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Que acontece a quem foge da Coreia do Norte, arrepende-se e decide voltar para casa?

Não são muitos, mas há quem decida regressar depois de ter arriscado a vida para fugir do país mais fechado do mundo. Para muitos desertores norte-coreanos, a vida no Sul rico e democrático não correspondeu às expectativas. De volta à terra natal, onde enfrentam o rótulo de “traidores”, tanto os esperam punições exemplares como papéis de destaque na propaganda do regime

Num país tantas vezes descrito como autoritário, repressivo e impiedoso com quem hesita na lealdade ao regime, não se estranha que haja cidadãos que, em contextos de grande desespero, arrisquem a vida para fugir da Coreia do Norte — de onde só se sai com autorização superior. Já é mais difícil compreender que depois de concretizarem a fuga com êxito queiram regressar ao país de onde desertaram e onde têm o rótulo de “traidores”.

Segundo o Ministério da Unificação da Coreia do Sul, nos últimos cinco anos, pelo menos 12 desertores norte-coreanos deram-se mal no próspero e democrático Sul e optaram por regressar ao último reduto do comunismo à face da Terra: três em 2015, quatro em 2016, quatro em 2017 e um a 19 de julho passado. O número pode, na realidade, ser muito superior já que Seul não sabe do paradeiro de outros 891 desertores norte-coreanos.

O caso mais recente foi especialmente badalado. Segundo as autoridades de Pyongyang, um homem de 24 anos — que desertara para a Coreia do Sul em 2017, a nado, numa odisseia ao longo da fronteira mais fortificada e vigiada do mundo que lhe valeu sete horas e meia dentro de água —, é suspeito de ter reentrado na Coreia do Norte infetado com o novo coronavírus, condição que a Coreia do Sul não confirmou. Se até então, o regime norte-coreano não tinha admitido a existência de casos positivos de covid-19 no país, este “caso importado” facilitou a narrativa de Pyongyang sobre o assunto.

“As motivações [para o regresso de desertores norte-coreanos ao seu país] variam, mas no geral isso deve-se ao facto de as suas vidas na Coreia do Sul passarem por momentos difíceis”, explica ao Expresso Go Myong-Hyun, do Instituto Asan de Estudos Políticos, de Seul. “Neste caso recente, o desertor estava a ser acusado de agressão sexual e corria o risco de ser condenado a uma pena de prisão. Isso incentivou-o a regressar clandestinamente ao Norte.”

Há também quem queira regressar à Coreia do Norte porque ficou sem dinheiro, por vezes perdido em esquemas e golpes, ou também porque tem saudades da família. Lee Kwang-baek, diretor do jornal digital “Daily NK”, exemplifica ao Expresso ambas as situações.

“Lee Hyuk-chul, que foi para a Coreia do Sul em 2013, entrou em conflito com o seu irmão mais velho [também desertor] e tornou-se um vagabundo, antes de roubar um barco de pesca e regressar à Coreia do Norte. Já Chae Sung-chan, que entrou na Coreia do Sul em 1996, ficou com saudades da mulher e da filha e voltou para a Coreia do Norte em 2005. Entregou todo o dinheiro que tinha às autoridades norte-coreanas para evitar ser punido e pensa-se que conseguiu voltar a viver com a família.”

Outros ainda optam por voltar depois de verem a família ameaçada pelas autoridades norte-coreanas ou porque não conseguiram adaptar-se à realidade do Sul. “Frequentemente, os desertores da Coreia do Norte, em especial homens mais velhos que tiveram posições de algum poder na Coreia do Norte, tiveram dificuldades de adaptação à vida na Coreia do Sul”, diz ao Expresso Jenny Town, vice-diretora do “38 North”, sítio de análise à realidade norte-coreana.

“Aqueles que chegam ainda crianças conseguem adaptar-se mais facilmente, mas quem chega em idade pós-escolar costuma ter grandes dificuldades para se estabelecer num ambiente drasticamente diferente. Além disso, na sociedade sul-coreana ainda existe um pouco de discriminação contra os desertores norte-coreanos.”

As estatísticas do Ministério da Unificação sul-coreano indicam que desde 1998 atravessaram ilegalmente a fronteira com a Coreia do Sul 33.670 norte-coreanos — 135 dos quais no primeiro semestre deste ano. Mais de metade (19.228) tinham entre 20 e 39 anos quando desertaram e 5095 eram crianças ou jovens em idade escolar. Quase metade do total de desertores (15.140) eram “desempregados” e 13.342 “trabalhadores”.

Talvez o aspeto mais surpreendente do fenómeno das deserções norte-coreanas seja o facto de 72,1% do total de fugitivos (24.266) serem do sexo feminino. Desde 2002 que, anualmente, o número de desertoras é superior ao de desertores.

“A principal razão prende-se com o facto de, na sociedade norte-coreana, os homens terem mais possibilidades de arranjar empregos nos sectores formais — militares e Governo”, explica Jenny Town. Já às mulheres é dada liberdade para desenvolverem atividades económicas. As autoridades permitem que elas vendam nos mercados locais (jangmadang), onde os homens não estão autorizados a fazê-lo.

“As mulheres costumam trabalhar em fábricas ou nos sectores informais, em mercados e como empregadas domésticas, o que facilita a sua mobilidade”, continua Jenny Town. “Isso torna-as também mais bem preparadas para se adaptarem às economias de mercado assim que conseguem sair do país.”

Para as norte-coreanas que se predispõem a desertar para a China — o outro país, para além da Coreia do Sul, com quem a Coreia do Norte tem fronteira terrestre —, o caminho está muitas vezes armadilhado. “Muitas desertoras são vítimas de tráfico de seres humanos por parte de chineses e norte-coreanos”, afirma Go Myong-Hyun.

“Inicialmente, são recrutadas na Coreia do Norte com falsas promessas de emprego na China, mas assim que são traficadas para fora da Coreia do Norte são vendidas a homens chineses à procura de noivas. Algumas acabam por escapar das mãos dos seus maridos sequestradores para a Coreia do Sul.”

Aos desertores arrependidos o regresso à Coreia do Norte reserva destino incerto. “Vai depender das circunstâncias”, explica Jenny Town. “Os desertores capturados enfrentam punições severas, como longas sentenças em campos de prisioneiros. Porém, nos casos em que os desertores regressam voluntariamente, o castigo pode ser menos severo em virtude do potencial valor da situação para a propaganda.”

Em 2017, a desertora Lim Ji-hyun voltou à Coreia do Norte após ter vivido três anos na Coreia do Sul. Se no Sul se tornou um rosto conhecido na televisão por aquilo que representava, regressada ao Norte surgiu num vídeo em que falava na “falsa ilusão” que fora, para si, pensar que podia ganhar muito dinheiro no Sul.

(IMAGEM Mural de propaganda norte-coreana MARK FAHEY / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de agosto de 2020. Pode ser consultado aqui