Arquivo da Categoria: Daesh

Porque usam os jiadistas tantos Toyotas? Os EUA querem saber

Os Toyotas tornaram-se quase uma imagem de marca de grupos terroristas como o autodenominado Estado Islâmico (Daesh). Os Estados Unidos já contactaram a marca japonesa para tentar perceber como chegam às mãos dos jiadistas

O Governo dos Estados Unidos quer saber por que razão há tantos Toyotas nas mãos do autodenominado Estado Islâmico (Daesh) e já contactou a construtora japonesa para que ajude a determinar a origem dos carros que se veem nos vídeos jiadistas.

O pedido de informação foi efetuado por uma unidade especial do Departamento do Tesouro encarregue de investigar o financiamento ao terrorismo.

“Lamentavelmente, os Toyotas Land Cruiser e Hilux tornaram-se quase imagem de marca do Daesh”, disse à ABC Mark Wallace, ex-embaixador dos EUA na ONU e atual presidente do Counter Extremism Project, organização sem fins lucrativos que visa expôr o apoio financeiro às redes terroristas.

“O Daesh usa este tipo de veículos em ações de tipo militar e atividades terroristas. Em quase todos os vídeos, aparece uma frota de Toyotas e isso preocupa-nos muito.”

Ao serviço da propaganda jiadista

Muitos veículos da marca japonesa — a segunda maior construtora mundial, a seguir à Volkswagen — surgem, com frequência, em vídeos de propaganda jiadista filmados no Iraque, Síria e Líbia. Desejados pela sua fiabilidade em terrenos extremos, os Toyotas são também usados em ações de patrulha, equipados com armamento pesado e carregados com terroristas empunhando armas ou a bandeira negra do califado.

Quando o Daesh conquistou Raqqa e desfilhou, em parada, pelo centro daquela cidade síria, em meados do ano passado, mais de dois terços dos carros eram Toyotas. Havia também Mitsubishis, Hyundais e Isuzus.

“Nós descrevemos ao Departamento do Tesouro as nossas rotas de abastecimento no Médio Oriente bem como os nossos procedimentos para proteger a integridade desse fornecimento”, afirmou Ed Lewis, diretor de Política e Pública e de Comunicação da Toyota.

A marca, continuou, tem “uma política restrita no sentido de não vender veículos a potenciais compradores que possam usa-los ou modifica-los para fins terroristas ou atividades paramilitares”. Ed Lewis acrescentou que é impossível para a empresa seguir o rasto dos veículos que são roubados, comprados ou recomprados.

Centenas de carros, novos e usados

Em declarações à ABC, o embaixador iraquiano nos EUA, Lukman Faily, disse que, paralelamente à utilização de veículos usados, as autoridades de Bagdade acreditam que o Daesh adquiriu “centenas de novos” Toyotas nos últimos anos. “Temos feito esta pergunta aos nossos vizinhos. Como é possível que estes carros novos, estes 4×4, centenas deles… de onde é que eles vêm?”

A investigação das autoridades norte-americanas visa contribuir para estancar o fluxo de bens produzidos no Ocidente e que acabam nas fileiras jihadistas, através de redes de contrabando.

A 1 de abril de 2014, a Public Radio International noticiou que, quando o Departamento de Estados dos EUA decidiu apoiar os rebeldes do Exército Livre da Síria com “ajuda não-letal”, a lista de entregas incluía 43 camiões Toyota. Mais recentemente, um artigo publicado no jornal australiano “The Daily Telegraph” alertava para o desaparecimento de mais de 800 Toyotas em Sidney, entre 2014 e 2015.

Estatísticas da Toyota referem que as vendas de Hilux e de Land Cruisers no Iraque triplicaram entre 2011 e 2013 (de 6000 unidades para 18.000). Em 2014, caíram para 13.000. Na Síria, as vendas foram suspensas em 2012.

“Gastamos o nosso tempo a combater estes terroristas e por isso não conseguimos controlar a fronteira entre o Iraque e a Síria”, asmitiu o brigadeiro-general Saad Maan, porta-voz dos militares iraquianos.

“Não creio que a Toyota tente, intencionalmente, lucrar com isto”, conclui Mark Wallace, “mas estão avisados e deviam fazer mais”. No início do ano, a Counter Extremism Project escreveu diretamente à construtora instando-a a fazer mais para seguir o fluxo de veículos para o Daesh, dado que todos têm números de série, facilmente rastreáveis.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de outubro de 2015. Pode ser consultado aqui

Barbárie sem fim

Após a decapitação de vários ocidentais, o autoproclamado Estado Islâmico queimou vivo um refém muçulmano. Perante as dificuldades militares, os jiadistas procuram compensar apostando na guerra psicológica

A bandeira negra do autodenominado Estado Islâmico WIKIMEDIA COMMONS

ISIL, ISIS, Estado Islâmico, Daesh… Na hora de designar o grupo terrorista que domina grande parte da Síria e do Iraque, a imprensa internacional desorienta-se, num exercício muitas vezes destinado a não conferir ao grupo terrorista o estatuto político que reclama. Talvez seja um pormenor, perante as contínuas demonstrações de poder dos jiadistas que acabam de subir mais um patamar na escala da barbárie: capturado em finais de dezembro, o piloto jordano Muath Kasasbeh foi enjaulado, regado com gasolina e transformado numa tocha humana, tudo registado num vídeo com 22 minutos de duração que mais se assemelha a uma curta-metragem.

“É terrível, mas é uma tática típica dos grupos terroristas que procuram compensar a sua falta de força militar, nomeadamente ao nível da Força Aérea, pela guerra psicológica, aterrorizando o adversário e apostando na erosão da vontade política de o combater”, comentou ao Expresso Bruno Cardoso Reis, investigador do Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa.

“O problema é sempre onde estabelecer o limite, de forma a continuar a ter impacto, mas a não provocar uma reação ainda mais forte. Há que ver as consequências a médio prazo. Será que depois de responder a este desafio direto, a Jordânia mantém o nível de empenhamento? Ou resguarda-se discretamente?”

A morte do jordano segue-se às decapitações de cinco cidadãos ocidentais — os norte-americanos James Foley, Steven Sotloff e Peter Kassig e os britânicos David Haines e Alan Henning —, igualmente filmadas e publicadas na internet. Em sua posse, os jiadistas têm pelo menos mais dois ocidentais. Um deles é John Cantlie, o fotógrafo britânico que já surgiu em oito vídeos de propaganda do Estado Islâmico, o último dos quais a 3 de janeiro, onde aparece a guiar uma visita à cidade iraquiana de Mosul.

Nas mãos do Estado Islâmico está também uma norte-americana de 26 anos, raptada na Síria no ano passado quando desenvolvia trabalho humanitário e cuja identidade nunca foi revelada.

Como responder?

“Não há soluções ou estratégias rápidas para combater grupos terroristas ou guerrilhas bem organizados e bem enraizados localmente”, continua Bruno Cardoso Reis. “A chave está em obter boas informações, mas estes grupos são difíceis de penetrar e escutar. Está também em procurar desestruturar a capacidade de comando e controlo coordenado da sua liderança; apostar em separar populações muçulmanas locais (seja no Levante, seja na Europa) destes grupos. Se perderem enraizamento local ficam mais expostos. Deste ponto de vista, este tipo de atos, para mais contra um piloto muçulmano, podem ser úteis na guerra de propaganda. O risco é uma retaliação desproporcionada, como por exemplo um ataque jordano que atinja as populações civis em zonas controlados pelo grupo.”

Na terça-feira, os Estados Unidos anunciaram o aumento da sua assistência financeira à Jordânia, de 660 milhões de dólares (527 milhões de euros) para 1000 milhões de dólares (879 milhões de euros) por ano, para o período 2015-2017.

Reino Unido e Estados Unidos — que têm cidadãos cativos do Estado Islâmico — recusam pagar resgates a grupos terroristas. Mas os montantes pedidos pelos jiadistas têm sido tão exorbitantes que é legítimo questionar se a intenção é rentabilizar uma “indústria de resgates” ou apenas afirmar poder.

Pela vida de James Foley, o primeiro ocidental a ser decapitado, os extremistas pediram 100 milhões de euros, exatamente a mesma quantia exigida ao Governo de Tóquio por cada um dos dois reféns japoneses, recentemente executados.

“Nunca levamos os 100 milhões a sério”, confessou Philip Balboni, administrador do “GlobalPost”, para onde Foley trabalhava quando foi raptado, em 2012. “Os resgates pagos por outros reféns do Estado Islâmico tinham sido substancialmente mais baixos.” Segundo Balboni, as quantias que vinham sendo pagas oscilavam entre os 2 e os 4 milhões de euros. Além disso, houve apenas aquela exigência, “nunca houve uma negociação”.

Em junho de 2012, quando conquistaram Mosul — o que colocou o Estado Islâmico no mapa político internacional —, os jiadistas invadiram o Banco Central daquela cidade iraquiana e deitaram mão a 500 mil milhões de dinares (370 milhões de euros). Com esta fortuna, escreveu então no Twitter o analista Brown Moses (Brown Moses Blog): “Eles conseguem comprar muita jihad. Conseguem, por exemplo, pagar a 60 mil combatentes cerca de 600 dólares (527 euros) por mês durante um ano”.

Inversamente ao que é defendido em Londres e Washington, alguns países europeus já abriram, por várias vezes, os cordões à bolsa para salvar nacionais, designadamente França, Itália, Espanha e Alemanha. Segundo uma investigação do diário “The New York Times”, divulgada em julho do ano passado — e por isso, referente ainda à era Al-Qaeda —, a França foi, desde 2008, o país que mais pagou a terroristas (mais de 51 milhões de euros), seguida da Suíça (11 milhões de euros) e Qatar e Omã (que em conjunto desembolsaram 18 milhões de euros). A Espanha terá gasto quase 10 milhões de euros.

Muitos aderiram, poucos participam

Na segunda-feira, o jornal britânico “Daily Mail” noticiou que metade dos principais comandantes do Estado Islâmico e cerca de 6000 combatentes jiadistas já terão sido mortos desde o início dos bombardeamentos internacionais, em setembro.

Segundo o Departamento de Estado dos EUA, mais de 50 países já declararam apoio à coligação: muitos contribuem com ajuda humanitária, mas poucos participam nas operações militares. Para além dos Estados Unidos, já participaram nos bombardeamentos o Reino Unido e a França e ainda vários países árabes — Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Jordânia.

O piloto Muath Kasasbeh foi capturado quando participava precisamente nos bombardeamentos e o seu avião despenhou-se perto de Raqqa, na Síria. Ao executarem-no, os extremistas quiseram verdadeiramente punir a Jordânia por participar nos ataques a território muçulmano. Talvez por isso, a vida do jordano não tenha valido nem um pedido de resgate.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 4 de fevereiro de 2015. Pode ser consultado aqui

“Síria vive o seu pior momento”

Um brasileiro descreve, desde Alepo, a crescente radicalização dos rebeldes e o perigo de sequestro que os ocidentais correm

Rebeldes sírios, numa pausa para oração, em Alepo GABRIEL CHAIM

Kobane, cidade síria junto à Turquia, tornou-se, no Ocidente, o símbolo do combate ao Estado Islâmico (Daesh). Entre os sírios, hoje, é palavra proibida. “Pediram-me que não falasse de Kobane a ninguém. Estão cheios de raiva. Acham que a ajuda internacional a Kobane só revela o esquecimento em relação ao povo sírio”, diz ao Expresso o fotógrafo brasileiro Gabriel Chaim, 33 anos, a partir da cidade de Alepo. “Os sírios estão em guerra há quatro anos, já morreram milhares de crianças e nunca houve uma intervenção desta magnitude. A ajuda a Kobane só multiplica o ódio ao Ocidente. Assad é tão assassino quanto o Daesh, só que este decapitou ocidentais.”

No último ano, Gabriel passou mais tempo no Médio Oriente do que no Brasil. A Síria, diz, está “no seu pior momento”, com muitas guerras dentro da guerra. Alepo, por exemplo, é disputada por forças do regime e rebeldes anti-Assad. Entre estes, há múltiplas tendências, algumas — como a Frente al-Nusra (ligada à Al-Qaeda) — cada vez mais parecidas com o Daesh. “A Nusra aliou-se a outros grupos e está a tentar conquistar Zahar e Nepol”, cidades xiitas a norte de Alepo.

A aviação dos Estados Unidos tem visado a Nusra, mas o grupo, diz o brasileiro, “está a crescer muito. Alguns grupos rebeldes, como o Jamal Maruf, que tem apoio dos EUA, combatem a Nusra. Mas em breve ela vai aliar-se ao Daesh, pode escrever.”

Gabriel sai hoje da Síria, após um crescente sentimento de insegurança. “O Daesh avisou que pagaria bem por qualquer estrangeiro. Se não existir um bom esquema de segurança, qualquer pessoa pode ser sequestrada mesmo onde o Daesh não está, como Alepo”, diz. “A guerra dura há anos. Os combatentes de ontem não têm a mesma cabeça. O ódio tomou conta deles. Não têm dinheiro para comer, precisam de comprar munições, qualquer dinheiro é bem-vindo.”

Gabriel andava com seguranças afetos ao Exército Livre da Síria (rebeldes moderados). “Íamos num carro que tinha uma bomba instalada. Se nos sequestrassem, explodiam tudo.” Andava de lenço na cabeça e barba crescida. Só assim conseguiu aproximar-se de Suran, na fronteira com o Daesh.

“Há o último checkpoint do Exército Livre da Síria e a seguir o do Daesh. Um autocarro faz esse caminho e várias pessoas entram e saem diariamente em Raqqa (a capital do Daesh). Falei com um comerciante que vai três vezes por semana a Raqqa comprar gasolina para vender em Alepo. O Daesh controla o mercado do combustível. Vende aos rebeldes, ao regime e à Turquia. Até o peixe que entra em Alepo vem do Estado Islâmico”.

Artigo publicado no Expresso, a 29 de novembro de 2014

Curdos iraquianos, a nova “arma” em defesa de Kobane

Os bombardeamentos da coligação internacional não chegam para travar o “Estado Islâmico”. Forças curdas iraquianas vão a caminho da Síria para reforçarem a defesa da cidade estratégica de Kobane

Um grupo de “peshmergas” (combatentes curdos iraquianos) está a caminho da Síria para reforçar as hostes que lutam contra o “Estado Islâmico”, que ameaça tomar a cidade de Kobane, junto à fronteira com a Turquia.

Cerca de 150 combatentes, divididos em dois grupos, saíram do Iraque e entraram na Turquia, onde ficaram a aguardar entrada na Síria.

Um mais pequeno viajou por terra, transportando consigo armamento pesado. Já em território turco, foi recebido em clima de festa por curdos locais (cerca de 20% da população da Turquia é curda) que agitavam bandeiras do Curdistão (o país com que sonham). Os curdos iraquianos (que já desfrutam de uma região autónoma) responderam com o “V” da vitória. A polícia disparou para o ar para dispersar a multidão.

O contingente mais numeroso viajou de avião até ao aeroporto Sanliurfa, no sudeste da Turquia, onde chegaram na madrugada de quarta-feira, seguindo depois em autocarros escoltados por forças de segurança turcas.

Antes de entrarem na Síria, os dois grupos têm reunião prevista durante esta quarta-feira, na região de Suruc, a cerca de 15 quilómetros de Kobane.

Bombardeamentos ineficazes

A Turquia tem sido fortemente pressionada para se envolver mais ativamente no combate ao “Estado Islâmico” e, concretamente, impedir que os jihadistas conquistem Kobane.

Semanas de bombardeamentos aéreos contra posições jihadistas nessa cidade (uma campanha em que participam os Estados Unidos e aliados árabes) não romperam ainda com o cerco montado pelos jihadistas (que só não controlam a parte norte, precisamente junto à fronteira com a Turquia).

A colaboração com os combatentes curdos é, porém, um assunto sensível na Turquia, onde o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) luta, há décadas, por um Curdistão independente em parte do território.

Segundo o sítio “Al-Monitor”, especializado na análise sobre o Médio Oriente, cerca de 150 combatentes do Exército Livre da Síria (rebeldes moderados apoiados pelo ocidente e pela Turquia) atravessaram, esta quarta-feira, a fronteira turco-síria com o intuito de reforçar a defesa de Kobane. O Observatório Sírio dos Direitos Humanos confirmou a informação, mas colocou o número em 50. 

Desconhece-se qual a origem deste grupo específico. O Exército Livre da Síria é uma coligação de forças rebeldes que integra seculares e islamitas. Recentemente, Ancara prometeu facilitar o trânsito de 1300 combatentes do Exército Livre da Síria.

A ofensiva do “Estado Islâmico” sobre Kobane dura desde 16 de setembro. Em 40 dias de combates morreram 815 pessoas. Para além de estratégica, a batalha de Kobane tem uma importância simbólica: é um teste à coligação internacional formada para travar a ameaça islamita.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de outubro de 2014. Pode ser consultado aqui

Uma sombra negra desceu sobre o Iraque

O grupo jihadista EIIL nasceu no Iraque e deu nas vistas na Síria. Atingidos por essa ameaça, os dois países estão a desintegrar-se

Bandeira do Estado Islâmico, também usada pelos grupos terroristas Al-Shabaab, Al-Qaeda na Pemínsula Arábica, Al-Qaeda no Magrebe Islâmico e Boko Haram WIKIMEDIA COMMONS

A ofensiva de grupos jihadistas em direção a Bagdade coloca uma dúvida inquietante: poderá o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) conseguir, no Iraque, aquilo que a Al-Qaeda nunca conseguiu? Controlar um país? “Duvido”, diz ao Expresso Bernardo Pires de Lima, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI). “Além de ser difícil conquistar áreas predominantemente xiitas, como Bagdade, surgirão diferentes abordagens e tensões entre os jihadistas e as tribos sunitas que também estão em campo contra o primeiro-ministro Nuri al-Maliki (xiita). Nesse sentido, prevejo uma dupla dificuldade no controlo do país.”

Em menos de uma semana, os jihadistas içaram a bandeira negra em cidades do norte e centro e controlam uma área maior do que Israel, com petróleo, linhas de alta tensão, prisões e armas, algumas fornecidas pelos EUA. No norte a única força militar credível é o exército do território autónomo curdo que, preventivamente, ocupou Kirkuk após a debandada das tropas de Bagdade.

A marcha do EIIL parou em Samarra, a 120 km da capital. Para Pires de Lima, a tomada de Bagdade é, porém, “uma probabilidade distante. Sendo sobretudo xiita, a cidade oferece pouco apoio sunita a uma investida militar. Por outro lado, tanto o exército, fortemente xiita, como as milícias xiitas não darão margem a que a capital seja tomada. Além disso, potências interessadas, como EUA e Irão, já estão preparadas para dar auxílio.”

O ataque irrompeu no dia 10 com a conquista de Mossul, a segunda cidade, numa zona rica em petróleo. Ao estilo de um Estado dentro do Estado, os jihadistas usam os recursos minerais em seu proveito, “fazendo como já fazem na Síria (onde controlam Deir Ezzor, província rica em petróleo): revendendo ao regime, a bom preço, para se financiarem”, diz Pires de Lima.

“A importância da Síria no mercado de petróleo é menor do que a do Iraque, e é provável que os principais compradores financiem mais segurança nas refinarias. Refiro-me à China que compra metade da produção.”

A pobretanas Al-Qaeda

Numa medida que mais parece destinada a exibir potencial e seduzir financiadores, o EIIL publica, desde 2012, o relatório anual de atividades, dando informações sobre ataques à bomba, assassínios, checkpoints, missões-suicidas, conversões de “apóstatas” e ganhos territoriais. Em 2013, o grupo diz ter feito 10 mil operações no Iraque, que provocaram 1000 mortos e resultaram na libertação de centenas de prisioneiros radicais.

Estima-se que o EIIL tenha, atualmente, 15 mil combatentes. E que antes de tomar Mossul, o EIIL já cobrasse, por mês, oito milhões de dólares (seis milhões de euros) em extorsões aos comerciantes locais. Após conquistar Mossul, o grupo assaltou o edifício local do Banco Central de onde levou 425 milhões de dólares (313 milhões de euros). Crê-se que por alturas do 11 de Setembro, o orçamento anual da Al-Qaeda rondasse os 30 milhões de dólares (22 milhões de euros).

Mais do que a sua capacidade militar, o sucesso do EIIL — com origem na Al-Qaeda do Iraque, nascida no contexto da invasão americana de 2003 e que se alimentou do colapso institucional que se seguiu à queda de Saddam Hussein — ilustra, acima de tudo, a implosão do exército de Bagdade. Vários comandantes foram dos primeiros a fugir de Mossul.

Traduz ainda a impopularidade, dentro do ‘triângulo sunita’ (os vértices são Bagdade, Ramadi e Tikrit), do Governo iraquiano que tem marginalizado a minoria sunita, em que, até 2003, Saddam (natural de Tikrit) se apoiou. Por isso e não tanto por admirarem o EIIL, muitos sunitas alinham com os jihadistas.

Para Pires de Lima, investigador também na Universidade Johns Hopkins, em Washington DC, esta ofensiva jihadista era “absolutamente previsível”. “Em janeiro, já tinham tomado Fallujah e Ramadi, pondo a nu as enormes fraquezas do exército. E, no último ano, quando se incompatibilizaram com os grupos laicos e moderados da oposição síria, aproveitaram a livre circulação entre as duas fronteiras para apontar forças ao norte e oeste iraquiano, onde os sunitas mais odeiam o Governo de Maliki, que tudo tem feito para dividir o país com um chauvinismo xiita e uma perseguição política a líderes civis e militares sunitas.”

Territórios aos bocados

O analista recorda que “o Iraque faz parte do sonho do EIIL, o Al-Sham ou a Grande Síria, geografia que não respeita as fronteiras desenhadas no fim dos impérios, antes procura agrupar a comunidade sunita submetendo-a à sharia sem qualquer contemplação”.

Quarta-feira, o Governo português repudiou “as imagens particularmente chocantes de atrocidades cometidas” por grupos terroristas, apelou “à imediata libertação dos cidadãos turcos” reféns em Mossul e defendeu que “a unidade do Iraque deve prevalecer”.

No Iraque e na Síria, essa unidade é, porém, cada vez mais artificial. A Síria “está desintegrada. Assad controla o terço territorial mediterrânico, os curdos autoproclamaram um estado autónomo a norte e os sunitas (terroristas ou militantes anti-Assad) o resto”, diz Pires de Lima. “A manutenção de Assad no poder pode ser um ponto de partida para uma investida militar de ocidente para leste. Nesse sentido, a integridade síria pode ser um capítulo em aberto. Julgo ser o quadro que mais agrada aos EUA, UE, Rússia, Irão e Turquia. A questão é a reação da Arábia Saudita e de grandes financiadores sunitas como o Qatar.”

A desintegração atinge também o Iraque, “embora exista uma estrutura mais descentralizada do Estado. Podemos ter como solução uma federação pouco dirigida pelo Governo central (como querem as tribos sunitas) e com regiões autónomas autossuficientes, como existe a norte com os curdos. Este seria o compromisso político depois de eliminada a ameaça terrorista, o que vai demorar.”

Bagdade já pediu ajuda aos EUA que dali retiraram no fim de 2011. O Irão já enviou tropas para defender a capital e os lugares santos xiitas de Najaf e Karbala. “Este terrorismo aproxima EUA e Irão, mas os EUA não querem abrir mão da aliança com a Arábia Saudita, vista por Maliki como o promotor financeiro do EIIL e das tribos sunitas. O Irão apoiará financeira e militarmente as milícias xiitas que estão ao lado do exército iraquiano e, como na Síria, são fundamentais para garantir o sucesso. Os EUA podem usar drones, mas não é de esperar que mandem tropas.”

Ainda os Açores

Num ensaio publicado no sítio da Faith Foundation, há uma semana, Tony Blair, ex-chefe do Governo britânico e um dos protagonistas da invasão do Iraque em 2003, afastou responsabilidades pelo estado do país, preferindo culpar “a situação na Síria”. “Temos de nos libertar da noção de que ‘nós’ causámos isto”, disse.

Autor do livro “A Cimeira das Lajes — Portugal, Espanha e a guerra do Iraque”, Bernardo Pires de Lima conclui: “Mais do que a guerra de 2003, o pósguerra foi um dos grandes falhanços geopolíticos das últimas décadas para o Ocidente. Não garantiu um aliado confiável em Bagdade, descredibilizou-se na região com os argumentos que originaram a guerra, depauperou a sua cadeia de informações e mostrou não ter noção do planeamento pósconflito.” O resultado está à vista.

Artigo publicado no Expresso, a 21 de junho de 2014