem a voos desse país, os planos complicam-se. Ao Expresso, emigrantes no país, alguns com viagem marcada, contam o que pensam fazer

A presidente da Comissão Europeia defendeu esta sexta-feira, no Twitter, a suspensão de voos entre o espaço europeu e um conjunto de países da África Austral. Na origem da decisão está o surgimento de uma nova variante do vírus SARS-CoV-2, especialmente agressiva, designada por ómicron.

“A Comissão Europeia vai propor, em estreita coordenação com os Estados-membros, a ativação do travão de emergência para parar viagens aéreas provenientes da região da África Austral, devido à preocupante variante B.1.1.529”, explicou Ursula von der Leyen.

O Reino Unido adiantou-se à União Europeia (UE) e proibiu a entrada no país de voos provenientes de seis países africanos, entre os quais a África do Sul. Para cidadãos portugueses emigrados neste país africano — onde se estima que vivam 250 mil portugueses e lusodescendentes — há que aguardar para ver se os 27 vão atrás, e em que moldes. Entretanto, Alemanha e Itália, pelo menos, já anunciaram que vão proibir a entrada nos seus territórios de viajantes da África Austral.

“Se o Governo disser que deixa entrar quem tenha passaporte português, as vacinas e um teste de covid negativo, mesmo que obrigue a quarentena, muitas pessoas que têm casa em Portugal, ou mesmo família que os hospede, irão na mesma”, comenta ao Expresso Hélio Sá, de 33 anos, residente em Joanesburgo. “Mas quem for para hotéis vai pensar duas vezes.”

Turistas e emigrantes

Este português tem esperança que, a confirmar-se o encerramento das fronteiras aos passageiros vindos da África do Sul, haja uma distinção entre turistas (necessitados de visto) e emigrantes (detentores de passaporte português), e que as portas se abram a quem cumpra as normas de segurança exigidas.

A 8 de dezembro, o pai de Hélio tem viagem marcada para Portugal, através de Luanda, a bordo da TAAG (Linhas Aéreas de Angola). “Ainda estamos à espera de perceber o que a UE e Portugal vão fazer, se fecham só para turistas ou se fecham também para quem tem passaporte português. Não sabemos qual vai ser a lei.”

Este Natal, Hélio, que trabalha na área dos seguros financeiros, não tinha planos para visitar a família, que vive na zona de Santa Maria da Feira. A última vez que visitou o país foi em 2014, e desde então a vida mudou: casou-se, teve dois filhos e, além de as prioridades terem mudado, deixou de poder pagar os bilhetes de avião, que encareceram muito.

Não há voos diretos entre Portugal e África do Sul

“Os nossos voos para Portugal nunca são diretos. Fazem sempre escala em qualquer lado, Dubai, Paris, Frankfurt”, e também Londres para onde havia vários voos diários. “A TAP, infelizmente, não está a voar para aqui”, lamenta ao Expresso o fotógrafo Carlos Silva, de 66 anos, a trabalhar na África do Sul desde 1974. “Antes deste vírus, eu ía a Portugal no mínimo duas vezes por ano. Este Natal não tenho intenções de ir, tenho coisas a fazer por aqui.”

Nelson Reis, de 69 anos e emigrante na África do Sul há 50, já tem viagem marcada para Portugal. Ao Expresso, diz estar disposto a estudar alternativas para tentar passar o Natal com a família. “Estão aí à minha espera para passarmos a consoada juntos. Já marquei e já paguei o bilhete”, diz a partir de Joanesburgo. Tem as duas doses da vacina tomadas e, apesar de ter origens em Cantanhede, é para Cascais que quer viajar, onde vive a filha. Viajante experiente, costuma vir a Portugal três, quatro vezes por ano. Se as fronteiras europeias se fecharem a voos da África do Sul, “vou procurar alternativas”.

A viver na África do Sul desde 1985, Vasco de Abreu, de 66 anos, é conselheiro das Comunidades Portuguesas e uma das portas a quem muitos portugueses batem para tentar buscar orientação. “Ainda hoje, uma série de pessoas me telefonaram porque estão com receio”, diz ao Expresso. “Têm passagens marcadas para este mês e para o princípio de dezembro, para irem passar o Natal e Ano novo com as famílias, e estão todos um bocado em pânico, sem saber que fazer, se cancelar, se manter as reservas…”

Arejar a casa e ir à caixa

A época do Natal e Fim de Ano (onde na África do Sul é verão) é das favoritas dos emigrantes para regressarem a Portugal, juntamente com os meses do (nosso) verão. Hélio Sá prevê que os portugueses que mais insistirão em viajar sejam os mais velhos, “pessoas que têm casa em Portugal, e querem arejar o espaço, ou que têm de ir à Caixa tratar de burocracias.”

Para os mais jovens, é mais fácil aceitar as circunstâncias. É o caso de Fátima Piedade, de 33 anos, administrativa numa empresa em Joanesburgo. A última vez que veio a Portugal foi há seis anos e tem tudo marcado para vir este ano. “Muitas pessoas vão a Portugal no Natal. Em dezembro, a minha empresa fecha, temos férias, é boa época para irmos a Portugal”, diz ao Expresso. “Neste momento, a única coisa a fazer é aguardar, e esperar pelo reembolso da viagem se não der para ir. E depois ir noutra altura.”

Conhecedor da sensibilidade portuguesa na África do Sul, Vasco de Abreu considera que essa será a decisão a prevalecer, se a fronteira portuguesa se fechar. “A grande maioria prefere ir noutra altura, porque não está para se sujeitar a ter de ficar de quarentena em Portugal”, diz. “Não faz sentido gastar esse dinheiro todo [com a viagem] e não poder estar com a família e ter de ficar em quarentena.”

(IMAGEM Grafismo de um vírus sobre a bandeira da África do Sul DELOITTE.)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de novembro de 2021. Pode ser consultado aqui

Vacinação desigual atrasa alívio

“Oito semanas com o dinheiro congelado. Ou enviam as vacinas, ou devolvem-nos o dinheiro.” O Presidente da Venezuela é dos mais inconformadas em relação ao processo de vacinação no mundo. Caracas entregou à OMS o equivalente a €100 milhões para beneficiar do mecanismo Covax de distribuição de vacinas, mas ainda não recebeu qualquer dose.

As sanções internacionais à Venezuela podem estar a agravar o problema, mas o protesto de Nicolás Maduro encerra uma preocupação universal: enquanto todos os países não controlarem a pandemia, o mundo não respirará de alívio. A campanha decorre de forma muito desigual. Enquanto países como a Venezuela têm menos de 10% da população vacinada, o Reino Unido (com mais de 70%) deu por concluída a fase das restrições e entregou a responsabilidade aos cidadãos. “É preciso aprender a conviver com o vírus”, defendeu o primeiro-ministro, Boris Johnson.

Um desafio à vacinação tem sido a metamorfose do SARS-CoV-2. Espanha, onde a variante Delta corresponde a 35% dos casos, alarma-se com o seu carácter altamente contagioso; outras latitudes já se confrontam com a nova estirpe, Lambda. Detetada pela primeira vez no Peru, onde predomina, já foi identificada nos Estados Unidos, Europa (dois casos em Portugal) e Austrália.

A braços com o forte aumento de infeções da variante Delta, esta semana a Austrália cancelou, pelo segundo ano consecutivo, os grandes prémios de Fórmula 1 e Moto GP, marcados para o outono. Ciente de que a batalha se trava fora de portas, enviou ontem para o vizinho Timor-Leste mais 40 mil doses da vacina. A prática tem beneficiado outras nações da região, onde a pandemia continua a ferro e fogo. Esta semana, o Japão declarou o estado de emergência em Tóquio até 22 de agosto. Vigorará, portanto, durante os Jogos Olímpicos.

Texto escrito com Ana França.

Artigo publicado no “Expresso”, a 9 de julho de 2021. Pode ser consultado aqui

Cuba abdicou da corrida às vacinas: arregaçou as mangas e está quase a ter a sua

As autoridades cubanas confiam que até ao fim do ano conseguirão imunizar toda a população contra a covid-19. Para tal, contam com pelo menos quatro vacinas em desenvolvimento nos seus laboratórios. É a última conquista de um país pobre, mas eficiente ao nível da saúde pública, apesar das sanções do gigante vizinho setentrional. “O bloqueio económico dos Estados Unidos devia ser considerado uma violação dos direitos humanos”, defende ao Expresso um historiador norte-americano

Cuba está no lote dos países que ainda não administraram qualquer dose de qualquer vacina contra a covid-19. No entanto, as autoridades de Havana esperam ter os seus mais de 11 milhões de cidadãos imunizados até ao fim do ano. O “milagre” é fácil de explicar: o país abdicou de disputar a ‘corrida internacional à vacina’ e lançou-se a produzir o seu próprio fármaco.

Neste momento, há quatro vacinas em desenvolvimento nos laboratórios cubanos: a Soberana 01 e a Soberana 02, do Instituto de Vacinação Finlay, e ainda a Abdala e a Mambisa, do Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia. A última tem a particularidade de ser administrada por via intranasal e não intramuscular. A 3 de março, o Presidente cubano, Miguel Díaz-Canel, anunciou uma quinta candidata.

Até ao final do ano, Cuba espera produzir 100 milhões de doses, o que lhe permitirá atender às necessidades internas e exportar o restante. Esta meta coloca a ilha entre a elite dos países com capacidade científica no domínio da saúde pública.

“Era expectável que Cuba tivesse uma vacina para a covid-19 na fase de ensaios clínicos. Cuba avançou na biomedicina durante décadas. Os Estados Unidos opuseram-se com ferocidade a esses avanços, rotulando falsamente as instalações cubanas de laboratórios de armas biológicas”, comenta ao Expresso o historiador norte-americano Ronn Pineo, especialista na área da América Latina.

“Cuba já exportava vacinas para países em desenvolvimento necessitados, sem procurar lucro. E exportará esta nova vacina se ela se mostrar segura e eficaz, o que parece muito provável. No entanto, o bloqueio dos Estados Unidos está a dificultar o fornecimento de suprimentos, como frascos de vidro, por exemplo, na quantidade necessária.”

As dificuldades decorrentes do embargo acicatam o orgulho nacional implícito nos nomes patrióticos dados às vacinas: além das “Soberana”, “Abdala” é nome de um poema escrito pelo herói revolucionário José Martí e “Mambisa” é referência a guerrilheiros independentistas cubanos que combateram Espanha, no século XIX.

As vacinas mais adiantadas são a Soberana 02 e a Abdala, que avançaram, este mês, para a fase III dos testes clínicos, a última antes da aprovação para uso. A eficácia do fármaco está a ser avaliada em mais de 85 mil voluntários em Havana, Santiago de Cuba e Guantánamo e noutras 50 mil pessoas… no Irão.

Aliança Cuba-Irão

Esta colaboração é ditada por razões geopolíticas, já que Cuba e Irão são alvo de sanções dos Estados Unidos que penalizam também os sectores da saúde. Para o Teerão, um dos países do Médio Oriente mais atingidos pela covid-19, que já começou a vacinar com a russa Sputnik V, Cuba afigura-se como uma porta de saída do pesadelo.

“O bloqueio económico dos Estados Unidos devia ser considerado uma violação dos direitos humanos. Qualquer que seja a justificação que os decisores políticos americanos erradamente pensaram existir durante a Guerra Fria, é óbvio que isso já não se aplica há mais de três décadas”, critica o professor da Universidade de Towson, Maryland (EUA).

No decorrer da pandemia, uma doação de máscaras, kits de testes rápidos e ventiladores feita pelo empresário chinês Jack Ma, fundador da empresa Alibaba, não conseguiu chegar a Cuba. A empresa de transporte norte-americana contratada para o efeito recusou-se a fazer o frete, escudando-se no Helms-Burton Act, que reforçou o embargo à ilha.

Noutro exemplo, duas empresas que habitualmente forneciam equipamentos médicos a Cuba — a IMT Medical AG e a Acutronic — terminaram a sua relação comercial com a ilha após serem compradas pela norte-americana Vyaire Medical Inc., em 2018.

Estes obstáculos obrigaram Cuba a procurar provisões em mercados mais distantes, como a China, a ter mais custos com o transporte e a sofrer demoras desnecessárias.

A pandemia de covid-19 deu relevância a outra vertente da política de saúde de Cuba que não cede ao peso das sanções: o envio de missões médicas para países em situações de emergência. Durante a primeira vaga, quando Itália era o epicentro da catástrofe, Cuba enviou 52 médicos para a região da Lombardia.

“Cuba tem sido muito generosa na ajuda a países em desenvolvimento por todo o mundo, fornecendo profissionais de saúde. Cuba vai aonde é convidada, independentemente da política do país anfitrião”, diz o professor Ronn Pineo. “Hoje, a ilha continua a mostrar um dos melhores rácios médico-população do mundo. Cuba não sofre com a falta de médicos ao enviá-los para o estrangeiro. Tem excedente de médicos.”

Um “exército de batas brancas”

Segundo o Banco Mundial, o rácio de Cuba é mesmo o melhor do mundo, com uma média de 8,4 médicos por mil habitantes (dados de 2018). Portugal tem 5,1 (dados de 2017).

Esse “exército de batas brancas”, como lhe chamou o líder cubano Fidel Castro, nasceu após a Revolução de 1959. A primeira missão foi enviada para o terreno em 1960, para o Chile, depois de um sismo na cidade de Valdivia ter provocado milhares de mortos.

400.000
profissionais de saúde cubanos já foram destacados para missões no estrangeiro, em pelo menos 164 países, para responder a crises de curto prazo, desastres naturais e, atualmente, à pandemia de covid-19

Em 2005, Fidel Castro batizou estes contingentes médicos de “Brigadas Henry Reeve”, em homenagem a um jovem norte-americano que combateu pela independência de Cuba, no século XIX. À época, o furacão Katrina tinha devastado, em particular, Nova Orleães. O histórico líder cubano ofereceu ajuda aos Estados Unidos, recusada pelo então Presidente George W. Bush.

Desde então, as “Brigadas” já proporcionaram ajuda em contextos de sismo (Paquistão e Indonésia), erupção vulcânica (Guatemala, 2018) ou emergências de saúde pública, como o surto de cólera no Haiti (2010) e a epidemia de Ébola na África Ocidental (2014).

Hoje, as missões médicas cubanas são um poderoso instrumento diplomático de soft power e uma das principais fontes de receita e de reconhecimento internacional para Cuba.

Para cada país beneficiário das suas missões médicas, Cuba celebra um acordo diferente. No caso da Venezuela, por exemplo, a ilha caribenha recebeu petróleo.

Muitas vezes, os médicos cubanos são encarados como uma espécie de guarda avançada do regime de Havana e, consequentemente, alvo de retaliações. No Brasil, após a eleição de Jair Bolsonaro, milhares de médicos cubanos que trabalhavam no Programa Mais Médicos receberam guia de marcha de regresso a casa. O mesmo ocorreu na Bolívia e no Equador após a saída do poder dos presidentes Evo Morales e Rafael Correa, respetivamente.

“Regras draconianas” nas missões médicas

Em julho do ano passado, a Human Rights Watch denunciou que o Governo cubano impõe “regras draconianas” aos médicos destacados nas missões, que “violam os seus direitos fundamentais”. “Os governos interessados em receber apoio de médicos cubanos deviam pressionar o Governo cubano para rever este sistema orwelliano, que dita com quem os médicos podem viver, apaixonar-se ou conversar”, defendeu então José Miguel Vivanco, diretor da organização para o continente americano.

“Uma forma de avaliar as condições dos profissionais de saúde cubanos nas missões no exterior é tentar averiguar quantos desses trabalhadores abandonam o programa. Quase nenhum o faz”, contrapõe o professor Pineo. “Aqueles que deixaram as missões expressaram, muitas vezes, descontentamento com as condições. As autoridades cubanas deviam fazer mais para levar a sério essas preocupações expressas. Todos os cubanos devem gozar do direito político de expressar as suas opiniões, seja em Cuba ou em missões médicas no estrangeiro.”

Em Cuba, o lema parece ser ‘fazer muito com pouco’. “É um modelo para muitos países”, disse o anterior secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-moon, quando visitou Cuba em 2014, elogiando o sistema de saúde local.

“Cuba teve um êxito notável nas medidas sanitárias mais importantes. Embora tenha um rendimento per capita de cerca de um décimo do dos Estados Unidos, a taxa de mortalidade infantil em Cuba é bem mais baixa”, conclui o historiador norte-americano. “O foco de Cuba na saúde pública e na medicina preventiva, por oposição à medicina curativa, começa a explicar as suas conquistas na área da saúde.”

(IMAGEM As várias vacinas para a covid-19 produzidas em Cuba FACEBOOK DE JOSÉ ANGEL PORTAL MIRANDA, MINISTRO DA SAÚDE DE CUBA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de março de 2021. Pode ser consultado aqui

Rapidez e robustez: as duas armas com que o Vietname ‘encaixotou’ o vírus

Encostado à China, o Vietname é um caso de sucesso no combate à covid-19. Do governo autocrático à experiência acumulada em contextos de epidemias, a estratégia vietnamita passa essencialmente por antecipar-se aos problemas e atuar com rapidez

O Vietname, com quase 100 milhões de habitantes, tem dos registos mais eficazes no combate à pandemia de covid-19. Com uma fronteira de cerca de 1300 quilómetros com a China — onde tudo começou —, o país conseguiu contornar os piores cenários verificados em países mais desenvolvidos e com mais meios.

Este país do Sueste Asiático comunicou o seu primeiro caso positivo no longínquo 23 de janeiro de 2020 — uma vietnamita de 35 anos que passou dois meses em Wuhan, numa viagem de negócios —, e as duas primeiras mortes a 30 de julho seguinte. Até esta sexta-feira, segundo a contagem da Universidade Johns Hopkins, contabilizava apenas 2426 casos de infeção e 35 mortes por covid-19.

O facto de o Vietname ter um Governo autocrático pode levantar suspeitas sobre a credibilidade dos números. O infeciologista Guy Thwaites, diretor da Unidade de Pesquisa Clínica da Universidade de Oxford, em Ho Chi Minh (antiga Saigão), garante ao Expresso: “Os números estão corretos. O Governo não está a esconder nada”.

O Vietname é um país jovem, com uma média de idades a rondar os 30 anos, e tem uma taxa de obesidade (fator de risco para a covid-19) extremamente baixa. Mas o que verdadeiramente fez a diferença em relação a países com mais e melhores meios foi, sobretudo, a resposta rápida e robusta com que conseguiu “encaixotar” o vírus.

Da experiência acumulada na gestão de epidemias passadas até uma estratégia de testagem direcionada, há dez pilares do modelo vietnamita que — combinados — têm protegido o país de um cenário de caos.

1. SISTEMA DE SAÚDE DESENVOLVIDO

O Muro de Berlim ainda não caíra, mas no Vietname, governado pelo Partido Comunista, já havia a noção de que algo teria de mudar. Em 1986 um conjunto de reformas económicas que ficaram conhecidas como “Doi Moi” visaram a transformação de uma economia planificada centralizada para uma economia de mercado de orientação socialista. O sector da saúde foi dos que beneficiaram de forte investimento. Entre 2000 e 2016 os gastos com a saúde pública aumentaram em média 9% por ano, per capita. A capacidade do sistema de saúde vietnamita possibilita que, atualmente, todos os casos positivos de covid-19 sejam hospitalizados, independentemente dos sintomas do paciente, sem que os hospitais entrem em rutura.

2. EXPERIÊNCIA ACUMULADA

O Vietname tem experiência de combate a epidemias — a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, em 2003-3004), a gripe das aves (2004-2005) e o Zika (2016) — que agora se revelou preciosa para atacar o SARS-CoV-2. Em 2003, o país tornou-se mesmo o primeiro a ser retirado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) da lista de territórios afetados pela SARS. Decorrente de todas estas emergências, o Vietname está hoje dotado de um centro nacional de operações de emergência de saúde pública, equipado com epidemiologistas, e um sistema nacional de vigilância de saúde pública. Tudo contribui para que as autoridades atuem com conhecimento de causa e a população reconheça e obedeça.

3. DADOS CENTRALIZADOS

Há cerca de dez anos, o Vietname transferiu para a Internet o seu robusto sistema de recolha e cruzamento de dados de entidades de saúde pública, agilizando a reação aos problemas. Desde 2016, os hospitais são obrigados a reportar determinadas doenças a uma base central num período de 24 horas. Isto permite ao Ministério da Saúde acompanhar uma crise epidemiológica em tempo real.

4. VIGILÂNCIA DE PROXIMIDADE

O Vietname tem um programa de vigilância comunitária que capacita professores, farmacêuticos, líderes religiosos, responsáveis comunitários e até curandeiros para relatarem situações suspeitas. Os alertas são dados, por exemplo, perante aglomerados de pessoas com sintomas semelhantes que possam indiciar a emergência de um surto.

5. TESTES DIRECIONADOS

Se o Vietname tem uma testagem à covid-19 per capita relativamente baixa, lidera destacadíssimo a lista dos países que mais testam por caso positivo. Em vez de realizar testes em função dos sintomas da população, o Vietname optou por testar com base na exposição ao risco, priorizando as pessoas identificadas no rastreamento de contactos dos casos positivos e acorrendo com rapidez a edifícios ou bairros onde se registavam surtos.

Esta estratégia passou por um amplo rastreamento em redor de cada caso positivo (F0) envolvendo quem contactou com a pessoa infetada nos 14 dias anteriores (F1). Se F1 testasse positivo era hospitalizado, se testasse negativo ficava 14 dias de quarentena num centro administrado pelo Governo. Contactos próximos de um paciente F1 (F2) ficavam em isolamento em casa durante duas semanas. E assim sucessivamente até ao grau F5.

6. CONFINAMENTOS RIGOROSOS

Cerca de um mês antes de a OMS classificar a epidemia de covid-19 como “pandemia” (o que aconteceu a 11 de março de 2020) e apelar à adoção de “ações urgentes e agressivas” para inverter o rumo da situação, já as autoridades vietnamitas confinavam localidades. Em meados de fevereiro, Son Loi foi isolada durante quase um mês quando se descobriu que seis dos seus cerca de 10 mil habitantes estavam entre os 16 casos de covid-19 detetados no país.

Outro tipo de confinamento rigoroso aconteceu em abril seguinte, quando a localidade de Dong Van (7600 habitantes) ficou confinada 24 horas enquanto aguardava pelo resultado de testes à covid-19 feitos a moradores suspeitos.

Na fase inicial da pandemia, as autoridades vietnamitas lidaram com o problema com rédea muito curta, mais ainda quando foram detetados casos importados. As medidas passaram não só pelo isolamento de pessoas que tinham contactado com pessoas infetadas, ou que viviam na mesma rua, ou que tinham viajado no mesmo avião. Muitos passageiros oriundos de países fortemente afetados pela pandemia ficaram duas semanas de quarentena nos centros do Governo. E os voos internacionais foram desviados dos aeroportos onde partiam e chegavam voos domésticos.

7. TECNOLOGIA INTRUSIVA

A resposta vietnamita à covid não dispensou a tecnologia. Com a doença no país há menos de dois meses, o Ministério da Saúde lançou a aplicação móvel (app) NCOVI, que ajuda a montar sistemas de vigilância de bairro: nela os cidadãos podem não só notificar diariamente o seu estado de saúde como fornecer informação sobre casos suspeitos nas suas áreas de residência. Esta app inclui um mapa dos casos detetados que permite que os utilizadores observem o movimento em tempo real de pessoas colocadas em quarentena. Sem valorizar as questões da privacidade, para muitos vietnamitas, os fins justificam os meios.

Pouco depois, a 15 de abril de 2020, foi lançada outra app, a Bluezone, que funciona através de bluetooth e notifica os utilizadores de uma possível exposição ao vírus a dois metros de distância. A Bluezone foi descarregada mais vezes do que apps populares como o Messenger e o TikTok.

8. COMUNICAÇÃO CLARA

O primeiro aviso do Ministério da Saúde à população sobre os perigos da doença foi feito a 9 de janeiro de 2020, quando ainda não tinha sido ainda detetado qualquer caso de covid-19 fora da China. Desde então o Governo de Hanói não mais parou de comunicar com o público, em espaços públicos, enviando sms, aproveitando as redes sociais (só o Facebook tem 64 milhões de utilizadores no Vietname) ou adaptando a letra de um popular tema musical vietnamita, agora intitulado “Ghen Co Vy” (Coronavírus Ciumento).

A comunicação frequente — sob o lema “Lutar contra a epidemia é como lutar contra o inimigo” — contribuiu para criar um espírito de comunidade em que cada cidadão se sente motivado a cumprir a sua parte, seja usando a máscara ou tolerando confinamentos.

“Cada cidadão é um soldado, cada casa, aldeia, área residencial é uma fortaleza na luta contra a pandemia.”

Nguyen Xuan Phuc
primeiro-ministro do Vietname
9. RAPIDEZ NA ATUAÇÃO

O Vietname não esperou pela confirmação do primeiro caso positivo dentro de portas para aplicar confinamentos e limitar a mobilidade de quem lá vive. As escolas foram encerradas quando apenas havia notícias de uma “grave pneumonia” na China. Por vezes, as autoridades associaram à rapidez decisões drásticas. Quando, a 25 de julho de 2020, foi detetado o primeiro caso de transmissão local no país, na estância turística de Da Nang, o local foi rapidamente evacuado, o que obrigou à transferência de 80 mil pessoas, a maioria turistas locais. Foi nesta cidade, a 31 de julho, que se registou a primeira vítima mortal no país.

10. GOVERNO AUTORITÁRIO

O regime de partido único e, consequentemente a ausência de oposição política, torna possível uma cadeia de comando única desde o Presidente Nguyen Phu Trong — simultaneamente secretário-geral do Partido Comunista — e a autoridade local na mais pequena aldeia do país. Num contexto de emergência pública, é a situação ideal para passar mensagens, mobilizar recursos, aplicar estratégias e punir, se for caso disso. Desde 14 de abril de 2020 que publicar, nas redes sociais, informação falsa ou distorcida, mentiras e calúnias passou a ser punido com multas. Para um país como o Vietname, que sente estar a travar mais uma guerra biológica, tudo vale para a vencer.

(ILUSTRAÇÃO PHARMACEUTICAL TECHNOLOGY)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui