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Cenas de ficção no lugar mais tenso do mundo

Na última fronteira da Guerra Fria, soldados norte e sul-coreanos ficam frente a frente num único local: a Área de Segurança Conjunta, na aldeia de Panmunjom, que esta sexta-feira acolhe uma histórica cimeira entre as duas Coreias. Ora preparados para uma guerra que parece iminente, ora fotografados por turistas em busca de emoções fortes no “lugar mais tenso do mundo”, mais parecem atores num parque temático

Três soldados sul-coreanos vigiam a fronteira com a Coreia do Norte, na Área de Segurança Conjunta, em Panmunjom HENRIK ISHIHARA GLOBALJUGGLER / WIKIMEDIA COMMONS

A fronteira mais fortificada do mundo — junto à qual, esta sexta-feira, terá lugar uma cimeira histórica entre as duas Coreias — é cenário digno de um filme de Hollywood. A cerca de 50 quilómetros para norte de Seul, na Área de Segurança Conjunta, militares norte e sul-coreanos ficam cara a cara em encontros de rotina e vigiam-se de forma quase teatral, trocando olhares ferozes, seguindo movimentos com binóculos e registando a atividade inimiga com máquinas fotográficas.

“Muitas vezes, os soldados sul-coreanos fazem movimentos de Taekwondo, a arte marcial coreana”, explica ao Expresso Kim Seong-Kon, professor visitante da Universidade George Washington (EUA). “Esses gestos permitem-lhes melhores posições para desembainhar a arma mais rapidamente” e reagir com eficácia a tudo o que aconteça.

Entre as “armas psicológicas” a que os sul-coreanos recorrem para tentar fragilizar os do Norte constam também… óculos de sol. Há quem diga que os sul-coreanos usam-nos para esconder as emoções e evitar contacto visual com o inimigo. “Talvez haja outras razões”, diz o professor Kim. “Pode intimidar-se os inimigos e olhar para qualquer lado sem que os soldados norte-coreanos o percebam.”

Igualmente, a forma como os militares se posicionam na Área de Segurança Conjunta dá azo a interpretações várias. Muitas vezes, os sul-coreanos colocam-se à esquina dos edifícios e os norte-coreanos de costas para o Sul. Diz-se que os sul-coreanos preocupam-se especialmente com uma possível escalada da situação. Atentos e à esquina, podem antecipar qualquer confronto e ter cobertura atrás dos edifícios no caso de serem alvejados.

Quanto aos norte-coreanos, ao virarem as costas para Sul mostram lealdade ao Norte e revelam uma preocupação maior — as deserções de militares ou civis norte-coreanos. O último caso conhecido aconteceu a 13 de novembro de 2017, quando um militar norte-coreano lançou-se na direção do Sul — primeiro de jipe e depois a correr a pé —, foi ferido a tiro pelos compatriotas e acabou por ser resgatado pelos sul-coreanos.

De um lado e do outro, gigantescos altifalantes tentam desmoralizar os guardas fronteiriços e incentivar a deserções, debitando mensagens sobre a maravilha que é viver num e noutro lado. Os do Norte difundem música marcial, os do Sul respondem com K-Pop, o estilo sul-coreano mundialmente famoso mas proibido na Coreia do Norte.

“Há uns dez anos, levei o escritor norte-americano Robert Coover, que na altura vivia na Catalunha, à zona desmilitarizada”, conta o professor Kim. “A dada altura, ele disse: ‘Isto parece uma encenação de um espetáculo político’.” Como se os soldados fossem atores num parque temático.

A Área de Segurança Conjunta é o único troço da zona desmilitarizada (DMZ, sigla em inglês) onde não há arame farpado nem minas no solo. A DMZ é uma ampla “terra de ninguém”, de 248 quilómetros de comprimento por quatro de largura, fortificada com vedações, torres de vigia e campos minados, concebida para servir de tampão a grandes concentrações de tropas e armamento pesado.

Segundo o livro “The Two Koreas — A contemporary history”, de Don Oberdorfer e Robert Carlin (2014), “atrás das fortificações estão duas das maiores concentrações militares em todo o mundo — 1,1 milhões de norte-coreanos voltados para 660 mil sul-coreanos e 28 mil norte-americanos”. Coreia do Norte e Estados Unidos são potências nucleares.

Esse “buraco” na cerca que divide os dois países fica na aldeia de Panmunjom (hoje desabitada), onde foi assinado o Armistício que pôs fim a três anos de guerra entre Norte e Sul (1950-1953). É num dos seus edifícios — a Casa da Paz — que, esta sexta-feira, se encontrarão, cara a cara, o Presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, e o líder norte-coreano, Kim Jong-un. Será a primeira vez que um líder norte-coreano atravessará o paralelo 38, a fronteira.

No chão da Área de Segurança Conjunta, uma linha em cimento assinala a fronteira política entre os dois países. Essa divisão tem na sua origem um episódio trágico, já lá vão mais de 40 anos. Na manhã de 18 de agosto de 1976, na borda oeste da Área de Segurança Conjunta, cinco trabalhadores sul-coreanos, protegidos por dez militares norte-americanos e sul-coreanos aproximaram-se de um álamo com o intuito de aparar os ramos que obstruíam a vista entre dois postos de vigia do Sul.

Militares norte-coreanos aproximaram-se e levantaram objeções. Um capitão americano, Arthur Bonifas, que estava a três dias de terminar missão na península coreana, ignorou o protesto, mesmo após os norte-coreanos chamarem reforços. Foi derrubado por um golpe de karaté e espancado até à morte por meia dúzia de norte-coreanos, tal como aconteceu ao tenente Mark Barrett. Foram as primeiras mortes na Área de Segurança Conjunta desde o seu estabelecimento, em 1953. Para evitar mais incidentes, as partes acordaram, então, a divisão do local por uma Linha de Demarcação Militar, que não pode ser ultrapassada.

Sobre a linha de cimento ergueram-se cinco edifícios que funcionam como salas de conferência. Pelos vidros das janelas, uns e outros observam e fotografam o que se passa no interior, especialmente em dias de visitas importantes.

Um dos edifícios sobre a linha de fronteira é a sala de Conferência da Comissão Militar de Armistício onde, pontualmente e ao sabor da conjuntura política, as partes se reúnem para discutir assuntos militares, políticos e logísticos. A mesa é atravessada pela Linha de Demarcação Militar.

Esta sala é de visita obrigatória para os muitos turistas que, vindos do Norte ou do Sul, acorrem a Panmunjom em busca de emoções fortes no “lugar mais tenso do mundo”. Na prática, no seu interior podem cruzar a fronteira, ainda que por pouco mais de um metro, andando apenas de um lado para o outro.

Aldeias para coreano ver

Ao longo dos anos, Panmunjom tem funcionado como um barómetro da relação entre Pyongyang e Seul. É lá que, pontualmente, se encontram emissários dos dois lados e é por lá também que têm cruzado a fronteira delegações oficiais, suprimentos de emergência (para responder a situações de fome ou catástrofes naturais, no Norte), prisioneiros entretanto libertados ou mediadores internacionais.

Nos termos do Armistício está proibida qualquer atividade civil dentro da zona desmilitarizada, exceto em duas pequenas localidades: do lado sul-coreano, Daeseong-dong, onde os moradores não pagam impostos, vivem sob rigoroso recolher obrigatório e saem para os arrozais com escolta armada; e, do lado norte-coreano, Kijongdong, construída nos anos 50 para aliciar desertores, com elegantes prédios de apartamentos, mas onde não vive vivalma. Os do Sul dizem tratar-se de uma “aldeia de propaganda”.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 26 de abril de 2018 e republicado no “Expresso Online”, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui