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Exército iraquiano em marcha para reconquistar Kirkuk aos curdos

Três meses após o referendo à independência do Curdistão, apoiado por uma esmagadora maioria, Bagdade lança uma operação militar para recuperar Kirkuk, cidade conquistada pelos curdos aos jiadistas do Daesh. Rica em petróleo, Kirkuk é um pilar fundamental de um eventual Curdistão independente

O exército iraquiano tem em curso uma grande ofensiva militar visando a reconquista, aos peshmergas (curdos iraquianos), da cidade de Kirkuk — região rica em petróleo e um dos pilares económicos de um futuro Curdistão independente.

A operação desenvolve-se em várias frentes e as forças federais contam com o apoio das Forças de Mobilização Popular Iraquianas (também conhecidas como Hashd al-Shaabi), maioritariamente xiitas.

“O Presidente [curdo Massoud] Barzani ordenou a todas as unidades peshmergas que não iniciem a guerra, mas se alguma milícia avançar e começar a disparar, então os peshmergas têm luz verde para usar todo o poder para resistir”, anunciou, no Twitter, Hemin Hawrami, assistente do Presidente curdo.

Segundo a Al-Jazeera, esta segunda-feira, os militares iraquianos controlavam já o aeroporto internacional da cidade, um campo petrolífero, uma base militar (K1) e a localidade de Taza Khormatu, a sudeste de Kirkuk.

O jornal digital Kudaw acrescenta que o grupo Hashd al-Shaabi cortou a eletricidade para tentar tomar o controlo das posições dos peshmergas. E, na sua conta no Twitter, divulgou um vídeo onde se vê soldados iraquianos a arriarem a bandeira do Curdistão e a içarem a iraquiana, momentos após entrarem em Kirkuk.

Em Kirkuk, vivem cerca de um milhão de pessoas, maioritariamente curdas, mas também árabes, turcomenas e cristãs. Segundo o jornal curdo Kudaw, o primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, nomeou, esta segunda-feira, um árabe (Rakan al-Jbourri) como novo governador de Kirkuk.

Bloqueio ao Curdistão

Esta operação militar arranca três semanas após um referendo à independência do Curdistão, aprovado por 92,73% dos votos expressos, ao qual as autoridades de Bagdade responderam decretando um bloqueio àquela região autónoma do norte do Iraque.

“É meu dever constitucional trabalhar em benefício dos cidadãos e da proteção da nossa unidade nacional que ficou ameaçada de fragmentação em resultado do referendo organizado pela região curda”, afirmou, esta segunda-feira, o primeiro-ministro Haider al-Abadi. “O referendo realizou-se numa altura em que o país está a combater o terrorismo do Daesh. Tentamos incitar [os curdos] a não violarem a Constituição e a concentrarem-se na luta contra o Daeh, mas eles não ouviram… Sobrepõem os seus interesses pessoais aos interesses do Iraque.”

Os curdos, o maior povo sem Estado do mundo, sonham com a independência há séculos. As suas forças armadas — profissionais, disciplinadas, bem equipadas e com mulheres destemidas na linha da frente — foram fundamentais para a derrota do autodenominado Estado Islâmico (Daesh) no Iraque.

Em língua curda, “peshmerga” significa “aquele que enfrenta a morte”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de outubro de 2017. Pode ser consultado aqui

Uma independência que ninguém quer… a não ser o maior povo do mundo sem Estado

O sonho tem séculos e os curdos não o esquecem. Esta segunda-feira realiza-se um referendo simbólico à independência daquele que é o maior povo sem Estado

Mapa do Curdistão iraquiano pintado com a bandeira curda WIKIMEDIA COMMONS

A independência do Curdistão é um tema recorrente na política internacional. Os curdos são o maior povo sem Estado em todo o mundo 45 milhões, estima a Fundação-Instituto Curdo de Paris ­, mas nunca viram concretizado o sonho de se governarem a si próprios. Recentemente, essa ambição voltou a ganhar palco após o protagonismo dos peshmergas (forças curdas iraquianas) no combate ao autodenominado Estado Islâmico (Daesh). Profissionais, disciplinados, bem equipados e com mulheres destemidas na linha da frente na língua curda, peshmergas” significa aqueles que enfrentam a morte” , destoaram das desorganizadas e, por vezes, medrosas tropas iraquianas contribuindo para o prestígio da nação curda.

Na próxima segunda-feira, o Governo Regional do Curdistão que administra quatro províncias do norte do Iraque (Dohuk, Erbil, Sulaimaniyah e Halabja) organiza um referendo visando “alcançar um objetivo sagrado, que é a independência”, prometeu o presidente curdo, Massoud Barzani, na quarta-feira, num comício em Sulaimaniyah, diante de 20 mil pessoas. A consulta decorrerá também nas zonas disputadas pelos curdos e por Bagdade, que chegaram a estar nas mãos do Daesh e agora são controladas pelos peshmergas (como Sinjar ou Kirkuk, esta rica em petróleo). O referendo não é vinculativo, mas conferirá legitimidade às autoridades curdas para exigirem a separação do resto do país.

“Os curdos são a quarta maior nacionalidade no Médio Oriente e uma das nações mais antigas do mundo. Distinguem-se de outras nacionalidades da região em todos os aspetos [desde logo, não são árabes, apesar de Saladino, o grande herói dos árabes, ser curdo, e têm língua própria]. Durante muito tempo, os curdos foram ofuscados pela sombra dos nacionalismos turco, persa e árabe. As potências internacionais devem aos curdos o fim dessas injustiças históricas que os marginalizaram”, diz ao Expresso Bashdar Ismaeel, analista político curdo a viver em Londres.

Em causa está um território onde vivem mais de cinco milhões de pessoas, maioritariamente curdos, mas também assírios, árabes, arménios, turcomentos, caldeus, iazidis… O Curdistão tem um Parlamento próprio, em Erbil (capital), e forças militares (peshmergas). O orçamento do Governo Regional é alocado pelo Governo federal iraquiano.

A autonomia foi conquistada em condições dramáticas após a Guerra do Golfo (1991), quando os Estados Unidos decretaram uma zona de exclusão aérea sobre o Curdistão para proteger os curdos dos bombardeamentos de Saddam Hussein. Hoje, o contexto é muito diferente. “Os curdos têm uma forte posição estratégica, são atores-chave em muitos conflitos no Médio Oriente e têm reservas de petróleo consideráveis que podem suportar um Estado.”

Efeito dominó nos países vizinhos

Um Curdistão independente amputaria o Iraque de parte importante do seu território e faria disparar os alarmes de um efeito dominó nos países vizinhos que têm minorias curdas, designadamente na Turquia, na Síria e no Irão. Os maiores receios sentem-se na Turquia, onde mais de 20% da população é curda e onde o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, separatista) é considerado uma “organização terrorista”.

“A Turquia pode tomar medidas contra o Governo Regional do Curdistão mas é pouco provável que use a força militar. A Turquia tem fortes laços geopolíticos e económicos com os curdos, especialmente devido ao oleoduto [Kirkuk-Ceyhan]. Quaisquer medidas destinadas a punir os curdos teriam um efeito de ricochete”, defende Bashdar Ismaeel, também colunista de publicações como Kurdistan 24 e Ekurd Daily.

MAPA WIKIMEDIA COMMONS (2008)

“O Curdistão tem ligações fortes a muitos países. Acabou de assinar um grande acordo [de exploração] de gás com a Rosneft, da Rússia. A Turquia devia saber que [a construção de] um oleoduto lucrativo seria um aval efetivo a uma eventual independência curda.”

Esta semana, num comício, o presidente curdo afastou o cenário de uma cisão violenta. “Estamos preparados para iniciar conversações sérias, muito amigáveis e honestas com Bagdade, com a comunidade internacional ou com o apoio da comunidade internacional. Se for necessário tempo, um ano ou dois, no máximo, resolveremos todos os problemas nesse tempo. E depois diremos adeus de forma amigável”, disse. Esta sexta-feira, em entrevista ao britânico “The Guardian”, Massoud Barzani foi mais azedo, acusando o Iraque de ser “um Estado teocrático e sectário” e dizendo que o Parlamento iraquiano que no dia 12 rejeitou o referendo curdo “não é federal. É chauvinista e sectário. A confiança em Bagdade está abaixo de zero”.

“Os curdos têm repetido que querem um entendimento com Bagdade com base na diplomacia e no diálogo”, comenta Bashdar Ismaeel. “Eles já controlam o seu território. Se for usada a força, isso será orquestrado contra os curdos e não iniciado pelos curdos.”

Esta semana, em Nova Iorque, após discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas, o Presidente francês, Emmanuel Macron, disse que a França não se opõe ao referendo, mas… em vez de exigirem a independência, os curdos deveriam “pedir respeito e representatividade no Governo e na Constituição do Iraque para todas as minorias, em particular os curdos”.

Escaldados com a História, os curdos não estarão muito recetivos a conselhos ocidentais. Após a I Guerra Mundial, o Tratado de Sèvres (1920), entre Aliados e o derrotado Império Otomano, contemplou a criação de um Curdistão em território turco, deixando de fora os curdos do Irão, do Iraque (controlado pelos britânicos) e da Síria (tutelada pela França). Depois, o assunto foi silenciado.

“O Iraque ou os países ocidentais podem fazer pouco para impedir o Estado [curdo]”, conclui Bashdar Ismaeel. “Além do mais, é-lhes difícil justificar por que razão muitas nacionalidades puderam exercer o seu direito histórico [à autodeterminação] há mais de um século, mas não os curdos. Argumentam com o momento ou então com a possível desestabilização do Médio Oriente. Mas, como a liderança curda tem questionado de forma repetida, haverá alguma vez um bom momento para os curdos? E quando é que o Médio Oriente foi verdadeiramente estável?”, questiona. “Em todo o caso, a liderança curda não está a pedir apoio aos países ocidentais, apenas que não interfiram.”

Artigo publicado no Expresso Diário, a 22 de setembro de 2017. Pode ser consultado aqui