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À espera que o outro dê o primeiro passo

Diálogo entre iranianos e americanos está refém de pré-condições de ambas as partes

A chegada de Joe Biden à Casa Branca foi um bálsamo de esperança para a revitalização do acordo sobre o programa nuclear do Irão. Essa janela de oportunidade está, contudo, a fechar-se a cada dia que passa. Em junho haverá eleições presidenciais na república islâmica e, no tradicional braço de ferro entre candidatos da linha dura e moderados, começam a faltar argumentos aos últimos (como o Presidente Hassan Rohani) para continuarem a defender o diálogo com o Ocidente.

“Após a retirada dos Estados Unidos do acordo [decisão de Donald Trump], surgiu no Irão uma espécie de fobia à cooperação internacional. Muitos pensam: ‘Mesmo que façamos um novo acordo, que garantias temos de que os outros países vão respeitar os compromissos?’ Por causa desse ceticismo nas elites políticas e na sociedade iraniana, creio que vai haver mais votos em candidatos da linha dura”, diz ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na Universidade do Minho que se dedica aos estudos do Médio Oriente.

“Os moderados procuram preservar o interesse nacional em negociações internacionais. Os conservadores acham que o interesse nacional só fica garantido quando se é poderoso em termos militares, defendem que o Irão só pode confiar em si próprio e que a autossuficiência é o mais importante. Por isso acho que as pessoas vão escolher um conservador, que não vai negociar de forma alguma.”

Ciente de que a eleição de um Presidente da linha dura será a sentença de morte para o acordo nuclear, um dos seus principais negociadores, o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano, Mohammad Javad Zarif, alertou esta semana: “O tempo está a esgotar-se para os americanos, tanto por causa do decreto do Parlamento [que obriga o Governo iraniano a endurecer a sua posição nuclear se as sanções não forem suavizadas até 21 de fevereiro] como devido à atmosfera eleitoral que se seguirá ao ano novo iraniano [celebrado a 21 de março].”

Só a Venezuela paga ao Irão

Depois de Biden se ter mostrado recetivo a um novo compromisso, Teerão e Washington hesitam em dar o primeiro passo. “O Irão diz que quem saiu da mesa da negociação primeiro tem de voltar à mesa da negociação primeiro”, diz o professor Eslami, invocando as palavras, há dias, do Líder Supremo do Irão, que detém o poder de decisão em matéria de política nuclear.

Os Estados Unidos “não têm direito a estabelecer condições. Quem tem direito a colocar condições à continuação do acordo é o Irão, porque o Irão cumpriu todos os seus compromissos desde o início”, disse o ayatollah Ali Khamenei. “Se querem que o Irão regresse aos seus compromissos, têm de levantar as sanções por completo.”

Face à perspetiva de recomeço, as partes querem maximizar ganhos. Para o Irão o interesse passa por vender petróleo e preservar a segurança, vendendo e comprando armas e equipamento militar. “O Irão perdeu oportunidades de vender petróleo, de ganhar dinheiro, por causa das sanções. Mesmo em tempos de pandemia, não conseguiu importar medicamentos”, diz Mohammad Eslami. “O Irão vendeu 7000 milhões de dólares [€5800 milhões] de petróleo à Coreia do Sul. O dinheiro está numa conta em Seul, mas o Irão não consegue mexer-lhe por causa das sanções. Há muitos países a reter dinheiro iraniano. Só a Venezuela está a pagar ao Irão.”

Esta semana, em entrevista à CBS, Biden defendeu que as sanções não serão levantadas enquanto o Irão não voltar aos níveis de enriquecimento de urânio a que está obrigado. O acordo nuclear prevê uma percentagem máxima de 3,67%, fasquia que o Irão começou a desrespeitar após a saída dos EUA — atualmente, enriquece a 20%.

“O interesse dos Estados Unidos, totalmente ligado ao de Israel, passa por controlar o Irão e parar o programa iraniano de mísseis balísticos de longo alcance”, diz o analista. “A força aérea do Irão é antiquada, o país não pode comprar carros de combate nem barcos de guerra, a única coisa com que se pode defender é o programa de mísseis balísticos. A doutrina militar iraniana depende muito deste programa, que significa dissuasão. O Irão não vai negociar a sua política de defesa.”

Governo Biden sensível ao tema

Na equipa governativa de Biden há vários nomes que, direta ou indiretamente, estiveram envolvidos na elaboração do acordo nuclear. O próprio Presidente e o secretário de Estado Antony Blinken eram, à época, vices dos cargos que agora ocupam. Há, pois, sensibilidade para o tema, mas nem o problema se resolve por decreto (como Biden resolveu o regresso do país ao Acordo de Paris) nem 2015 é 2021. Se a desconfiança mútua é constante desde a Revolução Islâmica de 1979, acentuou-se perigosamente com Trump.

“A saída dos Estados Unidos do acordo foi muito importante. Mas o principal ponto de viragem foi o assassínio do general Qasem Soleimani, que era um herói nacional, defendia o país e derrotou o Daesh”, conclui Eslami. “O povo iraniano não quer confiar nos Estados Unidos.”

SETE ANOS A (DES)CONFIAR

2015
A 14 de julho, Irão, EUA, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha assinam um acordo sobre o programa nuclear. Em troca do fim das sanções, o Irão aceita limitar o enriquecimento de urânio e inspeções internacionais

2016
EUA e UE levantam sanções, a 16 de janeiro. No dia seguinte Obama aprova sanções visando o programa de mísseis balísticos do Irão (não incluído no acordo)

2017
Trump chega à Casa Branca a 20 de janeiro. A 17 de maio confirma a renúncia às sanções ao Irão

2018
A 8 de maio os EUA retiram-se do acordo, repõem sanções e anunciam uma estratégia de “pressão máxima” sobre o Irão. Este aumenta os níveis
de enriquecimento de urânio

2019
Os EUA rotulam os Guardas da Revolução (corpo de elite do Irão) de organização terrorista, a 8 de abril. O Irão declara que as forças americanas no Médio Oriente passam a ser alvos

2020
Um drone dos EUA mata o general iraniano Qasem Soleimani, a 3 de janeiro, no Iraque. Cinco dias depois, o Irão bombardeia duas bases dos EUA

2021
Biden chega à Casa Branca com vontade de novo pacto com o Irão

(FOTO Mural anti-Estados Unidos no muro da antiga embaixada norte-americana em Teerão PHILLIP MAIWALD / WIKIMEDIA COMMONS

Artigo publicado no “Expresso”, a 12 de fevereiro de 2021

Revolução Islâmica faz 41 anos. A fórmula que Trump tentou com a Coreia do Norte resultará com o Irão?

Desde a instauração do regime dos “ayatollahs” em Teerão, no dia 11 de fevereiro de 1979, que a relação conturbada com os Estados Unidos tem sido uma constante. Mas se com Jimmy Carter na Casa Branca passou pelo seu período mais crítico, com Barack Obama esteve próximo de um entendimento. Com a sua estratégia de ameaçar para depois negociar, Donald Trump é uma incógnita, mais ainda em ano eleitoral

19 de setembro de 2017. Donald Trump discursa pela primeira vez nas Nações Unidas desde que é Presidente dos Estados Unidos e fica a curta distância de uma declaração de guerra. “Os EUA têm grande força e paciência, mas se forem forçados a defenderem-se ou aos seus aliados, não teremos escolha a não ser destruir totalmente a Coreia do Norte.”

8 de janeiro de 2020. Donald Trump fala à nação para anunciar a resposta dos EUA ao bombardeamento iraniano a duas bases norte-americanas no Iraque — a retaliação do Irão à morte do seu general mais importante, alvejado por um drone norte-americano. Anuncia mais sanções ao Irão e diz-se pronto… a negociar. “Temos todos de trabalhar em conjunto para fazermos um acordo com o Irão que torne o mundo um lugar mais seguro e pacífico. (…) um acordo que permita ao Irão crescer e prosperar e tirar proveito do seu enorme potencial inexplorado. O Irão pode ser um grande país.”

A facilidade com que Trump defende a via do diálogo a seguir a uma retórica de confronto levanta uma questão: tentará ele aplicar ao Irão a mesma estratégia que usou com a Coreia do Norte?

Em causa estão dois países incomparáveis. A Coreia do Norte tem 70 anos de vida e é governada, desde sempre, por uma mesma família. Quanto ao Irão é herdeiro da civilização persa, uma das mais antigas do mundo. “Na verdade, acho que a estratégia [de Trump] é a mesma nos dois casos”, diz ao Expresso Ignacio Álvarez-Ossorio, da Universidade Complutense de Madrid. “Primeiro, aplicar pressão máxima para tentar obter concessões do adversário. Segundo, renegociar o acordo [internacional sobre o programa nuclear iraniano, de 2015] em termos mais satisfatórios para os EUA.”

Durante a campanha eleitoral de 2016, Trump referiu-se ao acordo como “o pior possível”, ou não tivesse sido negociado pela Administração Obama, cujo legado Trump parece apostado em desfazer. Esta semana, na quarta-feira, escreveu no Twitter: “O primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, afirmou: ‘Devíamos substituir o acordo com o Irão pelo acordo Trump’. Eu concordo!”

“Obama foi o Presidente que melhor compreendeu que era mais inteligente incluir o Irão na solução, em vez de o acicatar como fonte do problema”, explica ao Expresso Germano Almeida, especialista de assuntos norte-americanos. “Terá sido o Presidente dos EUA que mais perto esteve de ser bem sucedido nas tentativas de dissuasão da tensão com o Irão”, com a assinatura do acordo internacional, que envolveu também Reino Unido, França, Alemanha, Rússia e China.

“A estratégia de aproximação de Obama não deve, no entanto, ser confundida com ingenuidade ou falta de identificação da ameaça. Mesmo durante essa presidência, o Irão foi sempre visto em Washington como um dos principais perigos à segurança nacional americana, nomeadamente pela perceção de que o programa nuclear desenvolvido pelo regime de Teerão tem mesmo uma intenção bélica — e hostil e não apenas preventiva e científica”, acrescenta Germano Almeida.

Momento de viragem

A Revolução Islâmica de 1979 foi o ponto de viragem numa relação, até então, de grande proximidade. O regime monárquico dos tempos da Guerra Fria era um sólido aliado dos EUA contra os soviéticos, mas a ascensão ao poder dos “ayatollahs” tudo mudou. Os EUA passaram a ser rotulados de “Grande Satã” e a tensão tomou a relação.

Na memória dos iranianos pesava ainda a participação da CIA no golpe de 1953 — que depôs o primeiro-ministro Mohammad Mosaddegh e colocou no poder o Xá Mohammad Reza Pahlavi — e também ‘aquele’ brinde de final de ano entre o monarca e Jimmy Carter, na “Paris do Médio Oriente”. Era 31 de dezembro de 1977 e, em Teerão, o 39º Presidente dos EUA brindava com o chefe de Estado persa à “ilha de estabilidade” que era o Irão numa das zonas mais conturbadas do mundo, “graças à grande liderança do Xá”.

As ruas iranianas não o sentiam de igual forma e, consumada a Revolução, a 11 de fevereiro de 1979, estudantes tomaram a embaixada dos EUA e mantiveram 52 reféns durante 444 dias. Esta crise, que contribuiu para a não reeleição de Carter, só terminou a 20 de janeiro de 1981, dia da tomada de posse de Ronald Reagan.

Carter e Obama, ambos democratas, representam os períodos mais críticos e de maior coexistência, respetivamente, entre EUA e Irão nos últimos 40 anos. Com republicanos na Casa Branca, predominou a tensão, com ênfase para as presidências de Ronald Reagan, que apoiou o Iraque na guerra contra o Irão (1980-88), e de George W. Bush, que colocou o Irão no “eixo do mal” que apoia o terrorismo internacional.

Como um dia afirmou o insuspeito Henry Kissinger, um ‘falcão’ da política norte-americana que foi secretário de Estado entre 1973 e 1977: “Existem poucas nações no mundo com as quais os EUA têm menos motivos para discutir e interesses mais compatíveis do que o Irão.” Porém, com Trump na Casa Branca, “quase todos os resultados são possíveis”, diz ao Expresso Nigel Bowles, da Universidade de Oxford. “A chave para ele tem sido, é e continuará a ser maximizar a possibilidade de ser reeleito em 2020. Ele calculará todas as iniciativas políticas por esse critério acima de todos os outros.”

(FOTO Mural na parede exterior da antiga embaixada dos Estados Unidos em Teerão NINARA / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 11 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui

Uma relação compatível que a Revolução complicou

Com os ayatollahs no poder, os EUA tornaram-se o Grande Satã. Obama foi quem esteve mais perto de alterar a relação

“Existem poucas nações no mundo com as quais os Estados Unidos tenham menos motivos para discutir e interesses mais compatíveis do que o Irão”, disse Henry Kissinger, um insuspeito ‘falcão’ que foi secretário de Estado dos EUA entre 1973 e 1977. Porém, os últimos 40 anos têm sido a antítese dessa realidade, com a predominância de momentos críticos que colocam todo o mundo em estado de alerta. O momento definidor dessa tensa relação foi a Revolução Islâmica de 1979.

JIMMY CARTER, Dem. (1977-1981)

No último dia de 1977, Carter está em Teerão e brinda com o xá à “ilha de estabilidade” que é o Irão. Os contestatários ao monarca registam. Consumada a Revolução Islâmica, estudantes invadem a embaixada dos EUA e mantêm reféns durante 444 dias. A crise contribui para a não reeleição de Carter.

RONALD REAGAN, Rep. (1981-1989)

Com a guerra Irão-Iraque em curso, os EUA ficam do lado do Iraque de Saddam Hussein. O apoio mantém-se após Bagdade atacar os iranianos com armas químicas. Data desta altura o escândalo Irão Contras, em que a CIA é acusada de facilitar o tráfico de armas para o Irão, apesar do embargo.

GEORGE BUSH, Rep. (1989-1993)

Os EUA premeiam o apoio do Irão na Guerra do Golfo — desencadeada para conter o Iraque, que invadira o Kuwait — e não se opõem a que o Banco Mundial aprove um empréstimo ao Irão.

BILL CLINTON, Dem. (1993-2001)

Considera de “esperançosa” a eleição do reformista Mohammad Khatami para Presidente do Irão, em 1997. Três anos depois, a secretária de Estado Madeleine Albright aborda o papel dos EUA no golpe de 1953 para colocar o xá no poder. Mas a relação não evolui.

GEORGE W. BUSH, Rep. (2001-2009)

Após os atentados de 11 de Setembro, inscreve o Irão no “eixo do mal” que apoia o terrorismo internacional, juntamente com Iraque e Coreia do Norte.

BARACK OBAMA, Dem. (2009-2017)

Dias depois de tomar posse, diz que os EUA estão dispostos a estender a mão ao Irão se este “abrir o punho”. A diplomacia desbrava caminho e em 2015 é assinado um acordo que coloca o programa nuclear iraniano sob controlo internacional.

DONALD TRUMP, Rep. (2017-…)

Leva uma semana no poder e decreta a proibição de entrada no país a cidadãos de sete países muçulmanos, Irão incluído. Na Arábia Saudita, destino da sua primeira viagem ao estrangeiro, responsabiliza o Irão pelo terrorismo global. Em 2018, retira os EUA do acordo nuclear e repõe as sanções.

TRAGÉDIA SUSPEITA

► Um avião comercial ucraniano que ligava Teerão a Kiev despenhou-se no Irão, quarta-feira, oito minutos depois de ter descolado da capital iraniana. O desastre aconteceu no dia do ataque iraniano a bases militares do Iraque que albergam tropas americanas

► Seguiam a bordo 176 pessoas, entre elas 63 canadianos. Ninguém sobreviveu

► O Governo canadiano afirmou ter informação de que o aparelho foi abatido por um míssil. Os EUA acreditam que o disparo possa ter sido “acidental”. “Alguém pode ter cometido um erro”, admitiu Trump

► O Irão, que diz estar “certo” de que não houve qualquer míssil envolvido na queda do avião, abriu as portas a investigadores internacionais. As agências de aviação dos EUA, Canadá e França enviaram representantes para Teerão

► A televisão americana CBS constatou no local da tragédia que pouco restava dos destroços do avião. O embaixador do Irão no Reino Unido considerou “absolutamente absurda” a ideia de ter havido bulldozers a remover partes da aeronave, apesar de haver fotos e vídeos que sugerem isso

(FOTO Pintura anti-americana no muro da antiga embaixada dos Estados Unidos em Teerão PHILLIP MAIWALD / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui ou aqui

Quatro dúvidas sobre o regresso da tensão máxima ao Médio Oriente

Há espaço para uma negociação? O acordo nuclear tem condições para sobreviver? Os EUA vão retirar as suas tropas do Iraque? O que ganham os EUA com tudo isto? Analistas ouvidos pelo Expresso anotam as interrogações pós-morte de Qasem Soleimani. A resposta vai sempre parar ao mesmo destinatário: Donald Trump

O mundo está de respiração suspensa à espera da prometida “vingança” do Irão ao assassínio do general Qasem Soleimani pelos Estados Unidos. Esta terça-feira, Ali Shamkhani, secretário do Conselho Supremo Nacional do Irão, disse que estão a ser avaliados 13 “cenários de retaliação”.

O militar ia a enterrar esta terça-feira, em Kerman (sul), a sua cidade natal, mas o funeral foi adiado por circunstâncias trágicas: pelo menos 32 pessoas morreram e 190 ficaram feridas numa debandada durante as exéquias participadas por muitos milhares de pessoas. Os iranianos choram a morte do comandante como que se de um familiar se tratasse e cerram fileiras em torno do regime dos ayatollas. A ameaça do regresso da guerra ao Médio Oriente atirou o preço do ouro para máximos e fez disparar o preço do petróleo. Um pouco por todo o mundo, multiplicam-se sinais de nervosismo e sobram interrogações.

Há espaço para negociação entre EUA e Irão?

Esta terça-feira, o ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros denunciou que lhe foi negado visto de entrada nos EUA para participar na reunião do Conselho de Segurança da ONU, agendada para quinta-feira, em Nova Iorque. “Receiam que alguém venha aos EUA e revele a realidade das coisas”, acusou Mohammad Javad Zarif.

O diálogo entre Washington e Teerão não se afigura fácil, mas a politóloga iraniana Ghoncheh Tazmini acredita que uma negociação ainda é possível, “mesmo no meio do rancor e da dor”, diz ao Expresso. “Um porta-voz do ministério dos Negócios Estrangeiros disse que a Administração Trump continua a ser bem vinda para se juntar Irão e ao E3+2 [França, Reino Unido, Alemanha, Rússia e China] à mesa das negociações. Mas isso implica, em primeiro lugar, suspender as sanções ao Irão, que provocam escassez de alimentos e remédios junto do povo (não do regime nem do Estado)”, diz a investigadora na Escola de Estudos Orientais e Africanos, da Universidade de Londres.

O acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano foi um sucesso da Administração Obama que Donald Trump reverteu, em maio de 2018, retirando os EUA desse compromisso. Em consequência, o Irão já adotou “medidas corretivas” ao acordo por cinco vezes, a últimas das quais esta semana ao anunciar que vai deixar de respeitar os limites relativamente ao enriquecimento de urânio.

O acordo nuclear tem condições para sobreviver?

Recordemos: Qasem Soleimani era o grande arquiteto das intervenções militares iranianas no Médio Oriente assentes em grupos xiitas como o Hezbollah libanês, os Huthis no Iémen, forças paramilitares na Síria e milícias armadas no Iraque, que visitava quando foi alvejado por um drone norte-americano, em Bagdade.

Os EUA vão retirar as suas tropas do Iraque?

Dezassete anos após terem invadido o Iraque, deposto o ditador Saddam Hussein (sunita) e possibilitado — pela via do voto popular — a ascensão ao poder da maioria xiita, os EUA receberam “guia de marcha” para regressarem a casa. No domingo, o Parlamento iraquiano aprovou uma resolução exigindo a saída das tropas estrangeiras do país.

Foi Barack Obama quem anunciou o fim da guerra e o regresso a casa das tropas de combate, que se concretizou em finais de 2011. Mas cerca de 5000 americanos estão ainda no Iraque, em funções sobretudo de assessoria, num ambiente cada vez mais hostil.

Horas após o assassínio do general, a NATO suspendeu a missão de treino das forças iraquianas. Na segunda-feira, em Bruxelas, a Aliança apelou à contenção e à diminuição da escalada. “Um novo conflito não será do interesse de ninguém”, alertou o secretário-geral Jens Stoltenberg. “O Irão deve abster-se de mais violência e provocações.”

Mas a tensão é inegável e, nos países com tropas destacadas no Iraque, o nervosismo é indisfarçável. A Alemanha anunciou que vai deslocar 30 dos seus 120 militares de Bagdade para a Jordânia e Kuwait. Os restantes 90 estão mais ‘protegidos’, na região curda (norte).

O que ganham os EUA com tudo isto?

Com os órgãos de informação saturados com notícias sobre o “impeachment” a Donald Trump e, agora, a tensão com o Irão, quase não se dá conta que as eleições primárias que irão escolher os candidatos às presidenciais de 3 de novembro começam em menos de um mês, no Iowa (3 de fevereiro).

Aos olhos de muitos norte-americanos, Trump poderá surgir como um líder corajoso e destemido, o melhor de todos para os defender, mas para o interesse nacional do país, o assassínio do general Soleimani pode ter sido um tiro no pé. “Colocam os EUA numa situação extremamente complicada no Iraque, já que se tratou de uma clara violação da soberania”, diz ao Expresso Ignacio Álvarez-Ossorio, professor na Universidade Complutense de Madrid. A confirmar-se a saída das tropas, “a morte de Soleimani não só não enfraqueceria a posição do Irão na região, como a fortaleceria. Os EUA podem ser a principal vítima de uma decisão claramente precipitada que pode ter o efeito oposto ao desejado.”

“A única tábua de salvação que os EUA têm para mitigar esta crise perigosa fabricada por Trump seria regressar aos termos do acordo nuclear”, realça Ghoncheh Tazmini. “Os iranianos e o mundo árabe xiita estão unidos, fervendo de raiva, rancor e tristeza. Os EUA não estão mais seguros hoje do que há uma semana. A missão suicida de Trump devia ser interrompida e, para mim, a única forma de isso acontecer é retomar o acordo.”

(FOTO Sepultura de Qasem Soleimani, no Cemitério dos Mártires de Kerman MOHAMMAD ALI MARIZAD / WIKIMPEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 7 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui

O ataque são as sanções, dizem os iranianos

A ameaça americana não aumentou a angústia do povo mas um ministro iraniano avisa que a haver guerra, ela não será curta

Estados Unidos e Irão estiveram, esta semana, a dez minutos de uma confrontação militar. Garantiu-o Donald Trump, que afirmou ter abortado um ataque iminente contra alvos iranianos em resposta ao abate de um drone americano.

Nas ruas de Teerão, a notícia não provocou especial ansiedade — não que, para os iranianos, a ameaça não seja credível, mas apenas porque… já estão habituados a viver sob tensão. “Nos últimos meses, apesar de a maioria dos iranianos viver sob grande pressão económica, sob tensões políticas e ameaças de uma guerra desencadeada pelos EUA, quando andamos na rua ou observamos os comportamentos das pessoas percebemos que não existe uma atmosfera própria de uma situação anormal ou de medo da guerra”, diz ao Expresso, da capital iraniana, Farzaneh Amirabdollahian, de 42 anos. “Mesmo nas redes sociais, as pessoas fazem piadas sobre as ameaças de Trump, o que mostra que não o levam muito a sério.”

A inimizade entre EUA e Irão tem sido uma constante desde a Revolução Islâmica de 1979. A partir de então não houve relações diplomáticas. O desanuviamento proporcionado pelo acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, em 2015, desapareceu com a entrada de Trump na Casa Branca. O Presidente retirou os EUA do acordo e repôs as sanções ao Irão. “Os EUA já começaram a guerra contra o povo iraniano ao intensificarem as sanções, mas nós vamos resistir e não desistimos”, diz a iraniana.

“É óbvio que no meu país ninguém quer a guerra. Já provámos esse gosto amargo nos anos 80.” O Irão diz ter tido mais de um milhão de mortos na guerra com o Iraque (1980-88). “Por isso, tentamos ser pacientes e tolerar o pesado fardo da pressão económica como resultado das sanções cruéis.” As últimas sanções aprovadas por Washington, anunciadas esta semana, visaram diretamente o ayatollah Ali Khamenei. “Impor sanções ao líder supremo, que emitiu uma fatwa [decreto] contra todas as formas de armas de destruição maciça, é um ataque direto à nação”, defendeu o porta-voz do Governo de Teerão, Ali Rabiei. “Esta medida aumentará a união do povo iraniano.”

“NAS REDES SOCIAIS, AS PESSOAS FAZEM PIADAS SOBRE AS AMEAÇAS DE TRUMP, O QUE MOSTRA QUE NÃO O LEVAM MUITO A SÉRIO”

Washington e Teerão dizem não querer a guerra, mas esse cenário domina a retórica das duas capitais. Quarta-feira, Trump aludiu a essa possibilidade: “Não falo de tropas no terreno. Digo apenas que se acontecer alguma coisa, não durará muito tempo.” Respondeu-lhe o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano: “Guerra curta com o Irão é uma ilusão.”

Os “B” que querem a guerra

Javad Zarif é um rosto moderado do regime dos ayatollahs e um dos artífices do acordo de 2015. No contexto atual, tem sido uma voz combativa das intenções de Trump e… da “equipa B”, que “despreza a diplomacia e está sedenta de guerra”: são eles Bolton, ‘Bibi’, Bin Salman e Bin Zayed.

Conselheiro de segurança nacional de Trump, o ultraconservador John Bolton é um dos grandes arquitetos da invasão ao Iraque de 2003 e um defensor da mudança de regime em Teerão. Entrou para a equipa de Trump em março de 2018, sem esconder ao que ia: em agosto de 2017, na publicação “National Review”, assinara o “Nas redes sociais, as pessoas fazem piadas sobre as ameaças de Trump, o que mostra que não o levam muito a sério” artigo “Como sair do acordo nuclear iraniano” — o que veio a acontecer em maio de 2018.

‘Bibi’ é a alcunha do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Se na terminologia do fundador da República Islâmica, o ayatollah Ruhollah Khomeini, os EUA são o “grande Satã”, Israel é o “pequeno Satã”. Outros “B” são os príncipes herdeiros da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos. O primeiro, Mohammad bin Salman, representa a maior monarquia árabe sunita do Médio Oriente, que tem como grande rival o Irão, República persa xiita. Já Mohammed bin Zayed Al Nahyan foi considerado por “o governante árabe mais poderoso” pelo jornal “The New York Times”.

“O mais importante é que o Irão nunca invadiu qualquer país e nunca o fará. Mas estará sempre preparado para defender a nação”, conclui Farzaneh.

(FOTO Pormenor de um mural antiamericano, num muro da antiga embaixada dos Estados Unidos em Teerão PHILLIP MAIWALD / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 29 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui