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Sem boicotes mas com danos

Os múltiplos apelos à não-participação no festival em Israel não tiveram eco junto dos participantes. Mas, fruto das discussões geradas, o país já não é visto da mesma forma

O Festival Eurovisão da Canção em Israel tem uma baixa anunciada por razões políticas: a Ucrânia. A ausência não decorre, porém, dos múltiplos apelos ao boicote feitos por ativistas da causa palestiniana. Simplesmente, a cantora escolhida para representar a Ucrânia recusou-se a cancelar concertos que tinha agendados… na Rússia, o que levou a televisão estatal ucraniana a cancelar a sua participação. Menos mediático e mobilizador do que o conflito israelo-palestiniano, o diferendo entre as ex-repúblicas soviéticas faz mais danos a um evento que Israel quer organizar sem mácula.

“Apesar de nenhum cantor ter desistido, em cada país houve apelos por parte do povo em geral e de músicos e antigos participantes do festival para que cancelassem a participação e se recusassem a dançar sobre as sepulturas de Al-Sheikh Muwannis, que foi alvo de limpeza étnica”, diz ao Expresso o ativista israelita Ronnie Barkan. Esta antiga aldeia palestiniana foi abandonada dois meses antes da guerra da independência (1948), por pressão de grupos armados judaicos. O Centro de Convenções de Telavive — que acolhe a Eurovisão entre terça-feira e sábado — fica sobre as ruínas da aldeia.

O israelita realça, entre as ações de pressão desenvolvidas sobre os concorrentes, a petição assinada por 8% da população da Islândia a pedir um boicote ao evento. Iniciativa no mesmo sentido na República da Irlanda foi apoiada pelo então presidente da Câmara de Dublin. Em Portugal, o apelo feito a Conan Osíris por Roger Waters (Pink Floyd) pôs o assunto na agenda noticiosa.

“A Eurovisão nunca foi uma plataforma para criar consciência política”, continua Barkan. “É vista, mesmo pela indústria musical, como mero espetáculo. Dito isto, é interessante notar que as movimentações e negociações em torno da Eurovisão de 2019 nada têm de apolítico. Tudo o que aconteceu desde a participação de Israel em Lisboa, no ano passado, foi assolado pelo apartheid israelita e pelos seus numerosos crimes contra o povo palestiniano. Isto inclui a celebração de Netta Barzilai, vencedora em 2018, ao mesmo tempo que Israel assassinava 61 civis no gueto de Gaza, horas antes, mas sem estragar a festa.”

“É cada vez mais claro que atuar hoje em Israel é análogo a atuar em Sun City antigamente”

Apesar das garantias dadas à União Europeia de Radiodifusão de que não condicionaria os vistos às ideias políticas dos visitantes, o Governo de Telavive fez saber esta semana, através de Emmanuel Nahshon, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que não hesitará em fechar a fronteira a “ativistas anti-Israel cujo único objetivo é perturbar o evento”.

Soft power musical

O Estado hebraico quer conter eventuais embaraços, mas o receio de que algum concorrente aproveite a sua atuação, em direto para milhões de telespectadores, para fazer uma declaração política e virar os holofotes para o drama palestiniano é real. Uma ameaça séria é a banda Hatari, que representa a Islândia. Crítica da realização do festival em Israel, afirmou numa entrevista, já em Telavive, que Israel é um Estado de “apartheid”. Afirma que o grupo vive uma situação “de conflito” por estar ali, naquele contexto. “Mas enquanto participantes temos o poder de abordar o absurdo de haver um concurso como este, fundado no espírito da unidade e da paz, num país marcado por conflitos e pela desunião.”

“Nunca é tarde para os participantes, cantores e fãs ganharem consciência e recusarem-se a conferir legitimidade a um regime supremacista e criminoso, através da sua participação”, comenta o ativista Barkan. “Alguns grupos podem querer expressar uma forma suave de divergência, o que é compreensível, mas não suficiente. É cada vez mais claro que atuar em Israel hoje é análogo a atuar em Sun City, na África do Sul, antigamente.”

Em Telavive, os primeiros ensaios foram “saudados” por 700 rockets lançados de Gaza

Sun City era um grande casino para brancos na África do Sul, nos anos do apartheid. Apesar do boicote cultural apoiado pela ONU, Frank Sinatra, Julio Iglesias ou os Queen, e mesmo negros como Ray Charles, Tina Turner e Dionne Warwick não resistiram aos cachês. Em 1985, quando foi gravado “We are the world”, contra a fome na Etiópia, outro coletivo de artistas deu voz a “I ain’t gonna play Sun City” (Não vou atuar em Sun City).

Com uma imagem cada vez mais associada à África do Sul racista, seja pela forma como segrega os palestinianos da Cisjordânia (sob ocupação militar e alvo de um projeto colonial) e da Faixa de Gaza (sujeitos a um bloqueio por terra, mar e ar) seja pelo tratamento que dá aos seus cidadãos de cultura árabe (cidadãos de segunda, sob certas leis), Israel busca em eventos como a Eurovisão montras para revelar normalidade.

“Considero a Eurovisão em Israel um instrumento de soft power”, diz ao Expresso o cientista político Joseph S. Nye, pai do conceito. “Soft power é a capacidade de se conseguir o que se quer através da atração, em detrimento da coação ou do pagamento. Na medida em que o evento torna Israel mais atrativo aos olhos de outros, isso melhora o seu soft power.”

Em Telavive, os primeiros ensaios foram “saudados” por uma chuva de 700 rockets lançados de Gaza, que mataram quatro israelitas. A Jihad Islâmica disse que a intenção é “impedir que o inimigo consiga montar qualquer festival que vise prejudicar a narrativa palestiniana”. Em Gaza, Haidar Eid é presença ativa nos protestos contra o asfixiante cerco israelita. O Expresso pergunta-lhe se está desiludido por não haver boicotes ao festival. “Nem por isso. Há outras conquistas”, diz. Envia uma imagem divulgada pela organização Jewish Voice for Peace com “cinco razões por que a Eurovisão é um flop”: bilhetes por vender, hotéis por esgotar, eventos alternativos em todo o mundo, milhares de assinaturas  em petições e recorde de artistas cientes de que atuar em Israel é aprovar o apartheid.

(IMAGEM Logotipo de uma  campanha internacional de apelo ao boicote da Eurovisão em Israel BDS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de maio de 2019