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Marco Rubio, o latino que vai liderar a diplomacia dos Estados Unidos e tratar do “quintal da América”

Esta quarta-feira, Marco Rubio tem presença marcada no Comité de Relações Externas do Senado dos Estados Unidos para ser confirmado secretário de Estado. Pela primeira vez, a pasta será entregue a um latino, filho de imigrantes cubanos e casado com uma filha de colombianos. “A América Latina será certamente uma prioridade maior do que foi para Biden devido à obsessão de Trump com a imigração”, defende um estudioso da política norte-americana para a região

Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, o secretário de Estado será um latino. Marco Rubio, o escolhido por Donald Trump para chefiar a diplomacia do país, nasceu em Miami, no seio de um casal de imigrantes cubanos.

Mario e Oriales abandonaram a ilha em 1956, três anos antes da revolução que colocou Fidel Castro no poder em Havana. El Comandante ficou no cargo 47 anos, seguidos de mais 12 com o seu irmão Raul ao leme do país.

Os Rubio continuaram pelos EUA e obtiveram a cidadania norte-americana em 1975. Mario trabalhou sobretudo como barman e Oriales como empregada de hotel. Tiveram quatro filhos — Marco foi o terceiro a nascer, a 28 de maio de 1971.

O ódio ao comunismo

Marco cresceu no seio de uma comunidade de centenas de milhares de migrantes, exilados e dissidentes políticos, obcecada com a ideia de usar todo o poder dos EUA para punir o regime castrista, nomeadamente através do voto. Nesse contexto, também ele desenvolveu um ódio ao comunismo.

Formou-se em Direito, casou com Jeanette Dousdebes, filha de imigrantes colombianos, e teve quatro filhos. Coroou o sonho americano ao entrar para o Congresso como senador, pela primeira vez em 2010, pelo estado da Florida. O seu livro de memórias tem como título “An American Son” (Um Filho Americano).

Desde a primeira eleição para o Congresso, Rubio tem merecido a confiança ininterrupta dos eleitores, em especial da comunidade cubana de Miami. Esta quarta-feira, comparecerá diante do Comité de Relações Externas do Senado para responder a perguntas dos seus pares visando a sua confirmação como secretário de Estado.

“Sob a liderança do Presidente Trump, conseguiremos a paz através da força e colocaremos sempre os interesses dos americanos e da América acima de tudo”, afirmou Rubio, a 13 de novembro, numa reação à notícia da sua nomeação em tudo consentânea com a forma egocêntrica como Trump posiciona a América no mundo.

As principais prioridades de Trump ao nível da política externa não serão muito diferentes das de Joe Biden — as guerras na Ucrânia e Gaza, e a ascensão da China — porque são questões centrais para os interesses dos EUA”, diz ao Expresso William LeoGrande, professor na Universidade Americana, em Washington DC.

“E se Rubio quiser ser candidato a Presidente em 2028, não pode ser visto como o secretário de Estado para a América Latina”, acrescentou este especialista em política externa norte-americana para a região. “Porém, a América Latina será certamente uma prioridade maior do que foi para Biden devido à obsessão de Trump com a imigração.”

“Vamos ter a maior deportação. Não temos escolha”

Donald Trump, a 18 de junho de 2024, num comício em Racine, no estado de Wisconsin

Estima-se que, atualmente, vivam nos EUA mais de 11 milhões de migrantes em situação irregular — 3% da população total. A maioria é oriunda do México e do chamado Triângulo Norte da América Central (El Salvador, Guatemala e Honduras). Uma larga fatia vive no país há pelo menos uma década.

Para concretizar o plano de expulsão de milhões de latino-americanos, a futura Administração Trump precisa da colaboração dos países de destino, numa região politicamente fragmentada onde muitos líderes encaram com reservas o lema America First (a América primeiro) do 48.º Presidente.

Os migrantes mexicanos “enviam 65 mil milhões de dólares [63,2 mil milhões de euros] para as suas famílias no México, mas contribuem mais para os Estados Unidos porque esse valor é apenas 20% do que ali deixam, em consumo, poupança e impostos”, alertou Claudia Sheinbaum, a Presidente do México, num discurso comemorativo dos seus 100 dias no poder, assinalados a 9 de janeiro.

“Estaremos sempre de cabeça erguida. O México é um país livre, independente e soberano. Coordenámos, colaborámos, mas nunca nos subordinámos”, acrescentou a governante, que é judia e pertence ao Movimento Regeneração Nacional, de esquerda.

Se o primeiro governo de Trump, no que ao México diz respeito, ficou marcado pela questão do muro na fronteira entre os dois países, agora, além da deportação massiva de imigrantes, Washington ameaça castigar com a aplicação de tarifas alfandegárias e ações em nome do combate aos cartéis do crime.

“Enquanto os EUA continuam a enfrentar uma crise sem precedentes de fentanil e de migração ilegal, espero que a Presidente eleita [Claudia] Sheinbaum enfrente estes desafios à segurança e democracia”, reagiu Marco Rubio à vitória eleitoral da mexicana, em junho de 2024.

Há uma semana, Trump agitou as águas entre os dois países ao dizer: “Vamos mudar o nome do Golfo do México para Golfo da América. É um anel lindo e cobre muito território. Golfo da América, que lindo nome, é apropriado”.

A chefe de Estado mexicana respondeu no mesmo tom e, numa das suas conferências de imprensa diárias, diante de um mapa-mundo, sugeriu que o continente americano passasse a designar-se “América Mexicana”, citando um termo que consta de um documento de 1814, anterior à Constituição mexicana.

Entre os líderes latino-americanos com quem será mais fácil Marco Rubio estabelecer comunicação está o Presidente da Argentina, Javier Milei, que o norte-americano descreveu como “uma lufada de ar fresco” quando o visitou em Buenos Aires, em fevereiro passado.

Autodenominado “anarcocapitalista”, Milei é dono de um estilo muitas vezes comparado a Donald Trump: são antigas figuras da televisão, chegaram à política com estatuto de outsider, têm uma retórica populista e um estilo não convencional e provocador.

Mal entrou na Casa Rosada, uma das primeiras medidas de Milei foi retirar o seu país da rota de adesão aos BRICS, onde está o vizinho Brasil. A Argentina tinha entrada prevista no grupo a 1 de janeiro de 2024.

Outro líder latino-americano que já mereceu elogios de Rubio é Nayib Bukele, o Presidente de El Salvador que professa o “Bukelismo”, uma combinação de populismo, pragmatismo económico, autoritarismo e centralização de poder.

Na sua primeira visita oficial ao país, em março de 2023, Rubio destacou o combate de Bukele contra a violência dos gangues e do crime organizado, um problema na origem do êxodo de milhares de salvadorenhos para os EUA.

“Sob a presidência de Nayib Bukele, um dos países mais perigosos do mundo tornou-se um dos mais seguros e promissores da região, tudo numa questão de meses”, disse Rubio. Bukele, de 43 anos, está no poder desde 1 de junho de 2019.

Em contraponto aos países apreciados por Rubio está a “troika da tirania”, como os designou o ex-Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos John Bolton, durante o primeiro governo Trump, referindo-se a Cuba, Venezuela e Nicarágua.

Na primeira Administração Trump, Washington inverteu a aproximação a Cuba que vinha sendo desbravada por iniciativa do Presidente antecessor, Barack Obama, que fez uma visita histórica à ilha dos antepassados de Marco Rubio. Este nunca se deixou levar pelas emoções, sempre pugnou pela aplicação de sanções à ilha e considerou qualquer tentativa de aproximação diplomática a Cuba um ato de ingenuidade.

“A decisão [de Obama] recompensar o regime de Castro e iniciar o caminho na direção da normalização das relações com Cuba é inexplicável”, acusou. “Cuba, tal como Síria, Irão e Sudão, continua a ser um Estado que patrocina o terrorismo.”

Igualmente, na primeira passagem de Trump pela Casa Branca, Washington reconheceu (sem sucesso) Juan Guaidó, autoproclamado Presidente da Venezuela, como líder legítimo do país. Na terminologia de Rubio, a Venezuela é a “narco-ditadura de Maduro” à qual a única resposta possível é a “pressão máxima” das sanções.

Assim que foi anunciada a escolha de Rubio para secretário de Estado, a opositora venezuelana María Corina Machado saudou a nomeação: “São excelentes notícias para toda a América Latina”, escreveu na rede social X. “O senador tem uma profunda compreensão das ameaças que regimes como os de Cuba, Nicarágua e Venezuela representam para todo o hemisfério.”

A 23 de abril de 2024, num artigo na revista conservadora “The National Interest”, Marco Rubio defendeu: “A nossa região atravessa atualmente pelo menos seis grandes crises. Vão de uma migração em massa sem precedentes na fronteira sul dos EUA, ao colapso completo da ordem social no Haiti e à aceleração da opressão estatal em Cuba, na Nicarágua e na Venezuela”.

Um terceiro grupo de países protagonizou, nos últimos anos, uma “onda vermelha” no continente. Foi o caso do Chile, onde Gabriel Boric, um ex-líder estudantil, é Presidente desde 2022. Rubio, fortemente pró-Israel, defendeu que “sob a presidência de Boric, o Chile tem sido uma das principais vozes anti-Israel na América Latina, mesmo antes do 7 de Outubro” e também um porto seguro para financiadores do grupo xiita libanês Hezbollah.

Outro líder incómodo em Washington é Gustavo Petro, um antigo guerrilheiro do grupo M-19, eleito Presidente da Colômbia em 2022. Rubio considerou tratar-se de uma escolha “muito perigosa” para um país que os EUA veem como um aliado no combate ao narcotráfico.

A 1 de março próximo, o Uruguai consumará outra viragem à esquerda na América Latina, com a tomada de posse de Yamandú Orsi, que venceu as presidenciais de 24 de novembro. Esse escrutínio registou uma taxa de afluência às urnas de 89,36%.

Ao longo de 2025, quatro países realizarão eleições presidenciais: Equador (9 de fevereiro), Bolívia (17 de agosto), Chile (16 de novembro) e Honduras (30 de novembro).

No passado, as políticas intervencionistas dos Estados Unidos na região levaram a que os países latino-americanos fossem genericamente designados — de forma depreciativa — “o quintal da América”.

À primeira passagem pela Casa Branca, entre 2017 e 2021 — quando os EUA tiveram como secretários de Estado Rex Tillerson, um ex-CEO da petrolífera ExxonMobil, e Mike Pompeo, ex-diretor da CIA —, Trump não realizou uma única visita oficial à América Latina, nem mesmo quando o Peru acolheu a oitava Cimeira das Américas, em 2018.

Agora, antes mesmo de assumir formalmente a presidência, já revelou interesse pela América Latina ainda que não de forma cordial. Além de prometer uma mega deportação de migrantes e de propor a mudança de nome do Golfo do México, partilhou a cobiça pelo Canal do Panamá, a via marítima artificial de 82 quilómetros que liga o Atlântico e o Pacífico.

“O Canal do Panamá é vital para o nosso país. Está a ser operado pela China. China! E nós demos o Canal do Panamá ao Panamá, não o demos à China. E eles abusaram disso. Abusaram deste presente”

Donald Trump, numa conferência de imprensa em Mar-a-Lago, a 7 de janeiro

“Trump parece ter uma visão do Hemisfério Ocidental de final do século XIX”, conclui William LeoGrande, “em que a diplomacia do canhão e a coerção económica são utilizadas para assegurar o domínio dos Estados Unidos, a fim de garantir rotas marítimas (Panamá) e minerais estratégicos (Gronelândia)”.

Para o Panamá, o Canal é o seu principal ativo económico. José Raúl Mulino, na presidência desde 1 de julho de 2024, não comentou as palavras de Trump.“Não lhe responderei até que seja Presidente”, disse.

Para concretizar o que defende, Donald Trump terá de se dedicar à América Latina como não o fez da primeira vez. Terá a seu lado Marco Rubio, atento àquilo que de positivo existe na região. Defendeu ele em abril passado: “Mesmo reconhecendo os horrores que ocorrem não muito longe das nossas costas — e fazendo o nosso melhor para os combater — devemos inspirar-nos na nova geração de líderes potencialmente pró-América no Hemisfério Ocidental”.

(IMAGEM Marco Rubio, secretário de Estado dos EUA EXECUTIVEGOV)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

Nas Nações Unidas, 185 países votaram pelo fim do embargo a Cuba. Então porque não acaba?

O bloqueio económico imposto pelos Estados Unidos a Cuba dura há 12 presidentes. Republicanos ou democratas, de John F. Kennedy a Joe Biden, nenhum se atreveu a contrariar a sensibilidade dos cubanos exilados em Miami. “Democratas como Biden deviam ter visto há muito tempo que a Florida já não é um estado indeciso. Os democratas não têm hipótese de ganhar”, diz ao Expresso um estudioso norte-americano da América Latina. “É moralmente injustificável continuar a negar as necessidades básicas ao povo cubano, especialmente medicamentos e equipamentos médicos”

As garras do Tio Sam envolvem a ilha de Cuba CARLOS LATUFF / CANADIAN DIMENSION

Há 124 anos, por esta altura, Cuba saboreava os primeiros dias como país independente. A 10 de dezembro de 1898, terminara a terceira guerra contra o colonizador espanhol, em que os cubanos contaram com a preciosa ajuda de tropas norte-americanas.

Nas décadas seguintes, a ilha caribenha ficou na dependência económica dos Estados Unidos. Quando, a 1 de janeiro de 1959, a revolução socialista de Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara triunfou sobre a ditadura de Fulgencio Batista, para muitos cubanos isso significou a libertação de outro tipo de colonialismo.

A nacionalização de dezenas de empresas norte-americanas, decretada pelo novo regime, levou Washington a impor restrições comerciais à ilha. Numa primeira fase, ficaram de fora alimentos e medicamentos (Administração Eisenhower); posteriormente, um embargo afetou todo o comércio (Administração Kennedy).

Esse bloqueio económico dura até hoje. Desde 1992, por iniciativa de Cuba, a Assembleia-Geral das Nações Unidas vota, anualmente, a resolução “Necessidade de acabar com o embargo económico, comercial e financeiro imposto pelos Estados Unidos da América contra Cuba” — em 2020, devido à pandemia, a votação não se realizou.

Estados Unidos quase isolados

A resolução não é juridicamente vinculativa, mas permite tirar o pulso à opinião mundial sobre o assunto. Na primeira resolução, em 1992, apenas 59 países votaram a favor; hoje, há quase unanimidade contra o embargo. É isso que espelha a última votação, a 3 de novembro passado:

▪ 189 Estados-membros votaram;
▪ 185 votaram a favor do fim do embargo;
▪ 2 votaram contra: Estados Unidos e Israel;
▪ 2 abstiveram-se: Brasil e Ucrânia.

ISRAEL — “O voto de Israel não parece ser surpreendente. É um firme aliado dos Estados Unidos”, explica ao Expresso o politólogo argentino Ignacio Labaqui. Na Assembleia -Geral da ONU — onde os votos dos países têm todos o mesmo peso —, o Estado judeu tem sido o único a replicar cegamente a posição dos Estados Unidos.

BRASIL — “O Brasil de Jair Bolsonaro tem uma relação fria com o Governo de Joe Biden e mantém boas relações com a Rússia de Vladimir Putin. Provavelmente, se Lula da Silva já fosse Presidente teria votado contra o embargo”, acrescenta Labaqui. De 1992 a 2018, o Brasil votou sempre a favor do fim do embargo; em 2019 (o primeiro ano de Bolsonaro no Palácio do Planalto) votou contra e desde então tem-se abstido.

UCRÂNIA — Kiev tem optado pela abstenção desde 2019. No atual contexto de guerra, o voto ucraniano não será alheio à necessidade de ajuda militar e de mais sanções à Rússia. Até então, com uma única exceção em 1993 (em que se absteve), os ucranianos votaram sempre contra o embargo.

E Portugal?

Portugal tem votado pelo fim do embargo desde 1995, ano em que António Guterres se tornou primeiro-ministro. Entre 1992 e 1995, quando o Governo era chefiado por Aníbal Cavaco Silva, Portugal absteve-se na resolução apresentada por Cuba.

Da votação na ONU resulta um quase total isolamento dos Estados Unidos nesta questão. Ronn Pineo, historiador norte-americano e especialista na área da América Latina, recua aos primórdios da democracia norte-americana para explicar o porquê de sucessivos governos — ora republicanos ora democratas — insistirem no embargo.

“O sistema político dos Estados Unidos é altamente disfuncional. Aspetos importantes antiquados foram concebidos há muito tempo para proteger interesses económicos poderosos de épocas passadas. Este sistema foi elaborado por fazendeiros ricos e donos de escravos para frustrar qualquer possibilidade de uma verdadeira democracia. Este sistema perdura”, diz ao Expresso.

“É justo criticar o sistema político dos Estados Unidos como algo em funcionamento para assegurar a lei de uma minoria fechada. Os Estados Unidos não têm uma democracia funcional.”
Ronn Pineo

O peso eleitoral da Florida

“Uma característica deste sistema político injusto é a estranha alocação de poder político indevido a swing states, estados que ora podem cair para os democratas, ora para os republicanos, nas eleições presidenciais. A Florida é um desses estados.”

Na Florida vive a maior comunidade de cubano-americanos do país. Tem origem no êxodo de cubanos em fuga às lideranças dos irmãos Castro, que mandaram em Cuba durante quase seis décadas — Fidel entre 1959 e 2008, Raúl entre 2008 e 2018. “Ao criar raízes na Florida, estes cubano-americanos notabilizaram-se por uma característica constante no seu comportamento eleitoral: votam em função de um assunto único.”

“A única coisa com que os cubano-americanos se importavam era punir os Castro e usar todo o poder dos Estados Unidos contra a revolução cubana.”
Ronn Pineo

“Nos Estados Unidos, todos os candidatos presidenciais sentem que têm de ganhar na Florida se quiserem vencer no colégio eleitoral, e a única forma de vencer nesse estado é obter o voto fundamental dos cubano-americanos. Manter o bloqueio económico a Cuba foi essencial para conquistar esse voto. Para os candidatos presidenciais e para os presidentes não houve penalização política pela continuação do bloqueio. E não há nenhum grupo de eleitores americanos que considere o levantamento do bloqueio assim tão importante.”

Além da influência do lóbi cubano de Miami, Ignacio Labaqui identifica outra razão que dificulta o levantamento do embargo. “O embargo surgiu por um decreto presidencial da Administração Kennedy. Manter ou levantar o embargo era uma decisão presidencial. Isso mudou na década de 1990 com a lei Helms-Burton [de 1996], que, entre outras coisas, converteu o embargo numa decisão legislativa”, passando a reforçar o papel do Congresso nesta questão.

Guerra Fria acabou, embargo continuou

Originalmente, o embargo foi uma decisão vinculada à lógica da Guerra Fria. Hoje, isso faz pouco sentido. O embargo mostrou ser ineficaz para conseguir o objetivo que presidiu à sua criação: provocar a queda do castrismo através de sanções económicas”, acrescenta Labaqui.

“Desde a aplicação do embargo, passaram-se 61 anos e 12 presidentes norte-americanos, e a ditadura cubana ainda lá está.”
Ignacio Labaqui

“Por outro lado, a Guerra Fria acabou há mais de 30 anos, pelo que o argumento a favor do embargo de que Cuba é uma ameaça estratégica para a segurança dos Estados Unidos não é sustentável. O embargo continua porque é difícil conseguir maiorias legislativas [no Congresso] para o levantar e por causa da influência dos grupos mais anticastristas do exílio cubano.”

Na Assembleia-Geral da ONU, só em 2016 os Estados Unidos não votaram contra o fim do embargo, optando pela abstenção. Israel acompanhou na abstenção e 191 países votaram a favor do levantamento do bloqueio económico à ilha. O inquilino da Casa Branca era Barack Obama que, em março desse ano, fizera história ao tornar-se o primeiro Presidente norte-americano a visitar Cuba em 88 anos — a última viagem realizara-se em 1928, por Calvin Coolidge.

O degelo ensaiado por Obama na relação bilateral com Cuba não produziu raízes. No ano seguinte, os Estados Unidos recuperaram o tradicional “não” e, assim que Donald Trump se tornou Presidente, os cubanos de Miami voltaram a respirar de alívio.

“Democratas como o Presidente Joe Biden deviam ter visto há muito tempo que a Florida já não é um estado indeciso. Esse cálculo político está errado. Os democratas não têm hipótese de ganhar este estado”, diz Pineo. O atual chefe de Estado foi eleito sem precisar de vencer na Florida, aliás.

“Podem ignorar com segurança os cubano-americanos que insistem em prosseguir com o bloqueio económico e, em vez disso, podem considerar apenas fazer a coisa certa”, diz o perito. “É moralmente injustificável continuar a negar as necessidades básicas ao povo cubano, especialmente medicamentos e equipamentos médicos.”

Florida, um feudo republicano

A eleições para o Congresso (midterms) de novembro passado confirmaram o domínio generalizado e amplo dos republicanos na Florida:

Ron DeSantis obteve 59,4% dos votos, sendo reeleito governador — é apontado como o mais forte candidato a desafiar Trump nas primárias republicanas para as presidenciais de 2024.
Para o Senado, Marco Rubio, de ascendência cubana, foi reeleito com 57,7%.
E para a Câmara dos Representantes, os eleitores da Florida elegeram 20 republicanos e oito democratas.

Nas Nações Unidas, o número máximo de países que votaram simultaneamente “não” foi quatro — aconteceu cinco vezes. Além de Israel, votaram ao lado dos Estados Unidos, em diferentes anos, Roménia, Albânia, Paraguai, Usbequistão, Ilhas Marshall, Brasil e Palau.

Um aliado chamado Palau

Ronn Pineo particulariza o caso deste microestado no Oceano Pacífico, com cerca de 20 mil habitantes, para expor a fragilidade de alguns apoios recebidos por Washington. “O Palau procurou defender o seu voto como ato de profunda consciência, contra a tirania socialista, mas esse voto é visto como resultado direto da dependência total da pequena nação em relação à assistência económica americana para a sua própria sobrevivência.”

“As nações que votam com os Estados Unidos são países que dependem profundamente da ajuda militar norte-americana. Os republicanos no Congresso poderiam acabar com a assistência militar americana se esses países, sobretudo Israel e a Ucrânia, votassem a favor de suspender o bloqueio económico dos Estados Unidos a Cuba.”

“O embargo terminará quando houver mudanças políticas efetivas ou de regime político em Cuba ou quando uma nova geração de cubanos ou de cubano-americanos entenda que deve terminar.” Nancy Gomes, diretora do polo em Portugal da Fundação Universitária Ibero-Americana (FUNIBER)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui

A quem já telefonou Joe Biden… e a quem não

Nas primeiras conversas com líderes estrangeiros, o novo Presidente dos Estados Unidos privilegiou os dois países vizinhos, três aliados europeus e alguns pesos-pesados da geopolítica mundial

Nos últimos 30 anos, os Presidentes dos Estados Unidos da América recém-chegados à Casa Branca usaram os seus primeiros telefonemas internacionais para promover a boa vizinhança. Donald Trump ligou para o Canadá e para o México, no dia seguinte a tomar posse. O antecessor, Barack Obama, privilegiou o Canadá e, antes dele, George W. Bush o México. Só Bill Clinton colocou a geopolítica à frente de tudo e ligou, prioritariamente, para Rússia e Israel.

Joe Biden, que tomou posse faz amanhã um mês, tinha telefonado, até ontem, a 11 líderes estrangeiros. “Parece preocupado em restabelecer as grandes linhas que dominaram a política externa dos EUA nas últimas décadas, e que Trump rompeu abruptamente”, comenta ao Expresso o americanófilo José Gomes André. “Nomeadamente, reconstruir conexões com aliados permanentes (como os grandes países europeus) e construir um arco diplomático alicerçado em democracias sólidas e confiáveis para enfrentar os grandes desafios geopolíticos.”

22-01 CANADÁ 
Desilusão a norte

A conversa com o primeiro-ministro Justin Trudeau durou cerca de 30 minutos, o suficiente para acordarem áreas de cooperação e identificarem obstáculos no caminho. Trudeau expressou a sua “desilusão” em relação à decisão de Biden de cancelar a construção do polémico oleoduto Keystone XL, que levaria petróleo de Alberta até ao Texas ao ritmo de 830 mil barris por dia. Biden fê-lo no seu primeiro dia em funções, ao mesmo tempo que decretava o regresso dos EUA ao Acordo de Paris sobre as Alterações Climáticas.

22-01 MÉXICO 
Provocação a sul

Andrés Manuel López Obrador foi, juntamente com o homólogo brasileiro Jair Bolsonaro, dos mais resistentes a felicitarem Joe Biden pela vitória eleitoral. O norte-americano desvalorizou e colocou o México entre os contactos prioritários. Biden prometeu cooperação, nomeadamente ao nível dos fluxos migratórios irregulares, e ignorou as controvérsias recentes. Em janeiro, López Obrador ofereceu asilo político a Julian Assange, numa atitude provocatória para com os EUA, que lutam na justiça pela extradição do fundador da WikiLeaks, detido no Reino Unido.

23-01 REINO UNIDO 
Uma relação especial

Ao contrário do seu antecessor, Biden nunca foi adepto da saída do Reino Unido da União Europeia (‘Brexit’), mas a opção britânica por esse desígnio não parece beliscar a relação privilegiada entre os dois lados do Atlântico. A seguir aos vizinhos, o novo Presidente telefonou ao primeiro-ministro Boris Johnson, com quem conta para revitalizar os laços transatlânticos. Segundo informações da Casa Branca, os dois discutiram a coordenação de prioridades em matéria de política externa, nomeadamente a Rússia, a China e o Irão.

24-01 FRANÇA 
Alinhar estratégias

Na retórica de Washington, França é “o mais antigo aliado” dos EUA, sentimento que Biden enfatizou na sua conversa com o homólogo Emmanuel Macron. Segundo o palácio do Eliseu, os governantes constataram “uma grande convergência de pontos de vista” e “vontade de atuar em conjunto no sentido da paz e estabilidade no Médio Oriente, em particular no dossiê iraniano e na situação no Líbano”. Já o comunicado da Casa Branca realçou a necessidade de alinhar estratégias na região africana do Sahel, onde a França lidera uma operação internacional de combate ao extremismo islâmico.

25-01 ALEMANHA 
Procurar consenso

Um dos símbolos da tensão transatlântica sentida na era Trump foi a decisão de os EUA fazerem regressar 9 mil soldados estacionados em solo alemão. Biden congelou a medida, e Berlim suspirou de alívio. “Há uma oportunidade muito mais ampla para um consenso político com o Presidente Biden”, reagiu a chancelerina Angela Merkel, após conversar com aquele. Segundo a Casa Branca, ambos afirmaram a necessidade de acertar agulhas relativamente a cenários como o Afeganistão, a Ucrânia e os Balcãs. Ficou claro também o desejo de Biden de revitalizar a relação com a União Europeia, que Trump desprezou, acusando os europeus de “fazerem batota” à custa da economia dos EUA.

26-01 RÚSSIA 
Um rol de queixas

No mesmo dia em que conversou com o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, para reafirmar o seu compromisso com o multilateralismo, designadamente ao nível da segurança, Joe Biden falou com o líder do país contra o qual a Aliança Atlântica foi criada. No relato da Casa Branca, Biden “não se conteve” ao telefone com Vladimir Putin: reafirmou o apoio à soberania da Ucrânia, abordou o ataque cibernético SolarWinds, as denúncias de recompensas russas a ataques aos militares dos EUA no Afeganistão, a interferência nas eleições de 2020 e o envenenamento de Alexei Navalny. A conversa não terá indisposto totalmente o Presidente russo, já que poucos dias depois EUA e Rússia prolongaram o Tratado New START (relativo à redução dos arsenais nucleares) mais cinco anos.

27-01 JAPÃO 
Hoje e sempre, a segurança

EUA e Japão têm uma relação marcada pelo desfecho da II Guerra Mundial e, na conversa que manteve com o primeiro-ministro, Yoshihide Suga, Biden reafirmou o compromisso inabalável de Washington com a defesa do aliado nipónico, incluindo as ilhas Senkaku, reivindicadas pela China. Biden e Suga “passearam-se” pela região do Pacífico e enfatizaram a necessidade de desnuclearização total da Península da Coreia.

03-02 COREIA DO SUL 
A pensar no Norte

Washington e Seul têm uma relação que dura há mais de sete décadas, tantas quantas a Coreia do Sul existe enquanto país. Para Washington, aquela nação é “o pilar de segurança e de prosperidade” na região do Pacífico. Foi este o ponto de partida da conversa entre Biden e o homólogo Moon Jae-in, numa conversa que teve como assunto incontornável a Coreia do Norte. A Coreia do Sul acompanhou Donald Trump na sua histórica aproximação a Kim Jong-un, mas esse é um legado que a nova Administração norte-americana recebeu com cautelas e que quererá abordar com calma.

03-02 AUSTRÁLIA 
Uma questão de ambição

Nos seus telefonemas aos líderes mundiais, como se constata nos comunicados da Casa Branca, Biden insistiu na cooperação com vista ao combate às alterações climáticas. O Presidente considera serem uma “ameaça existencial ao planeta” e já agendou uma cimeira sobre o clima para 22 de abril. Quando conversou com o primeiro-ministro Scott Morrison, houve na Austrália quem achasse que Biden iria pressioná-lo no sentido de maior compromisso com o desafio ambiental — a Austrália ainda não se comprometeu com a meta da neutralidade carbónica até 2050. Morrison disse que essa pressão não existiu e resumiu: “No que respeita às relações entre a Austrália e os EUA, não há nada para consertar, apenas coisas para construir.”

08-02 ÍNDIA 
Com a China no pensamento

As viagens internacionais estão fortemente condicionadas pela pandemia de covid-19, mas assim que se tornarem seguras, Joe e Jill Biden já têm convite em mãos para visitarem a Índia. Foi endereçado pelo primeiro-ministro Narendra Modi, durante o telefonema com o Presidente dos EUA, que abordou os desafios da região e a necessidade de fortalecimento da segurança através do Quad. Abreviatura de Diálogo Quadrilateral de Segurança, trata-se de um fórum frequentado por quatro países (Índia, EUA, Japão e Austrália), que, de forma informal, trabalha para contrariar a influência política, comercial e militar da China na região.

10-02 CHINA 
O concorrente mais sério

A proximidade ao Ano Novo Chinês deu um toque festivo à conversa de Biden com o homólogo Xi Jinping, que não iludiu as inúmeras preocupações norte-americanas relativas ao modus operandi chinês: práticas económicas coercivas, repressão em Hong Kong, violações dos direitos humanos em Xinjiang e ações assertivas na região do Pacífico. As palavras de Biden não terão apanhado Xi de surpresa. Cerca de uma semana antes, no seu primeiro discurso sobre política externa, o americano defendeu: “A liderança americana deve enfrentar este novo momento de avanço do autoritarismo, incluindo as ambições crescentes da China de rivalizar com os Estados Unidos.” E acrescentou. “Enfrentaremos diretamente os desafios colocados à nossa prosperidade, segurança e valores democráticos pelo nosso concorrente mais sério, a China.”

ISRAEL NERVOSO, IRÃO IMPACIENTE

A ausência de Israel do grupo de países prioritários a receber telefonema do novo Presidente dos EUA causou inquietação no mais sólido aliado dos norte-americanos no Médio Oriente.

“É possível que o silêncio de Washington tenha como objetivo enviar uma mensagem muito clara a Israel: o mergulho de cabeça de Benjamin Netanyahu [primeiro-ministro israelita] na política partidária dos EUA e os seus ditames para a nova Administração têm um preço na Casa Branca”, diz ao Expresso Ari Heistein, investigador no Instituto para os Estudos de Segurança Nacional, de Israel.

O israelita defende que a situação “deixa Netanyahu nervoso” devido à proximidade das legislativas de 23 de março (e à possibilidade de não poder afirmar-se na campanha como “o grande estadista de Israel”, dada a frieza do aliado americano), e também devido à questão iraniana.

“A diplomacia nuclear dos EUA com o Irão começará em breve e Israel espera muito ter um canal de comunicação aberto com Washington ao mais alto nível, de modo a garantir que os seus interesses e preocupações em relação ao programa nuclear do Irão sejam levados em conta pelos EUA.”

Em Teerão, este silêncio é interpretado “como sinal de que os EUA querem negociar. Não por uma questão de vontade, mas porque têm de o fazer”, comenta ao Expresso a iraniana Ghoncheh Tazmini, investigadora na London School of Economics.

“O Irão reduziu gradualmente o seu compromisso com o defunto acordo [sobre o seu programa nuclear] e há rumores de que está a ficar impaciente e pode considerar acelerar o programa nuclear se não houver avanços do lado dos EUA.” Com Netanyahu por perto, a margem de manobra de Joe Biden será menor.

(FOTO Joe Biden, Presidente dos Estados Unidos, ao telefone, na Sala Oval da Casa Branca ADAM SCHULTZ / FLICKR / CASA BRANCA)

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Dez altos e baixos da política externa de Donald Trump

Três analistas comentam a diplomacia do 45º Presidente. Do braço de ferro com a China à ambiguidade em relação às alterações climáticas

1 PANDEMIA A covid-19 tomou o mundo de assalto e os EUA em particular, tornando-os o país mais castigado. Donald Trump desvalorizou o problema, descredibilizou a Organização Mundial da Saúde e, mesmo após ter sido infetado, ignorou o perigo promovendo comícios de multidões. “É a primeira vez desde o pós-guerra que os EUA não estão na primeira linha de uma resposta a uma crise internacional relevante”, diz Carlos Gaspar, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais. “É uma mudança profunda. A principal potência internacional abdica da sua posição como garante da ordem e da estabilidade internacional.”

2 CHINA Com origem em Wuhan, a pandemia acentuou a ‘guerra fria’ entre EUA e China, levando Trump a encher a boca com “o vírus chinês”. “Barack Obama defendia que era impossível uma estratégia de contenção da ascensão da China por causa da interdependência entre as economias americana e chinesa”, diz Carlos Gaspar. “Trump decidiu ou foi levado a alinhar com uma estratégia de contenção da China cujo primeiro passo decisivo é o desacoplamento tecnológico e comercial entre as duas maiores economias mundiais. Está a pôr em causa a dinâmica de globalização.”

3 COREIA DO NORTE Quando Trump chegou à Casa Branca, a Península da Coreia, e o mundo por arrasto, estava em polvorosa perante sucessivos ensaios nucleares norte-coreanos. Trump fez tábua rasa da prática presidencial que o precedeu e tornou-se o primeiro Presidente a pisar a Coreia do Norte. Esteve três vezes com Kim Jong-un, mas o diálogo não deu frutos: Pyongyang não desnuclearizou, e Washington não levantou as sanções. “O que se vê a esta distância é que o Presidente dos EUA ofereceu uma gigantesca photo op a um ditador cruel, que não é de confiar, a troco de quase nada”, diz Germano Almeida, autor de quatro livros sobre presidências americanas.

4 ISRAEL-PALESTINA Trump fez uma escolha clara quando, a 6 de dezembro de 2017, reconheceu Jerusalém como capital de Israel. Acentuou esse alinhamento pelo Estado judaico a 15 de setembro passado ao surgir como o anfitrião da assinatura dos Acordos de Abraão, pelos quais duas monarquias árabes sunitas (Emirados Árabes Unidos e Bahrein) reconheceram Israel. “São o culminar de quatro anos de política pró-Israel, de diabolização do Irão [persa xiita] e sobretudo o ponto de chegada da preferência clara pela Arábia Saudita [árabe sunita]”, diz Germano Almeida. “É bom ver Israel assinar a paz, mas é preciso ver o que se perdeu à conta disso.” Os palestinianos foram ignorados e o Irão espicaçado.

5 IRÃO Trump deu total prioridade ao isolamento do Irão e isso ficou patente a 8 de maio de 2018 quando retirou os EUA do acordo internacional sobre o programa nuclear de Teerão. “A diabolização do Irão foi energizada pela necessidade de querer destruir tudo o que Obama fez”, diz Germano Almeida. Ao rasgar o acordo distanciou os EUA dos europeus, que mantiveram o compromisso, e desbravou caminho “a uma política para o Médio Oriente baseada em dois ‘pivôs’ por procuração: Israel e a Arábia Saudita”. O assassínio por um drone americano, a 3 de janeiro de 2020, do general Qasem Soleimani, o cérebro das intervenções iranianas na região, insere-se nessa guerra.

6 RÚSSIA Trump chegou à Casa Branca sob a suspeita de ter beneficiado de uma interferência russa nas eleições. Mas não evitou que a relação EUA-Rússia se degradasse. “A retórica utilizada em Washington relativamente à Rússia assumiu contornos nunca vistos”, diz o major-general Carlos Branco, autor do livro “Do fim da Guerra Fria a Trump e à Covid-19” (2020). “O secretário de Estado, Mike Pompeo, foi ao ponto de afirmar que a Rússia é um perigo para os EUA. O encerramento dos consulados russos em São Francisco, Nova Iorque e Washington foram precedentes perigosos. A classificação da Rússia pela Estratégia Nacional de Segurança, aprovada em 2017, como uma potência revisionista, colocando-a ao nível de ‘Estados párias’ como a Coreia do Norte, indica ao ponto a que chegou a relação.”

7 AFEGANISTÃO Com tropas neste país desde 11 de setembro de 2001, os EUA celebraram, a 29 de fevereiro deste ano, a paz com os talibãs que abre as portas ao regresso a casa. “Este acordo insere-se no cumprimento da promessa eleitoral de terminar com as ‘guerras intermináveis’”, diz o major-general Carlos Branco, antigo porta-voz do comandante da força da NATO no Afeganistão. “Os soldados americanos iniciarão uma retirada progressiva, pendente da evolução das negociações entre o Governo de Cabul e os talibãs, que não estão a ser fáceis.” Ao negociar diretamente com os talibãs, Trump contornou as dificuldades do diálogo intra-afegão. “Este acordo completa a estratégia de retraimento dos EUA, que decidiram pôr fim ao ciclo de intervenções militares no ‘arco islâmico’”, acrescenta Carlos Gaspar. “Quiseram impor a paz e sair com honra, mas este acordo não garante a paz aos afegãos, nem a honra dos norte-americanos e põe em causa tudo aquilo pelo qual os militares norte-americanos e os seus aliados combateram no Afeganistão.”

8 MULTILATERALISMO Um cunho da Administração Trump foi a denúncia de compromissos internacionais: Parceria Transpacífico, NAFTA, Acordo de Paris, Nuclear do Irão, UNESCO, Conselho dos Direitos Humanos… “Trump não simpatiza com o multilateralismo, sobretudo quando não é vantajoso para os interesses americanos. Mas é preciso avaliar com cautela as questões relativas à NATO”, alerta Carlos Branco. “As dificuldades de diálogo com os aliados europeus prendem-se, acima de tudo, com a sua reduzida contribuição financeira para o orçamento da organização. Contudo, nunca a NATO teve uma atividade tão intensa desde o fim da Guerra Fria.”

9 ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS A 1 de junho de 2017, Trump chocou o mundo ao retirar os EUA do Acordo de Paris sobre as alterações climáticas, criando polémica num assunto consensual nos corredores científicos e políticos. “É o momento mais vergonhoso dos anos Trump”, diz Germano Almeida. “Dá mau nome à América e coloca os EUA como ‘Estado pária’ num assunto fundamental para esta e as próximas gerações.” O Presidente nunca se assumiu totalmente como um negacionista, mas foi ambíguo para agradar aos empresários.

10 TERRORISMO George W. Bush executou Saddam Hussein, Barack Obama eliminou Osama bin Laden e Trump o líder do Daesh, Abu Bakr al-Baghdadi. Como os antecessores, pode dizer que tem “um troféu de caça” que, de forma mais simbólica do que real, identifica a derrota da ameaça islamita.

(FOTO Encontro entre Kim Jong-un e Donald Trump, na Zona Desmilitarizada U.S. GOVERNMENT / RAWPIXEL)

Artigo publicado no “Expresso”, a 24 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui

Mike Pompeo visitou cinco países em cinco dias. Objetivo: pressionar os árabes a normalizarem a relação com Israel

Entre domingo e quinta-feira, o secretário de Estado dos Estados Unidos desdobrou-se em contactos em Israel, Sudão, Bahrain, Emirados Árabes Unidos e Omã. Donald Trump precisa de um sucesso ao nível da política externa, comenta ao Expresso um cientista político israelita

O principal interesse é de Israel mas as despesas parecem estar a cargo dos Estados Unidos. Duas semanas após o anúncio da normalização da relação diplomática entre Israel e os Emirados Árabes Unidos, mediada pela Casa Branca, o Estado judeu tem novos alvos árabes em mira. Esta semana, as autoridades de Sudão, Bahrain e Omã foram sondadas acerca da possibilidade de seguirem o exemplo dos Emirados. A abordagem foi feita não por um governante ou diplomata israelita mas por um dos principais governantes da Administração norte-americana: o secretário de Estado Mike Pompeo.

“A tempo das eleições, Donald Trump quer apresentar ao povo norte-americano pelo menos um sucesso ao nível da política externa”, diz ao Expresso Ely Karmon, investigador do Instituto de Política e Estratégia, de Herzliya (Israel). “Ele não foi bem sucedido com os europeus, nem com a China, Coreia do Norte e Irão. Esta é uma possibilidade que lhe permitirá dizer: ‘Eu trouxe a paz, não ao Médio Oriente mas pelo menos entre Israel e alguns países árabes’.”

No universo de 22 países árabes, apenas três reconhecem o cialmente o Estado judeu: Egito (1979), Jordânia (1994) e Emirados Árabes Unidos (2020). Para o cientista político israelita, o Sudão pode ser o próximo. “Está muito interessado em normalizar a sua relação com os Estados Unidos, deixar de ser considerado um Estado pária e sair da lista de países que apoiam o terrorismo. Possivelmente, este é um incentivo americano para convencer o Sudão a iniciar a normalização com Israel.”

Segundo a publicação noticiosa “Sudan Tribune”, as autoridades de Cartum apelaram a que os EUA desvinculem os dois processos. Em comunicado posterior às conversações com Pompeo, o Governo sudanês fez saber que “no que respeita ao pedido dos EUA no sentido da normalização das relações com Israel, o primeiro-ministro [Abdallah Hamdok] explicou ao secretário do Estado que o período de transição no Sudão é liderado por uma ampla coligação com uma agenda específica que visa concluir o processo de transição, alcançar a paz e a estabilidade no país antes de realizar eleições livres”.

O Sudão vive uma fase de transição que decorre da deposição de Omar al-Bashir, a 1 de abril de 2019, após 30 anos de poder, e essa parece ser a prioridade do Conselho Soberano (composto por seis civis e cinco militares) quem manda atualmente no país.

Inegável é que, num passado recente, os dois países têm vindo a esboçar uma aproximação. A 3 de fevereiro, Abdel Fattah al-Burhan foi ao encontro do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, quando este realizava uma visita o cial ao Uganda. Então, o gabinete de Netanyahu fez saber que “ficou acordado o início de uma cooperação que conduzirá à normalização dos laços entre os países”.

“Apesar do Sudão ter participado em guerras contra Israel, algo mudou no ano passado, após a revolução”, comenta Ely Karmon. “O novo governo mudou a política e está a tentar que o país seja membro de uma coligação sunita mais moderada.”

O peso do Irão

Depois da visita ao Sudão, Mike Pompeo seguiu para o Bahrain, um pequeno reino ribeirinho ao Golfo Pérsico particularmente permeável a promessas de mais segurança. “Uma das razões que leva o Bahrain a querer ter relações diretas com Israel é o facto de se sentir ameaçado pelo Irão”, diz o israelita. “Talvez seja o Estado mais ameaçado pelo Irão.”

O país vive a singularidade de ter no poder uma família real sunita enquanto a maioria da população ser xiita (como o Irão). No Bahrain, “há muitos grupos xiitas contrários ao regime que são nanciados e apoiados pelo Irão”, recorda Ely Karmon.

À semelhança do que aconteceu no Sudão, as declarações públicas das autoridades do Bahrain não foram no sentido de uma adesão imediata à proposta de Pompeo. Segundo a agência noticiosa o cial local, o Rei Hamad bin Isa Al-Khalifa “realçou a importância da intensificação de esforços para se acabar com o conflito israelo-palestiniano de acordo com a solução de dois Estados” que leve ao “estabelecimento de um Estado palestiniano independente com Jerusalém Oriental como capital”.

Apesar do discurso oficial, é inegável que, nos últimos anos, o Bahrain tem dado sinais de abertura em relação a Israel. Em 2017, o monarca denunciou o boicote árabe a Israel e afirmou que os seus súbditos são livres de visitar o Estado judeu. No ano passado, o ministro dos Negócios Estrangeiros reafirmou o direito à existência de Israel e, em dezembro, Shlomo Amar, o rabino chefe de Jerusalém, participou num evento inter-religioso no Bahrain.

Omã, de bem com todos

A última viagem de Mike Pompeo neste périplo levou-o a Omã, um sultanato que nas últimas décadas, sob a liderança do Sultão Qaboos, que morreu a 10 de janeiro passado, após mais de 50 anos no poder, tem adotado uma política de coexistência pacífica com todos os países da região, Israel e Irão incluídos.

Omã tem relações amigáveis com Israel desde os anos 1960, de forma especialmente secreta. Ainda assim, em 1994, o primeiro-ministro Yitzhak Rabin visitou o país, naquela que foi a primeira deslocação conhecida de um líder israelita a um país do Golfo. E em 2018, também Benjamin Netanyahu foi recebido em Muscate.

Relativamente ao Irão, Omã também tem um histórico de não hostilidade. Não tomou parte na guerra Irão-Iraque e atuou como mensageiro entre Washington e Teerão durante as negociações internacionais relativas ao programa nuclear iraniano.

“Omã tem um novo líder [Haitham bin Tariq Al Said, primo de Qaboos] que não tem o mesmo prestígio do anterior e que tem de levar em consideração a estabilidade do seu regime e do próprio país”, alerta Ely Karmon. “E tem relações sensíveis e economicamente importantes com Teerão. Poderá não querer colocar-se na mira do Irão.”

Esta sexta-feira, Mike Pompeo regressou aos Estados Unidos com cansaço acumulado e aparentemente de mãos vazias. De nenhum dos países sondados, o governante norte-americano leva notícias sonantes que possam ser utilizadas, a curto prazo, como bandeira eleitoral.

(FOTO: Bandeiras de Israel e dos Estados Unidos, no aeroporto Ben Gurion, em Telavive, para dar as boas-vindas ao Presidente dos EUA Barack Obama, a 20 de março de 2013 EMBAIXADA DOS EUA EM ISRAEL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de agosto de 2020. Pode ser consultado aqui