Arquivo da Categoria: Desporto

Cristiano Ronaldo, o novo avançado da ambição internacional da Arábia Saudita

A Arábia Saudita quer enterrar de vez a imagem negativa que a persegue fora de portas e conta com o prestígio de Cristiano Ronaldo para consegui-lo. Esta parceria pode atravessar-se na corrida de Portugal ao Mundial de 2030

A transferência de Cristiano Ronaldo (CR7) para o clube Al-Nassr, da Arábia Saudita, aos 38 anos, pode soar a princípio do fim da carreira de um futebolista extraordinário que recebeu por cinco vezes a Bola de Ouro, troféu que consagra o melhor jogador do mundo. Para o país que o acolheu, contudo, Ronaldo é a esperança de uma grande transformação.

Entre a visibilidade que veio dar ao campeonato saudita e a animação que gera no seio de uma população de 35 milhões, em que 70% têm menos de 35 anos, Ronaldo contribui, pela positiva, para a afirmação internacional de um país agastado por uma imagem ultraconservadora e desrespeitadora dos direitos humanos e por um estatuto que depende, em exclusivo, da abundância de petróleo.

“Julgo que a ida de Ronaldo para a Arábia Saudita é uma mistura de soft power e exercício de marketing, dois conceitos que estão ligados entre si”, comenta ao Expresso David Roberts, professor no King’s College de Londres. “Diz respeito a um reposicionamento mais vasto da Arábia Saudita e à tentativa de criar uma narrativa fundamentalmente diferente, que a afaste de questões negativas e de imagens do passado” e conduza o país “em direção a um sentimento popular inequívoco mais positivo”. Para este perito em assuntos do Médio Oriente, “Ronaldo é muito importante nesse novo pensamento”.

A arma da imagem

Nos manuais de Ciência Política, soft power (poder brando) é um conceito que remete para a capacidade de influência de um país por via do exemplo, dos valores e da aposta em áreas como a cultura e o desporto. Por contraponto, o hard power (poder duro) é o recurso a meios coercivos, sejam militares ou económicos, como as sanções.

“Acredito que a Arábia Saudita esteja a investir no desporto porque reconhece que um país não pode confiar apenas no hard power. Também precisa de soft power para manter boas relações com outros países”, diz ao Expresso Danyel Reiche, professor na Universidade de Georgetown no Qatar. “Por isso, reconhece que os poderes militar e económico não bastam e que também precisa de investir na sua imagem.”

Pelo respeito que conquistou dentro e fora dos relvados, CR7 é uma extraordinária ferramenta de soft power para um país desesperado por reabilitar a sua imagem, degradada nos últimos anos pela campanha de bombardeamentos no Iémen e, sobretudo, pelo caso de Jamal Khashoggi, jornalista saudita crítico do regime que foi assassinado e desmembrado no interior do consulado da Arábia Saudita em Istambul, na Turquia.

A investigação ao crime implicou diretamente o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman (MbS), homem forte do reino e principal mentor de um amplo programa de reformas com que o país se quer abrir ao mundo e no qual CR7 pode ser um peão importante.

Do Newcastle à Fórmula 1

“Ronaldo reflete a mudança na política de poder, que conta não apenas com o hard power, mas passa a visar também o soft power”, diz Reiche. Na área do desporto, “os investimentos começaram antes de Ronaldo, com os jogos [de futebol] referentes às Supertaças de Espanha e de Itália a realizarem-se na Arábia Saudita” e a compra do Newcastle United F.C., clube tradicional inglês, por um fundo de investimentos pertencente à família real saudita.

O país investiu também nos desportos motorizados, passando a acolher o mítico rali Dacar em 2020 e, no ano seguinte, inscrevendo uma corrida no calendário de Fórmula 1, o Grande Prémio de Jeddah, que este ano se realiza a 19 de março. Em 2022, a Arábia Saudita criou o torneio LIV Series, uma espécie de superliga do golfe.

Desde que foi lançada em 2016, a estratégia “Visão 2030” — o tal plano de reformas — tem por objetivo primordial diversificar a economia saudita e reduzir a dependência do reino relativamente à indústria do petróleo, impulsionando, por exemplo, o sector do turismo.

Em paralelo, o programa tem implícito o objetivo de aliviar o controlo wahabita — doutrina religiosa ultraconservadora, austera e puritana, que é religião oficial do Estado — sobre a sociedade. O fim da proibição de as mulheres conduzirem, em 2018, foi uma das medidas mais simbólicas e mediáticas, bem como a autorização da entrada das cidadãs sauditas nos estádios de futebol.

Concubinato é ilegal, mas…

Neste capítulo, a presença de Ronaldo e família na Arábia Saudita é desafiante. Tanto quanto se sabe, o futebolista não é casado com a companheira e o concubinato é prática interdita no reino. Os analistas ouvidos pelo Expresso desvalorizam essa condição, realçando o percurso que a Arábia Saudita vem trilhando em matéria social.

“Se é verdade que Cristiano e a sua companheira não são casados, não vejo que isso seja problema. O atual Governo saudita indicou de várias formas que está a tentar romper com o passado e não se importa com essas abordagens conservadoras da velha guarda”, diz Roberts, autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City State”.

“O Governo muda as políticas e retira poderes e influência às crenças religiosas e afins. Nesse sentido, mesmo que a lei não seja consentânea com a realidade, não me parece que isso seja uma preocupação” para as autoridades sauditas, acrescenta o docente.

A tolerância de que Ronaldo beneficia no que respeita à sua condição matrimonial vem em linha com uma lei adotada em 2019, que passou a permitir que turistas estrangeiros solteiros partilhem um quarto de hotel, e que levou as autoridades a fecharem os olhos a algumas dinâmicas dos habitantes estrangeiros.

“O relaxamento das normas sociais não começa com o facto de Ronaldo morar com a sua companheira sem serem casados”, diz Reiche, investigador nas áreas do desporto, política e sociedade. “Há muitas mudanças sociais em curso na Arábia Saudita e o desmantelamento da polícia religiosa em 2016 foi, na minha opinião, a maior de todas.”

Abaya niqab já não são obrigatórios

Formada na década de 1940, a chamada Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício destruía instrumentos musicais, invadia salões de beleza, rapava cabeças, chicoteava pessoas e queimava livros. Difícil é imaginar como atuaria perante um casal com um estilo de vida e exposição mediática que vão além do que é aceite na Arábia Saudita, ainda que o uso da abaya (túnica comprida) e do niqab (véu quase integral) já não seja obrigatório em público para as mulheres.

Roberts não acredita no potencial de contestação social que a falta de sincronia entre o quotidiano de Ronaldo e a realidade saudita possa originar. “Não acho que o Governo saudita sinta pressão de movimentos sociais dentro do país. É muito controlado e controlador, está aos comandos da narrativa.”

A nova estrela do Al-Nassr F.C. (“A Vitória”, em árabe), um dos principais clubes de Riade, é campeão dentro e fora dos relvados. Ronaldo tem mais de 550 milhões de seguidores na rede social Instagram, mais de 160 milhões no Facebook e quase 108 milhões no Twitter.

A sua companheira, a influencer argentina Georgina Rodriguez, é seguida por cerca de 47 milhões de pessoas no Instagram. Se, em público, “Gio” procura primar pela discrição, nas redes sociais posa para as selfies com a ousadia de sempre.

Através das redes sociais, o casal funciona como vitrina para sinais de mudança no país que é o guardião dos dois principais lugares santos do Islão — as mesquitas de Meca e de Medina.

Acusações de sportswashing

A 3 de janeiro, quando foi apresentado em Riade, o próprio CR7 reclamou um papel nesse processo. “Tive muitas oportunidades… Muitos clubes tentaram contratar-me, mas dei a minha palavra a este clube para desenvolver não só o futebol, mas outras áreas deste país fantástico”, disse na conferência de imprensa.

“Quero dar uma visão diferente deste clube e deste país. É por isso que aproveitei esta oportunidade.”

A opção do futebolista português pela Arábia Saudita, Estado não muito cotado nos rankings de respeito pelos direitos humanos, motivou a Amnistia Internacional a emitir um comunicado ao estilo de apelo.

“Cristiano Ronaldo não devia permitir que a sua fama e estatuto de celebridade se tornem uma ferramenta saudita de sportswashing [uso do desporto para melhorar a reputação e mascarar ações merecedoras de condenação]. Devia usar o seu tempo no Al-Nassr para falar sobre a miríade de problemas com os direitos humanos no país.”

Circunscrevendo o impacto do português ao sector desportivo, Ronaldo pode contribuir fortemente para o desenvolvimento da modalidade no reino e noutros países árabes, à semelhança da importância de Pelé no aumento da popularidade do soccer nos Estados Unidos. O “rei” jogou no Cosmos de Nova Iorque entre 1975 e 1977 — os Estados Unidos organizam o Mundial em 1994.

A Arábia Saudita não parece disposta a esperar tanto pelo seu momento. Depois de o futebol ao mais alto nível ter chegado ao Golfo Pérsico com o Mundial no Qatar, em 2022, a Arábia Saudita parece ansiosa por também acolher esse torneio.

Notícias recentes dão conta de que o reino terá sondado o Egito e a Grécia no sentido de uma candidatura conjunta ao Mundial de 2030. Com o anúncio do(s) país(es) organizador(es) previsto para o próximo ano, uma candidatura saudita poderia robustecer-se com o apoio de Ronaldo.

Ronaldo contra Portugal?

“Não tenho a certeza de que 2030 seja hipótese realista para a Arábia Saudita, já que acaba de realizar-se um Campeonato do Mundo no Qatar”, diz Reiche. “Mas é certo que a Arábia Saudita quer ter o seu Mundial um dia, mesmo que não seja em 2030.”

A eventualidade de Ronaldo se tornar uma espécie de embaixador do projeto colocá-lo-ia em rota de colisão com as pretensões de Portugal, que já está na corrida em conjunto com Espanha e Ucrânia.

“É provável que, se a Arábia Saudita lançar uma candidatura ao Mundial de 2030, vá querer que Cristiano desempenhe um papel fundamental nisso, obviamente”, diz Roberts. Em relação à possibilidade de ir contra o seu país, “acontece o mesmo com Messi, suspeito que fosse um momento estranho para ambos”.

Lionel Messi entra em campo porque também a Argentina está na corrida pelo Mundial de 2030, num projeto conjunto com Uruguai, Chile e Paraguai. O astro argentino é ainda embaixador da campanha Visit Saudi, do Turismo da Arábia Saudita. Se esta concorrer ao Mundial de 2030, é bem possível que Ronaldo e Messi passem, por fim, a fazer parte da mesma equipa… saudita.

(FOTO A 22 de fevereiro de 2023, Cristiano Ronaldo associou-se às comemorações do Dia da Fundação do reino TWITTER DO AL-NASSR)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de março de 2023, e na Tribuna Expresso, a 12 de março de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

No Líbano, o sectarismo político também entra nos campos de futebol

Num país pequeno e tão fragmentado em termos religiosos como é o Líbano, o futebol não escapa à rivalidade entre fações. Nos últimos anos, o clube dominante é apoiado pela comunidade xiita e pelo Hezbollah

Futebol de rua em Beirute por entre a destruição causada pelas explosões no porto, que devastaram parte da capital do Líbano, a 4 de agosto AFP / GETTY IMAGES

Num dos raros textos que dedicou ao desporto, George Orwell não foi brando nas palavras. “O desporto à séria não tem nada que ver com jogo limpo. Está ligado ao ódio, ao ciúme, à arrogância, ao desrespeito por todas as regras e ao prazer sádico de testemunhar a violência: por outras palavras, é a guerra sem o tiroteio”, escreveu o escritor inglês num artigo intitulado “O espírito desportivo”.

Publicado no semanário “Tribune” em dezembro de 1945, o texto foi escrito na sequência de uma digressão a Inglaterra da equipa de futebol do Dínamo de Moscovo. A Segunda Guerra Mundial terminara, havia feridas abertas e amizades por consolidar. Dentro das quatro linhas, o périplo saldou-se por ‘um passeio’ dos soviéticos, que saíram invictos da ‘pátria do futebol’. “Se uma visita como esta teve algum efeito nas relações anglo-soviéticas, só pode ter sido torná-las um pouco piores do que já eram”, concluiu Orwell.

Num artigo de 2011, Danyel Reiche, estudioso do desporto em contexto político, recuperou a tese de Orwell para descrever o panorama desportivo libanês. “Os clubes desportivos profissionais desempenham um papel único no sistema sectário libanês. Não há outro sector com tanta competição, não só dentro das fações, como acontece na política, mas também entre fações. Não há outro campo com tanto confronto direto entre os diferentes grupos sectários e políticos como o desporto. No Líbano, o desporto pode ser descrito usando uma citação de George Orwell: é ‘a guerra sem o tiroteio’.”

A tese central deste professor da Universidade Americana de Beirute é a de que no Líbano o desporto é usado para dividir (ainda mais) a sociedade. O Expresso perguntou-lhe se no atual contexto de crise generalizada, em que o sectarismo é apontado como estando na origem da fragilidade do país, o desporto — e o futebol em particular — pode contribuir para a unidade nacional.

“A situação no Líbano é dramática: a crise económica, a covid-19 e a recente explosão [no porto de Beirute, a 4 de agosto]. Acredito fortemente que o futebol (e também o basquetebol, que é muito popular no país) tem potencial para contribuir para a união. Se o Líbano se qualificar pela primeira vez para um Campeonato do Mundo, em 2022, isso pode dar alguma esperança às pessoas nestes tempos difíceis”, diz o coautor do livro “Sport, Politics, and Society in the Middle East”, de 2019.

Orgulho na seleção

“A seleção nacional é fonte de orgulho para os libaneses e até um sinal do potencial para uma comunidade libanesa unida”, acrescenta ao Expresso Yehuda Blanga, professor na Universidade Bar-Ilan (Israel).

Em novembro passado, em plena Revolução de Outubro, como os libaneses chamam aos grandes protestos antigovernamentais só interrompidos pela pandemia, a seleção libanesa recebeu a Coreia do Sul, de Paulo Bento (dia 14), e a Coreia do Norte (19) em jogos à porta fechada por receio de contágio dos protestos às bancadas do Estádio Camille Chamoun.

Ao estilo de uma trégua, a Praça dos Mártires, principal centro das manifestações, fez uma pausa nas reivindicações para assistir às partidas.

Expectativa e sofrimento na Praça dos Mártires, em Beirute, durante o jogo de futebol entre as seleções do Líbano e da Coreia do Norte, a 19 de novembro ANDRES MARTINEZ CASARES / REUTERS

Com 18 fações religiosas oficialmente reconhecidas, o Líbano é o protótipo de um Estado confessional, onde o poder político é distribuído de forma proporcional pelas várias comunidades consoante o seu peso demográfico. “A maioria dos clubes de futebol está associada a diferentes grupos sectários. Há clubes sunitas, xiitas, drusos e cristãos. Poucos são neutros, só encontrei dois”, diz Yehuda Blanga.

O principal campeonato é disputado por 12 equipas. Todas já sentiram o sabor de ser campeão mas, como em Portugal, há “três grandes” que se destacam. O Ansar, o mais vitorioso (13 campeonatos) e dominador entre o fim da guerra civil e o início do século XXI, é popular entre os sunitas.

O Nejmeh é o clube com mais adeptos, entre sunitas, xiitas, drusos e arménios. Fundado em 1945, foi o primeiro clube não-cristão. Em 2003, foi comprado pela família Hariri (muçulmana sunita) que nos últimos 20 anos já contribuiu com dois primeiros-ministros: Saad, que se demitiu em janeiro na sequência das manifestações, e o seu pai, Rafiq, assassinado em 2005, que dá nome ao estádio do Nejmeh.

Grande rival do Nejmeh, o Ahed é o campeão em título. Preferido dos xiitas, foi fundado pelo movimento islamita Hezbollah no início deste século. É o clube dominador da última década. Em 2019, tornou-se a primeira equipa libanesa a vencer uma competição internacional, a Taça da Confederação Asiática de Futebol.

A ascensão do Ahed tirou do pódio o Homenetmen, fundado por arménios, comunidade que dominou o futebol libanês nas décadas de 1940 a 1960.

Euforia entre jogadores e “staff” da equipa libanesa do Ahed, após a conquista da Taça da Confederação Asiática de Futebol, a 4 de novembro passado, em Kuala Lumpur. O amarelo e verde dos equipamentos é o mesmo da bandeira do Hezbollah MOHD RASFAN / AFP / GETTY IMAGES

Falta de profissionalismo

“O problema não é tanto uma subordinação sectária, como é política. A maioria das equipas está relacionada com partidos políticos por vários motivos”, explica ao Expresso o jornalista desportivo libanês Rawad Mezher. “Uma das razões mais importantes prende-se com a falta de profissionalismo ao nível da gestão desportiva, o que se traduz num problema para garantir orçamentos.”

Num país com sensivelmente o dobro do tamanho do Algarve e cerca de quatro milhões de habitantes (excetuando os refugiados), as receitas provenientes da bilheteira, merchandising, publicidade e direitos televisivos são insuficientes para assegurar o concurso de jogadores talentosos. A isto acresce a instabilidade que, de tempos a tempos, paralisa o país. Entre 2006 e 2010, a presença de adeptos nos estádios foi interdita após episódios de violência sectária entre apoiantes de vários clubes dentro e fora dos estádios.

Este panorama torna os clubes permeáveis a quem está disposto a injetar dinheiro em nome de interesses próprios e na expectativa de total lealdade. Não raras vezes, as cores do clube são as de partidos, nos estádios há grandes fotografias de políticos e os seus nomes são invocados nos cânticos das claques. Nos seus primeiros anos de vida, o patrocinador das camisolas do Ahed era a Al-Manar, televisão por satélite do Hezbollah.

A pandemia de covid-19 não para o futebol de rua, em Beirute, junto ao Estádio Camille Chamoun. E as máscaras não atrapalham GETTY IMAGES

Estas especificidades tornam o mercado libanês pouco atrativo para os investidores estrangeiros. Danyel Reiche recorda que, há uns anos, a Coca-Cola demonstrou interesse em financiar um clube libanês. Para evitar associações sectárias e ser acusada de favoritismo, acabou por patrocinar… três equipas: uma sunita, outra xiita e uma terceira cristã.

A 6 de abril de 1975, quando o Líbano estava prestes a implodir numa guerra civil que duraria 15 anos, a chegada a Beirute de Pelé parou o país e apartou as tensões. “Pelé veio jogar pelo Nejmeh um amigável com uma equipa de estrelas do campeonato libanês. O estádio encheu-se com 40 mil pessoas”, diz Yehuda Blanga.

“Os anos de 1974 e 1975 são considerados os mais importantes do futebol libanês, por dois acontecimentos importantes: a vitória do Nejmah sobre o campeão soviético, o Ararat Yerevan, e a visita da estrela brasileira.” Há mesmo quem defenda que a presença de Pelé no Líbano adiou o início da guerra civil, que começaria uma semana depois.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Competições milionárias para cadeiras vazias

Jogos à porta fechada, eventos cancelados ou deslocados. O coronavírus deu cabo do calendário desportivo

“The show must go on” — nem que seja à porta fechada e sem público a assistir. É o que vai acontecer este fim de semana em cinco jogos da Serie A, a primeira divisão do campeonato italiano de futebol. Nesse lote está um dos jogos do ano, o Juventus-Inter, entre equipas que têm ombrea­do na liderança, o que já levou a Sky, detentora dos direitos da prova, a admitir ceder a transmissão da partida em canal aberto.

A Itália é o país europeu mais afetado pelo Covid-19 — em número de infetados e de mortos — e, desde há uma semana, um decreto governamental proíbe aglomerações de pessoas, em especial no norte do país. Na quinta-feira, em Milão, o Inter-Ludogorets (da Bulgária) para a Liga Europa realizou-se sem espectadores no Giuseppe Meazza. Nesse mesmo dia, foi noticiado o primeiro teste positivo entre futebolistas do Calcio — um atleta do Pianese, da Serie C, que foi internado num hospital de Siena.

Dentro de três meses e meio, a 12 de junho, é precisamente em Itália, no Olímpico de Roma, que será dado o pontapé de saída do Campeonato da Europa. A UEFA quis celebrar em grande o 60º aniversário do torneio e distribuiu-o por 12 países, da Espanha (Bilbau) ao Azerbaijão (Baku). Na fase de grupos, a Seleção portuguesa andará entre a Hungria (Budapeste) e a Alemanha (Munique).

No atual contexto de propagação do novo coronavírus, este modelo inédito pode transformar-se numa dor de cabeça insuportável. Há duas semanas, num balanço à venda de bilhetes, a UEFA disse ter recebido 28,3 milhões de pedidos, o dobro da procura do Euro 2016. Só o Alemanha-França, do grupo de Portugal, motivou o interesse de 710 mil pessoas, quase dez vezes a capacidade da Allianz Arena de Munique, que o vai receber.

Megaeventos no horizonte

Este “interesse sem precedentes” à volta do Euro, como reconheceu a própria UEFA, dá uma ideia do vai e vem de gente que se projeta por toda a Europa. Esta semana, a organização abordou pela primeira vez a possibilidade de o evento ser adiado se o surto de Covid-19 não for controlado. “Estamos na fase da espera. Estamos a monitorizar país a país. O futebol deve seguir as ordens de cada país”, disse Michele Uva, membro do Comité Executivo da UEFA, em declarações à televisão italiana RAI. “A via desportiva só será fechada se a situação piorar.”

Com a final do Euro prevista para 12 de julho em Londres, os amantes dos grandes eventos desportivos terão apenas duas semanas de pausa até retomarem as emoções fortes. Para 24 de julho está prevista a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos no Japão, país que presentemente é o quarto com mais casos de Covid-19 confirmados, a seguir a China, Coreia do Sul e Itália. Da mesma forma que, há quatro anos, o vírus Zika ameaçou “adiar” ou “cancelar” os Jogos do Rio de Janeiro, este ano é um outro microrganismo a forçar a discussão.

Se, em 2016, o vírus Zika ameaçou adiar ou cancelar os jogos do Rio, agora há outro microrganismo a forçar a discussão

No início desta semana, um dirigente do Comité Olímpico Internacional (COI) pôs o dedo na ferida afirmando que existe uma janela de três meses, até ao fim de maio, finda a qual há que tomar uma decisão realista em relação ao evento. “Por essa altura, as pessoas vão ter de perguntar: ‘Estará controlado o suficiente para nos sentirmos confiantes e irmos até Tóquio, ou não?’”, disse Dick Pound, antigo campeão canadiano de natação, que não tem dúvidas na hora de optar entre cancelar ou adiar um evento que demorou anos a preparar. “Não se adia algo com o tamanho e a escala dos Jogos Olímpicos” — em Tóquio são esperados 11 mil atletas, de mais de 200 nações, e oito milhões de espectadores. “Há tanta coisa em causa, tantos países e diferentes calendários, competitivos, televisivos. Não se pode apenas dizer: ‘Adia-se para outubro’.”

Seria a segunda vez que o Japão veria os ‘seus’ Jogos cancelados, já que a edição de 1940, anulada por causa da II Guerra Mundial, também lhe estava atribuída. Mas no país ninguém quer pensar nessa possibilidade. Em causa está um evento avaliado em 25 mil milhões de dólares (€23 mil milhões) com tabelas para os principais patrocinadores na ordem dos 100 milhões de dólares (€91 milhões).

Quem quer receber os Jogos?

Quinta-feira, quando ainda ecoavam as palavras do seu colega no COI, o presidente da organização, Thomas Bach, procurou afastar fantasmas num encontro com jornalistas japoneses. Afirmou que o COI está “totalmente comprometido com o sucesso dos Jogos que irão começar a 24 de julho” e, questionado sobre alternativas, foi seco: “Não vou deitar combustível às chamas da especulação.”

Cancelar os Jogos pode ter, a prazo, um efeito dramático. “Anteriormente, várias cidades retiraram as suas candidaturas perante receios em relação aos custos com a realização de megaeventos, por exemplo com a segurança”, comenta ao Expresso Alan Bairner, professor na Universidade de Loughborough (Reino Unido). “Com o Covid-19 em mente, é possível que algumas cidades e países fiquem mais relutantes em apresentar candidatura. Mas há uma visão alternativa que diz que uma crise deste tipo nunca afetou os Jogos no passado, por isso porquê pensar que pode tornar-se uma ocorrência regular?”

MODALIDADES AFETADAS

FUTEBOL — Campeonatos parados na China, Japão e Coreia do Sul. Jogos à porta fechada no Irão

ATLETISMO — Previsto para março, em Nanjing (China), o Campeonato do Mundo em Pista Coberta foi adiado para 2021

CICLISMO — Com meta final este domingo, o Tour dos Emirados Árabes Unidos acabou mais cedo após dois casos suspeitos no hotel das equipas

FÓRMULA 1 — O Grande Prémio de Xangai, marcado para 19 de abril, foi adiado

RÂGUEBI — Algumas partidas do Torneio das Seis Nações, nomeadamente as que opõem Itália e Irlanda, previstas para 6 e 8 de março, foram adiadas

TÉNIS DE MESA — Na Coreia do Sul, o Campeonato do Mundo por equipas, agendado para março, foi adiado três meses

BOXE — O torneio de qualificação para os Jogos referente à Ásia e à Oceânia foi transferido para Amã (Jordânia). Estava previsto para Wuhan (China), onde primeiro surgiu o Covid-19

Texto escrito com Rossend Domènech, correspondente em Roma.

(FOTO Estádio de Wembley, em Londres NICHOLAS GEMINI / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 28 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui e aqui

Como no Brexit, no desporto o Reino Unido é um país desunido, que pode desdobrar-se em cinco (e mais uma invulgar derivação)

No Reino Unido, o desporto ignora fronteiras. Fora de portas, o país ora compete com uma equipa única ora permite que ingleses, escoceses, galeses e norte-irlandeses vão a jogo com seleções próprias. E casos há em que as duas Irlandas se “reunificam” para defrontar os outros britânicos

O processo de saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit) pôs às claras sensibilidades várias que, do lado de lá do Canal da Mancha, expõem… um Reino desunido. Se ingleses e galeses votaram “sim” no referendo que legitimou o “adeus” à Europa, já escoceses e norte-irlandeses querem continuar a pertencer ao bloco europeu.

Estas divergências não terão impacto no desfecho do Brexit, que se aplicará ao “Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte”, como o país é oficialmente designado, ainda que muitas vezes responda por “Inglaterra”, “Grã-Bretanha”, “Reino Unido” ou até “Ilhas Britânicas” (ver glossário no fim).

O desporto é porventura das áreas onde os britânicos mais fórmulas usam para se apresentarem em público. Nos Jogos Olímpicos, por exemplo, os atletas representam o Reino Unido mas participam sob a chancela “Team GB” (Equipa Grã-Bretanha).

“Team GB” de regresso a casa, no Aeroporto de Heathrow, após os Jogos Olímpicos de 2016 FOTO STUART C. WILSON / GETTY IMAGES

Esta marca existe desde 1999 e foi desenvolvida pela Associação Olímpica Britânica (BOA) visando “unificar a equipa como um todo, independentemente da modalidade específica de cada atleta”. O curioso é que sendo a Grã-Bretanha composta por Inglaterra, Escócia e País de Gales, a “Team GB” pode também levar aos Jogos desportistas… da Irlanda do Norte.

“Os termos Grã-Bretanha e Reino Unido são invariavelmente misturados, o que não ajuda. Embora a filiação no Comité Olímpico Internacional (COI) seja concedida ao Reino Unido, que inclui a Irlanda do Norte, há atletas desta última que representam a República da Irlanda nos Jogos Olímpicos”, explica ao Expresso o escocês Alan Bairner, professor de Teoria Social e do Desporto, na Universidade de Loughborough, Inglaterra.

Os norte-irlandeses podem escolher entre competir pela equipa britânica ou pela irlandesa. Em 2016, dos 29 norte-irlandeses que fizeram os mínimos para os Jogos do Rio, apenas oito optaram pela “Team GB”. Entre os 21 que integraram a equipa da Irlanda esteve o pugilista Patrick Barnes, nascido em Belfast, que foi o porta-bandeira na cerimónia de inauguração.

A Irlanda já conquistou 31 medalhas nos Jogos Olímpicos. A Grã-Bretanha, que participou em todas as edições, é um colosso, com 883 FOTO KAI PFAFFENBACH /REUTERS

Quando falta menos de um ano para os Jogos de Tóquio, que começam a 24 de julho, os atletas norte-irlandeses já começaram a tomar posição sobre o assunto. Recentemente, o golfista norte-irlandês Rory Mcilroy, nº 1 do ranking mundial em 2012 e 2014 (em 2013 perdeu para Tiger Woods), anunciou que vai alinhar pela Irlanda.

O Partido Unionista Democrático (DUP), da Irlanda do Norte, tem o assunto na agenda e tem pressionado para ver a designação alterada. A resistência começa no seio da própria Associação Olímpica Britânica — que funciona com fundos privados —, para a qual “Team GB” é a marca comercialmente mais eficaz.

Dada a margem para a controvérsia, impõe-se uma questão: se “Team GB” realça a Grã-Bretanha (da qual não faz parte a Irlanda do Norte), por que não optar pela designação “Team UK” (“Equipa Reino Unido”)?

Dois pugilistas britânicos, durante um treino nos Jogos do Rio de Janeiro FOTO PETER CZIBORRA / REUTERS

“A Associação Olímpica Britânica é o Comité Olímpico Nacional da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, da Ilha de Man, das Ilhas do Canal e dos Territórios Ultramarinos do Reino Unido (incluindo as Malvinas e Gibraltar)”, esclareceu a Associação. Todos estes territórios têm por isso porta aberta da “Team GB”. No caso de uma “Team UK”, campeões como Mark Cavendish, que já averbou 30 vitórias em etapas do Tour de França, ficariam em casa. O ciclista é natural da Ilha de Man, uma dependência da Coroa Britânica que formalmente não faz parte do Reino Unido, apesar da sua Defesa e Relações Externas serem da responsabilidade… do Reino Unido.

“Nem ‘UK’ nem ‘GB’ descreve com precisão as competências da Associação, nem seriam representativas de todos os territórios que se enquadram na sua jurisdição”, concluiu a Associação Olímpica Britânica.

Parada do Liverpool, após vencer a Liga dos Campeões 2018/2019. Nas provas da UEFA, há clubes ingleses, galeses, escoceses e norte-irlandeses FOTO PHIL NOBLE / REUTERS

Se nos Jogos Olímpicos, o Reino Unido participa com uma seleção única, nos torneios de futebol — por seleções ou clubes —, os países participam individualmente. “Isto acontece porque a Irlanda do Norte (inicialmente Irlanda), a Escócia, o País de Gales e a Inglaterra (que foram as primeiras equipas de futebol a nível internacional) aderiram à UEFA e à FIFA como nações separadas”, explica Alan Bairner.

A história explica também por que razão nos campeonatos do mundo de râguebi e de críquete, as duas Irlandas competem unidas numa equipa única. “A Associação Irlandesa de Futebol foi estabelecida como um órgão para toda a Irlanda, em Belfast, em território que se tornaria Irlanda do Norte, enquanto a União Irlandesa de Críquete e a União Irlandesa de Râguebi foram estabelecidas em Dublin antes da cidade se tornar a capital do Estado Livre Irlandês (posteriormente República da Irlanda)”, explica Alan Bairner. “Com a Irlanda dividida, emergiram duas associações de futebol, mas o râguebi e o críquete continuaram a ter os órgãos administrativos de toda a Irlanda com sede em Dublin.”

No râguebi, a equipa irlandesa (de verde) é composta por jogadores das duas Irlandas. A foto refere-se a um Irlanda-País de Gales, a 7 de setembro passado FOTO PHIL NOBLE / REUTERS

Com tantas combinações possíveis, o Reino Unido mais parece um país de ficção. Mas os britânicos convivem bem com isso. No medalheiro olímpico, só norte-americanos, russos e alemães têm mais títulos.

GLOSSÁRIO

Ilhas Britânicas
É o conjunto de duas grandes ilhas (a Grã-Bretanha e a Irlanda) e de milhares de pequenas ilhas, a esmagadora maioria desabitadas.

Grã-Bretanha
É a maior das Ilhas Britânicas. Está dividida em três países não-soberanos: Inglaterra, Escócia e País de Gales.

Irlanda
Está dividida entre a Irlanda do Norte (que pertence ao Reino Unido) e a República da Irlanda, que é um país independente.

Reino Unido
É o Estado soberano, composto pela Grã-Bretanha e pela Irlanda do Norte.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 17 de dezembro de 2019. Pode ser consultado aqui

Indianos e paquistaneses juntos? É possível graças ao críquete. As melhores imagens de uma festa improvável

Índia e Paquistão protagonizam das rivalidades políticas mais ameaçadoras à face da Terra. Mas este domingo, em Manchester, apenas a chuva estragou a festa proporcionada por nacionais dos dois países à volta de uma partida de críquete, durante o Mundial da modalidade

Índia e Paquistão são países vizinhos que, de tempos a tempos, parecem estar à beira da guerra. Sempre que isso acontece, é todo o mundo que fica nervoso, já que os dois Estados possuem armas nucleares.

Este ano, os alarmes já soaram por uma vez mais seriamente. Em fevereiro, um ataque suicida na parte indiana do território disputado da Caxemira provocou 42 mortos entre as tropas indianas ali destacadas. O atentado foi reivindicado por um grupo paquistanês e a retaliação não tardou, com a Índia a lançar ataques aéreos sobre a área paquistanesa de Caxemira.

Nessa altura, a partida de críquete entre as seleções dos dois países prevista para a fase de grupos do Mundial da modalidade — a decorrer no Reino Unido desde 30 de maio — ficou em risco. As tréguas voltariam a imperar na região e, este domingo, em Manchester, Índia e Paquistão — 1º e 7º respetivamente no ranking internacional — apresentaram-se no Estádio de Críquete de Old Trafford, indiferentes às desavenças políticas.

Segundo o jornal britânico “The Guardian”, 800 mil pessoas tentaram obter bilhete para assistir ao jogo — o recinto tem capacidade para… 26 mil espectadores. Quanto à audiência televisiva foi calculada em 1000 milhões de telespectadores em todo o mundo.

O jogo chegou a ser interrompido por causa da chuva. Talvez para muitos indianos e paquistaneses perder este jogo seja muito pior do que perder a final do torneio — agendada para 14 de julho. Mas nas bancadas de Old Trafford, isso não foi percetível: a festa fez-se apenas pelo prazer do desporto. E, no fim, a Índia ganhou.

Mistura de verde paquistanês e laranja indiano, nas bancadas de Old Trafford, Manchester OLI SCARFF / AFP / GETTY IMAGES
Bandeiras dos dois países, lado a lado OLI SCARFF / AFP / GETTY IMAGES
Apoiante da seleção indiana VISIONHAUS / GETTY IMAGES
Adepta da equipa paquistanesa STU FORSTER / GETTY IMAGES
Público das duas seleções, nas varandas de Old Trafford DIBYANGSHU SARKAR / AFP / GETTY IMAGES
Convivência entre nacionais dos dois países STU FORSTER / GETTY IMAGES
Bandeira da República da Índia OLI SCARFF / AFP / GETTY IMAGES
Bandeira da República Islâmica do Paquistão OLI SCARFF / AFP / GETTY IMAGES
Cumprimento entre os dois capitães, o indiano Virat Kohli (de azul) e o paquistanês Sarfaraz Ahmed (de verde) GARETH COPLEY / GETTY IMAGES
O Paquistão foi campeão mundial apenas uma vez, em 1992. O capitão da equipa foi Imran Khan, o atual primeiro-ministro do país GARETH COPLEY / GETTY IMAGES
A Índia já celebrou o título mundial por duas vezes, em 1983 e 2011 VISIONHAUS / GETTY IMAGES
A política ficou fora do estádio ANDREW BOYERS / REUTERS
“O críquete cria união”, é a mensagem deste cartaz ilustrado com as bandeiras dos dois países GARETH COPLEY / GETTY IMAGES
ANDREW BOYERS / REUTERS
ANDREW BOYERS / REUTERS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui