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Nicarágua libertou 222 presos políticos. Para o regime do casal Ortega, foram “deportados traidores”

Um grupo de 222 políticos, jornalistas, religiosos e personalidades da sociedade civil da Nicarágua, críticos do regime liderado pelo ex-guerrilheiro sandinista Daniel Ortega, foi libertado de forma inesperada. Abertas as portas da prisão, entraram num avião e seguiram para os Estados Unidos. São “traidores à pátria”, defendem os apoiantes do Presidente. “Vão para o exílio, mas vão para a liberdade”, regozijou-se um escritor nicaraguense, também ele crítico do regime

O governo ditatorial da Nicarágua, liderado pelo casal Ortega, abriu as portas da cadeia, esta quinta-feira, a 222 presos políticos. Ainda de mandrugada, estes partiram de Manágua, num voo charter organizado pelo governo dos Estados Unidos, e foram transportados para o Aeroporto Internacional de Dulles, nas imediações de Washington DC.

A decisão afetou antigos candidatos presidenciais e governantes, como o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros Francisco Aguirre-Sacasa, personalidades da sociedade civil, jornalistas e membros da Igreja Católica, todos eles críticos do regime liderado, desde 2007, pelo ex-guerrilheiro Daniel Ortega que tem como vice-presidente, desde 2017, a sua mulher, Rosario Murillo.

Alguns dos presos políticos estavam dispersos por vários estabelecimentos prisionais do país, outros viviam em regime de prisão domiciliária. Foram detidos na sequência dos violentos protestos antigovernamentais de 2018.

“Um grande dia para a luta pela liberdade”

Para além de assistência médica e legal, escreve a agência Reuters que terão ajuda do Departamento de Estado norte-americano para se reunirem com familiares que já vivem em solo americano, muitos deles fugidos a vagas repressivas anteriores.

“Hoje é um grande dia para a luta pela liberdade na Nicarágua, ao saírem das prisões tantos prisioneiros condenados ou processados injustamente, prisões onde nunca deveriam ter estado. Vão para o exílio, mas vão para a liberdade”, regozijou-se, no Twitter, o escritor nicaraguense Sérgio Ramirez, Prémio Cervantes 2017 e, ele próprio, um crítico do regime.

A publicação “El 19 Digital”, afeta ao movimento sandinista, de que emana o partido do Presidente Ortega, escreve que as pessoas que saíram em liberdade são “traidores à pátria”, que foram condenadas “pela prática de atos atentatórios à independência, soberania e autodeterminação do povo, por incitação à violência, ao terrorismo e à desestabilização económica”.

Alvo ao ouro

O diário britânico “The Guardian” escreve que esta libertação massiva é “uma forma de sinalizar o desejo de relançar relações com os Estados Unidos”.

Na sequência da demonstração de nepotismo do regime Ortega-Murillo e da repressão à dissidência, a Administração Biden impôs sanções económicas que visaram diretamente o sector do ouro — o principal produto de exportação da Nicarágua. Estatísticas do Banco Central do país revelam que, em 2021, 79% das vendas de ouro tiveram como destino os Estados Unidos.

Para além da governação autocrática, nos últimos anos a Nicarágua tem sido notícia por ser um dos países de origem das caravanas de migrantes que partem a pé rumo ao “el dorado” norte-americano. E, no contexto da invasão russa da Ucrânia, Daniel Ortega foi dos primeiros países a sair em defesa de Vladimir Putin.

(IMAGEM WIKIPEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de fevereiro de 2023. Pode ser consultado aqui

No Irão há estrangeiros presos para serem usados como moeda de troca

Há cidadãos estrangeiros ou com dupla nacionalidade, alguns deles académicos, detidos arbitrariamente no Irão em nome de interesses superiores da República Islâmica. Roland Marchal, um sociólogo francês libertado há três meses, partilha a sua experiência com o Expresso

Roland Marchal está em liberdade há 87 dias. E ainda que, por estes dias, a pandemia de covid-19 limite os movimentos daquele que é um dos maiores especialistas franceses na área dos conflitos em África, nada é comparável aos quase dez meses que passou na sinistra prisão iraniana de Evin, nos arredores de Teerão.

“Nunca fui espancado ou torturado”, diz ao Expresso. Mas “o isolamento absoluto era aterrorizante, especialmente no início quando eu não compreendia porque estava detido. Eu preciso da luz do dia, de livros, de saber como estão os meus familiares, adoro o meu trabalho. Tudo isso desapareceu no momento da minha prisão”.

O francês esteve encarcerado entre 5 de junho de 2019 e 20 de março passado, numa ala de alta-segurança controlada pelos Guardas da Revolução.

“Para ser rigoroso, não tenho uma explicação para a minha detenção. O que sei é que depois de ser libertado e deixar o Irão houve uma troca, envolvendo um engenheiro iraniano [Jalal Rohollahnejad] descrito pela imprensa como próximo dos Guardas da Revolução e que tinha sido preso em França em fevereiro de 2019. Dias antes da minha prisão [no aeroporto de Teerão], a perspetiva desse iraniano ser extraditado para os Estados Unidos tinha-se tornado possível”. A detenção de Roland parou o processo.

O francês deslocara-se ao Irão para visitar a namorada, a antropóloga Fariba Adelkhah, cidadã franco-iraniana que, como Roland, é investigadora no prestigiado Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po). Ambos planeavam passear pelo país — “ainda estávamos a discutir se iríamos visitar Tabriz ou Mahalat”, diz Roland —, mas ele não passou das formalidades no aeroporto.

Semanas depois de estar preso, viria a descobrir que Fariba também estava detida no mesmo local — ambos acusados de “conluio para ameaçar a segurança interna no Irão” e ela também de “propaganda”.

Mas os processos de ambos tiveram desfechos opostos: enquanto Roland foi libertado em março passado, Fariba foi condenada em maio a seis anos de prisão — a sua dupla nacionalidade de pouco lhe vale, já que a República Islâmica não reconhece esse estatuto.

Na prisão, o francês teve a certeza que os motivos que levaram à sua detenção em nada se deviam à sua conduta. “Durante os interrogatórios, tive a impressão que o objetivo das acusações fantasiosas formuladas contra mim visava, acima de tudo, dificultar as boas relações entre a França de Emmanuel Macron e o Irão de Hassan Rouhani”, recorda.

“Falaram-me a primeira vez do caso do engenheiro iraniano detido em França em meados de janeiro quando eu fiz greve de fome por não me deixarem falar com a minha família, ver o meu advogado e receber novos livros. Explicaram-me que as minhas condições de detenção eram ditadas pelas condições do engenheiro iraniano. Depois confirmaram mais em detalhe durante um interrogatório.”

Pena pesada por contactar com o inimigo

Nos calabouços iranianos há vários académicos estrangeiros ou com dupla nacionalidade que — suspeita-se — estão destinados a funcionar como moeda de troca. Um deles poderá ser o conservacionista iraniano-americano Morad Tahbaz, co-fundador da Persian Wildlife Heritage Foundation, detido em janeiro de 2018 juntamente com mais oito membros da sua organização.

Em novembro passado, a justiça iraniana não foi branda e condenou-o a dez anos de prisão por “contactos com o Governo inimigo dos Estados Unidos”. A 5 de junho, quando se assinalou o Dia Mundial do Ambiente, o Departamento de Estado dos Estados Unidos divulgou um vídeo apelando à libertação de Morad Tahbazen.

Roland Marchal acredita que a detenção de alguns académicos é “uma resposta a prisões que se multiplicaram especialmente nos Estados Unidos desde que Donald Trump chegou ao poder e, acima de tudo, desde o fim da sua participação no acordo sobre o nuclear”.

Um caso recente envolve Sirous Asgari, de 59 anos, um cientista iraniano da área das baterias de iões de lítio, doutorado numa universidade da Pensilvânia. Detido nos Estados Unidos em 2016, acusado de tentativa de roubo de segredos relativos a um projeto de investigação, foi ilibado em finais de 2019, mas continuou preso indefinidamente num centro de detenção para imigrantes na Louisiana.

Só em maio passado, após dizer ao jornal britânico “The Guardian” que temia não sobreviver à covid-19 dado o tratamento “desumano” de que era alvo, foi autorizado a regressar a casa. A sua libertação produziu resultados e a 4 de junho, Teerão abriu as portas da cadeia a Michael White, de 48 anos, um veterano da Marinha dos EUA detido no Irão durante 683 dias. No mesmo dia, no Twitter, o Presidente Donald Trump anunciava a libertação.

Esta estratégia poderá, porém, não ser consensual entre as autoridades iranianas. “Desde 1979 que não é óbvio quem são ‘as autoridades iranianas’”, comenta o francês. “O Presidente Hassan Rouhani [moderado] e seu Governo estão cientes de que estas prisões reduzem a sua capacidade negocial”, no seu caso pessoal com a França e, até certo ponto, com os europeus.

“Talvez seja isso que os Guardas da Revolução que nos prenderam [e que pertencem à ala dura do regime] quiseram em primeiro lugar.” Dificultar o diálogo com o estrangeiro para cerrar fileiras em torno de um poder cada vez mais conservador.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de junho de 2020. Pode ser consultado aqui

Hakeem foi libertado: “Lutámos por uma alma que representava a luta contra a tirania”

Detido na Tailândia durante a lua de mel, um atleta do Bahrain exilado na Austrália temia ser extraditado para o seu país, que acusa de perseguição. Foi libertado esta terça-feira, após uma campanha internacional que uniu governos, organizações de direitos humanos e o mundo do futebol

“You’ll Never Walk Alone.” “Nunca andarás sozinho”, cantaram, esta terça-feira, amigos, conterrâneos, ativistas e colegas de equipa do futebolista Hakeem al-Araibi à sua chegada ao Aeroporto Internacional de Melbourne, na Austrália. Com este famoso tema — nascido nos palcos dos musicais e imortalizado, em especial, pelos adeptos do Liverpoll —, pretenderam celebrar a superação de um momento dramático na vida deste atleta de 25 anos, natural do Bahrain e refugiado na Austrália, vivido ironicamente num período feliz da sua vida.

A 27 de novembro passado — acabado de chegar à Tailândia com a mulher para gozarem a lua de mel —, Hakeem foi detido no aeroporto de Banguecoque, ao abrigo de um mandado de captura internacional emitido pelo Bahrain.

Hakeem é “persona non grata” no seu país, de onde fugiu em 2014 para a Austrália. Outrora jogador da seleção nacional, tinha sido acusado de vandalismo numa estação de polícia. Julgado “in absentia”, foi condenado a 10 anos de prisão. Hakeem, por seu lado, acusa as autoridades do seu país de repressão motivada pela sua crença religiosa (é muçulmano xiita) e também pelo ativismo político do irmão — que está preso.

Detido na Tailândia, a perspetiva de ser extraditado para o Bahrain — e o receio de ser torturado — originou a campanha #SaveHakeem que envolveu o Governo australiano, organizações de direitos humanos e, em especial, Craig Foster, um antigo futebolista australiano que chegou a jogar na Premier League (Portsmouth e Crystal Palace). “Lutámos por uma alma porque Hakeem representava todos aqueles que sofrem às mãos da tirania e, através dele, esperamos construir um mundo melhor”, afirmou Foster, num comunicado, quando foi conhecida a libertação do atleta.

“Este é o resultado para o qual trabalhamos em conjunto com uma vasta coligação de organizações dos direitos humanos, governos e toda a comunidade do futebol nos últimos dois meses”, regozijou-se a FIFA, em comunicado.

Na região do Golfo, as autoridades do Bahrain não se dão por derrotadas. “O veredito de culpado contra o Sr. Al-Araibi mantém-se”, reagiu o Ministério dos Negócios Estrangeiros. “O Reino do Bahrain reafirma o seu direito de prosseguir com todas as ações legais necessárias.”

“Crowdfunding” aberto, para a lua de mel

Em meados de janeiro, o caso de Hakeem cruzou-se com o da jovem saudita Rahaf Mohammed que, em fuga à família a caminho da Austrália (onde pretendia solicitar asilo), foi intercetada igualmente em Banguecoque, resistindo à extradição fechando-se dentro de um quarto de hotel no aeroporto. Após uma campanha de pressão desenvolvida sobretudo nas redes sociais, Rahaf haveria de conseguir asilo no Canadá.

À época, o diário britânico “The Guardian” questionava o porquê de o caso de Rahaf captar as atenções do mundo, enquanto Hakeem “era deixado na prisão”.

Dois meses e meio depois, o pesadelo de Hakeem terminou. Em breve, poderá retomar os treinos no Pascoe Vale Football Club, o clube semiprofissional de Melbourne onde joga. “A justiça prevaleu”, twitou o clube. “O nosso nº 5 Hakeem Al-Araibi está de volta a casa.”

Esta terça-feira, a Associação de Clubes de Futebol Australianos iniciou uma campanha de “crowdfunding” para “a lua de mel que Hakeem e a sua mulher não tiveram”.

Artigo publicado na “Tribuna Expresso, a 12 de fevereiro de 2019. Pode ser consultado aqui

A odisseia de uma jovem saudita, contra a família e contra o país

Determinada em libertar-se das amarras sociais que a condenavam a uma vida submissa, uma jovem saudita meteu-se num avião a caminho da Austrália em busca de asilo. Intercetada na Tailândia, temeu pela vida. Sem sair do aeroporto, barricou-se num quarto de hotel, abriu conta no Twitter e gritou por ajuda — 48 horas depois saía em liberdade

“A minha conta oficial será entregue aos meus amigos mais próximos caso eu desapareça, para que as informações reais sobre o meu caso sejam atualizadas e documentadas, para que as restantes provas sejam publicadas e para que a voz das raparigas como eu nunca seja abafada.”

O tom desta mensagem publicada no domingo no Twitter por uma saudita de 18 anos não podia ser mais inquietante. Mais ainda quando, ao percorrer as suas mensagens, se percebia que aquela conta tinha sido criada apenas no dia anterior com o objetivo indisfarçável de pedir ajuda. A utilizadora era Rahaf Mohammed al-Qunun, uma estudante na Universidade Ha’il (nordeste da Arábia Saudita), em fuga a um futuro que lhe haviam traçado.

Aproveitando umas férias com a família no Kuwait, Rahaf ganhou coragem e, no sábado, apanhou um voo para Banguecoque, a capital da Tailândia. Ao contrário do que é possível no seu país natal, não necessitou de autorização de um homem da família para comprar bilhete e subir a bordo.

Rahaf tencionava chegar à Austrália, mas a escala tailandesa não foi pacífica. Chegada ao Aeroporto Suvarnabhumi, viu ser-lhe apreendido o passaporte — aparentemente porque não tinha bilhete de regresso, reserva de hotel ou qualquer programa turístico —, o que a impediu de seguir viagem para a Austrália, onde tencionava pedir asilo. Temendo ser deportada para junto da família, barricou-se num quarto de hotel no aeroporto e abriu conta no Twitter. A sua história começou então a circular a reboque da “hashtag” #SaveRahaf.

A jovem acusa a família de abusos, “incluindo espancamentos e ameaças de morte por parte de homens da família, que também a forçaram a ficar no seu quarto durante seis meses por ter cortado o cabelo”, informa a Human Rights Watch. “É evidente que ela procura proteção internacional”, acrescenta a organização humanitária. “Al-Qunun pode estar em sérios riscos se regressar para junto da família. Na Arábia Saudita, ela também enfrenta possíveis acusações criminais, numa violação aos seus direitos básicos, por ‘desobediência parental’, que podem originar castigos desde regressar a casa do seu guardião até à prisão, e por ‘prejudicar a reputação do reino’ nos seus pedidos de ajuda públicos.”

No Twitter, Rahaf foi divulgando provas da sua identidade, desmentindo notícias que iam saindo sobre si na imprensa saudita e publicando imagens do pequeno quarto onde resistia e onde o colchão, uma mesa e uma cadeira bloqueavam a abertura da porta, em caso de invasão forçada. E foi fazendo apelos ao mundo: “Quero a ONU! Quero a ONU! Quero a ONU!”.

Em meia dúzia de horas tinha os principais órgãos de informação internacionais de olhos postos na sua história — a videojornalista australiana Sophie McNeill, que trabalha para a australiana ABC, conseguiu entrar para dentro do quarto — e uma senadora australiana a trabalhar no seu caso: “A Austrália tem de ajudar esta jovem urgentemente! A sua vida está em perigo após ela renunciar ao Islão e fugir a um casamento forçado. Nós podemos emitir documentos de viagem de urgência para que ela apanhe um voo para a Austrália e procure segurança. Já apelei ao Governo para que haja rapidamente!”, escreveu no Twitter a senadora Sarah Hanson-Young.

A partir do seu quarto, Rahaf confirmou que procura “proteção” de um país terceiro, especialmente “Canadá, Estados Unidos, Austrália e Reino Unido”. O impacto mediático do caso, que transbordou as redes sociais, levou a um decisão rápida por parte das autoridades tailandesas: “Se a jovem não quiser partir, ela não será enviada contra a sua vontade” para a Arábia Saudita, esclareceu o major general Surachate Hakparn esta segunda-feira.

A aparente facilidade com que o caso parecia resolver-se levantou dúvidas em relação à sinceridade das palavras do general. A confiança aumentou quando foi dada “luz verde” a uma delegação do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados para visitar Rahaf no quarto. Pouco depois surgia a notícia de que a jovem poderia sair — ficaria à guarda das Nações Unidas. “Ela já saiu do aeroporto com a ONU”, informou o general. “Ela não está mais detida pelos serviços de imigração.”

Até sair da Tailândia, Rahaf não pode respirar de alívio, apesar do rápido e positivo desfecho de um caso que tinha tudo para correr mal. Em abril de 2017, numa situação muito semelhante, a saudita Dina Ali Lasloom foi forçada a regressar a casa durante uma escala nas Filipinas, igualmente a caminho da Austrália.

A odisseia de Rahaf ganhou uma dimensão acrescida dado estar ainda recente na memória o brutal assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi, um crítico do regime de Riade, que colocou o reino saudita no radar do (in)cumprimento dos direitos humanos.

Após ser nomeado príncipe herdeiro da coroa saudita, em junho de 2017, Mohammed bin Salman (MbS), hoje com 33 anos, “libertou” as sauditas de algumas amarras para anunciar ao mundo o início de uma nova era social no reino, designadamente permitindo que passassem a conduzir automóveis.

A fuga de Rahaf revela que o principal problema subsiste: o sistema de tutela familiar que subordina as mulheres à vontade de um homem — seja pai, marido, irmão ou mesmo filho — para decisões como estudar ou viajar para o estrangeiro. Estas obrigações duram a vida inteira. Para o Estado, as mulheres são permanentemente menores — até jovens destemidas como Rahaf Mohammed al-Qunun o provarem que não.

(IMAGENS Rahaf Mohammed al-Qunun, no interior de um quarto de hotel, no aeroporto de Banguecoque, na Tailândia TWITTER)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de janeiro de 2019. Pode ser consultado aqui

Uma criança morre a cada 10 minutos no Iémen

É o país mais pobre do Médio Oriente, assolado por um conflito que vai caindo no esquecimento e coloca as crianças, cada vez mais, na linha da frente da mortalidade. No Iémen, perto de meio milhão de crianças está em perigo de morrer à fome

A cada hora que passa, morrem seis crianças no Iémen de doenças já erradicadas noutras zonas do planeta, infeções respiratórias e subnutrição. “A violência e o conflito fizeram reverter ganhos significativos na última década ao nível da saúde e nutrição das crianças iemenitas”, alertou Meritxell Relaño, representante interina da UNICEF no Iémen. “Doenças como a cólera e o sarampo aumentaram e, com poucas infraestruturas de saúde funcionais, esses surtos estão a penalizar muito as crianças.”

Segundo aquela agência especializada das Nações Unidas, 2,2 milhões de crianças sofrem de subnutrição — na província de Sa’ada (norte), junto à fronteira com a Arábia Saudita, oito em 10 crianças sofrem de subnutrição crónica. Cerca de 462 mil correm mesmo o risco de morrer à fome — um aumento de 200% desde 2014.

“A subnutrição no Iémen está em alta e a aumentar”, acrescentou a espanhola Meritxell Relaño. “O estado de saúde das crianças no país mais pobre do Médio Oriente nunca foi tão catastrófico como hoje.”

Unificado desde 1990, o Iémen tem enfrentado anos de pobreza generalizada, escassez alimentar e um sistema de saúde deficiente. O Relatório de Desenvolvimento Humano Árabe de 2016, divulgado a 29 de novembro passado, descreve “uma das piores crises humanitárias” em todo o mundo. “Em dezembro de 2015, estimava-se que 21,2 milhões de pessoas — o que corresponde a 82% da população iemenita — necessitava de ajuda humanitária”, lê-se na página 129 do documento.

“Menos de um terço da população do país tem acesso a tratamentos médicos”, complementa a UNICEF. “Menos de metade das infraestruturas de saúde estão operacionais. Profissionais de saúde não recebem salário há meses e agências de ajuda humanitária lutam para trazer suprimentos para salvar vidas em virtude do impasse político entre as partes em conflito.”

A situação no Iémen degradou-se acentuadamente a partir de março de 2015, quando o país começou a ser alvo de bombardeamentos por parte de uma coligação de países da região. Oficialmente, a ofensiva liderada pela Arábia Saudita (país árabe), o gigante sunita do Médio Oriente, visa devolver o poder ao Presidente Abd Rabbuh Mansur Hadi, deposto em setembro de 2014 pelos rebeldes huthis — xiitas e próximos do Irão (país persa), o grande rival dos sauditas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de dezembro de 2016. Pode ser consultado aqui