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Soros, pensos e compressas: as “armas” que condenaram Razan à morte

Razan al-Najjar foi alvejada a tiro por um militar israelita quando tentava socorrer palestinianos feridos nos protestos na Faixa de Gaza. Jovem, formada, corajosa e altruísta, é a prova de que mais do que punir quem se atreve a aproximar-se da sua fronteira, Israel quer minar o futuro da Palestina

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Um colete manchado com sangue. Nos bolsos, pacotes de compressas. “Isto [o colete] era a arma que a minha filha usava para lutar contra os sionistas. E isto [as compressas] eram as munições para essa arma. E aqui está a identificação dela para que possam ver se era terrorista ou não.”

Na hora de chorar a morte da filha, alvejada por um “sniper” israelita, Sabreen al-Najjar mostra as “armas” que a condenaram, num vídeo partilhado nas redes sociais, e deixa que a lucidez se sobreponha à emoção para denunciar o que se passa na Faixa de Gaza. “Os terroristas são os sionistas, que se vangloriam sobre direitos humanos e deixam-nos, aos palestinianos, sem direitos. Onde estão os direitos humanos? Nem este colete a salvou…”

Razan al-Najjar, uma paramédica de 21 anos, foi morta na passada sexta-feira, na Faixa de Gaza, junto à fronteira com Israel, atingida a tiro quando tentava prestar os primeiros socorros a um manifestante ferido, na área de Khuza’a, região de Khan Yunis (sul de Gaza). “Ela foi baleada no peito. A bala rasgou o colete branco estampado com o logótipo da Sociedade Médica de Socorro Palestiniana (PMRS) que a identificava como pessoal médico”, esclareceu, em comunicado, a organização onde Razan trabalhava como voluntária.

Testemunhas ouvidas pela Al-Jazeera relatam que tudo aconteceu quando Razan se aproximou da vedação com a intenção de resgatar um manifestante ferido, caído do lado de Israel, para onde passara após fazer um buraco na rede.

Rida, outra voluntária de 29 anos, ia com ela. Seguiam de braços no ar para mostrarem aos soldados israelitas que não constituíam qualquer perigo. “Assim que entrámos na cerca para recuperarmos os manifestantes, os israelitas lançaram gás na nossa direção. Depois, um atirador disparou uma única bala, que atingiu Razan.”

A morte da jovem não foi imediata. Assistida no local, foi levada para o Hospital Europeu de Gaza, onde acabaria por falecer. “Os fragmentos da bala feriram três outros membros da nossa equipa”, diz Rida. “Era muito claro quem éramos, dados os nossos uniformes, os nossos coletes e bolsas médicas. Não havia outros manifestantes à nossa volta, apenas nós.”

Desde o início da Grande Marcha do Regresso, a 30 de março, que Razan não falhou uma única sexta-feira, o dia dos protestos maiores, de que resultaram sempre mortos. Com esse ativismo, desafiou também estereótipos numa sociedade conservadora como a de Gaza que nem sempre vê com bons olhos o envolvimento das mulheres na vida pública. Num artigo publicado pelo site do Expresso, a 14 de maio, sobre palestinianas na linha da frente dos protestos em Gaza, Razan é uma das “guerreiras” retratadas. É ela quem surge na foto número 15, em dificuldades, após inalar gás tóxico.

Quarenta ambulâncias sob fogo

Razan al-Najjar é a 119ª vítima mortal da Grande Marcha. “No total, Israel feriu 245 paramédicos desde o fim de março, 29 dos quais com fogo real, e alvejou 40 ambulâncias. Atirar contra pessoal médico é um crime de guerra ao abrigo das Convenções de Genebra, tal como alvejar crianças, jornalistas e civis desarmados”, recordou, num comunicado, Mustafa Barghouti, presidente e fundador da PMRS, criada em 1979. “Exigimos uma resposta internacional imediata às violações israelitas ao direito humanitário em Gaza. Apelamos aos nossos amigos e parceiros internacionais que condenem publicamente o assassínio de Razan e que exijam que Israel seja responsabilizado pelos seus crimes ao abrigo do direito internacional.”

Barghouti é um médico e ativista palestiniano que concorreu como independente às eleições presidenciais de 9 de janeiro de 2005, as últimas realizadas. Obteve 19,8% dos votos — foi o segundo mais votado de sete candidatos —, perdendo apenas para Mahmud Abbas (62%). Faz o seu papel ao denunciar os abusos de Israel, mas a experiência política diz-lhe que dificilmente essa responsabilização se concretizará e que, o mais provável, é ouvir um rotundo silêncio.

No dia em que Razan al-Najjar caía morta, a defesa intransigente que os Estados Unidos fazem de Israel no Conselho de Segurança das Nações Unidas — e que, ao longo de décadas, tem comprometido administrações republicanas e democratas — ganhou contornos particularmente polémicos: num primeiro momento, os norte-americanos aplicaram o direito de veto a uma proposta de resolução de iniciativa do Kuwait apelando à “segurança e proteção das populações civis dos territórios palestinianos ocupados, incluindo a Faixa de Gaza”; em alternativa, avançaram com uma resolução exigindo o fim de “todas as ações violentas de provocação” por parte do Hamas e de outros grupos palestinianos, omitindo referências ao uso da força por parte de Israel e à necessidade de proteger os palestinianos. O texto recebeu um único voto favorável — o dos Estados Unidos.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 4 de junho de 2018, e republicado no “Expresso Diário”, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui

O dia em que os palestinianos choraram duas catástrofes

A história registará que um dos dias mais importantes para Israel coincidiu com mais um banho de sangue na Faixa de Gaza. Esta terça-feira, começaram a ser enterrados os 60 palestinianos mortos durante protestos junto à fronteira no dia do 70º aniversário do Estado judeu. Entre eles está um homem que tinha ficado sem pernas num bombardeamento israelita anterior

ILUSTRAÇÃO DE JOÃO CARLOS SANTOS

É assim há 70 anos. Ano após ano, os palestinianos vivem cada 15 de maio como um dia de luto, em memória da “Nakba”, a “catástrofe” que para eles significou a fundação do Estado de Israel e o êxodo de mais de 700 mil palestinianos das terras onde sempre viveram. Este ano, a catástrofe foi sentida duplamente.

Esta terça-feira, na Faixa de Gaza, começaram a ser enterrados os 60 palestinianos abatidos na véspera por atiradores israelitas posicionados no outro lado da fronteira, naquele que foi o dia mais sangrento desde a última guerra entre Israel e o Hamas, em 2014. Munidos com o mais sofisticado equipamento militar, tinham ordem para alvejar quem ousasse aproximar-se da fronteira para reclamar o que é seu — as terras ocupadas por Israel.

No outro território palestiniano, a Cisjordânia, a solidariedade manifestou-se sob a forma de uma greve geral que parou lojas e escolas. Em várias cidades, as sirenes tocaram durante 70 segundos para assinalar a “Nakba” e homenagear as vítimas.

Na segunda-feira, morreram 60, mas desde o início da Grande Marcha do Regresso, a 30 de março, que tombaram pelo menos 108 palestinianos. “Parece que qualquer um está sujeito a ser morto”, reagiu o porta-voz do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, Rupert Colville. “Não é aceitável que [Israel] diga: ‘Isto é o Hamas, por isso [a nossa reação] está bem’”, acrescentou. “Que ameaça representa um duplo amputado para quem está do outro lado de uma cerca altamente fortificada?”

O Conselho de Segurança das Nações Unidas reuniu-se, esta terça-feira, para debater a situação em Gaza, e escutou a embaixadora dos Estados Unidos defender o indefensável: “Nenhum país nesta sala agiria com mais moderação do que Israel”, afirmou Nikki Haley. Na segunda-feira, nos corredores da ONU, os norte-americanos saíram em defesa dos israelitas e bloquearam uma declaração que apelava a uma “investigação independente e transparente” às ações de Israel junto à fronteira.

Aos microfones da rádio, a ministra da Justiça, Ayelet Shaked — defensora da pena de morte e da amputação de direitos à população árabe de Israel em nome da maioria de judeus —, tranquilizou os israelitas dizendo que Israel não tem medo do Tribunal Internacional de Justiça de Haia. “As Forças de Defesa de Israel estão a atuar muito, muito bem, ao abrigo dos protocolos de uso de fogo real e dentro da lei e do direito.”

O governo israelita considera que os protestos junto à fronteira constituem um “estado de guerra” pelo que a lei humanitária internacional não se aplica.

O mais recente massacre na Faixa de Gaza motivou reações em todo o mundo, mas poucas ações. África do Sul e Turquia mandaram regressar os seus embaixadores em Telavive e expulsaram os diplomatas israelitas nos seus países. “Netanyahu é o primeiro-ministro de um Estado de apartheid… Tem o sangue dos palestinianos nas suas mãos”, acusou o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan.

Na Europa, a Bélgica convocou a embaixadora israelita no país para uma reunião, esta quarta-feira, no ministério dos Negócios Estrangeiros. Dos outros países ouviram-se as condenações vagas habituais. “Israel tem de respeitar o direito aos protestos pacíficos e o princípio da proporcionalidade no uso da força”, disse a chefe da diplomacia da União Europeia, Federica Mogherini. “França condena a violência”, disse a presidência. “Estamos preocupados com relatos de violência e perdas de vidas em Gaza”, reagiu o gabinete da primeira-ministra britânica.

“Chocada e profundamente preocupada”, a Alemanha disse que “Israel tem o direito a defender-se e a garantir a segurança da vedação [na fronteira] contra incursões violentas. Porém, deve aplicar-se o princípio da proporcionalidade.” O Governo português apelou “à contenção de todas as partes envolvidas, no sentido de pôr fim à violência”.

Portugal não se fez representar na inauguração da embaixada dos EUA, como a esmagadora maioria dos 28 Estados membros da UE. Entre os 32 países que assistiram à cerimónia, quatro europeus quebraram a unanimidade europeia: Áustria, Hungria, República Checa e Roménia.

Em Jerusalém, estiveram presentes também Angola e três países que, no rasto dos EUA, vão transferir as suas embaixadas de Telavive para Jerusalém: Guatemala, Paraguai e Honduras.

Esta terça-feira, o dia foi de ressaca também em Telavive. Ontem à noite, a capital de Israel recebeu em êxtase Netta Barzilai, a vencedora da Eurovisão que, acabada de chegar de Lisboa, subiu ao palco, apresentada pelo presidente da Câmara, Ron Huldai, e cantou “Toy” para dezenas de milhares de pessoas que encheram a Praça Rabin. A 70 quilómetros de distância, enquanto se choravam os mortos, crescia o ódio a Israel.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 15 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

A Guernica da Palestina

Planeados para durar 45 dias, os protestos na Faixa de Gaza vão a meio. O número de mortos não esmorece um protestos que os palestinianos consideram justo e moral

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Na Faixa de Gaza, a Grande Marcha do Regresso vai sensivelmente a meio caminho. Iniciados a 30 de março e com fim previsto para 15 de maio, os protestos massivos junto à fronteira com Israel pelo direito de retorno dos refugiados palestinianos às terras de onde foram expulsos após a criação do Estado judeu cumpriram, esta sexta-feira, a sua 22º jornada. Pelo caminho já tombaram mortos 37 palestinianos, quatro deles nos protestos desta sexta-feira.

Uma das vítimas é Yaser Murtaja, um fotojornalista de 31 anos. Morreu há uma semana, atingido a tiro por um “sniper” israelita quando se preparava para continuar a disparar… fotografias. Na cabeça tinha um capacete protetor e no corpo um colete que o identificava com a palavra “press”. “Foi abatido a sangue frio apenas porque segurava uma câmara, com a qual transmitia imagens para o mundo”, diz ao Expresso Asad Abu Sharkh, de 65 anos, professor universitário na área de Linguísticas e porta-voz da Grande Marcha. “São as ordens que eles têm do chefe de Estado-Maior, Gadi Eizenkot: atirar a matar contra quem se aproximar da cerca. Matar o maior número possível de palestinianos para intimidar. Sentem-se apoiados pela política de ‘dois pesos’ dos países ocidentais e estão protegidos pelo veto dos Estados Unidos” nas Nações Unidas.

Nascido em Ashkelon (atual território de Israel), Asad é um dos milhões de palestinianos que sonham com o regresso à terra onde nasceram. Um tio seu foi o último presidente da Câmara da cidade, até 1948, ano da criação de Israel. “Esta Marcha é um grito para o mundo exterior. Um apelo à comunidade internacional para que aplique as resoluções adotadas na ONU em defesa dos refugiados palestinianos” — como a resolução 194, sobre o direito de regresso e de repatriamento.

“Não podemos esperar mais, sentimo-nos desumanizados, perseguidos. Israel está a fazer uma guerra genocida contra o povo da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. Nega os nossos direitos e ignora as resoluções internacionais relativas à questão palestiniana. Intimida os palestinianos para forçá-los a abandonar as terras e traz judeus de todo o mundo para as ocupar. Isto é uma limpeza étnica.”

Asad Abu Sharkh, no uso da palavra, durante uma palestra sobre “formas de resistência popular”, numa das “tendas do regresso”, em Gaza HAIDAR EID

Os protestos em Gaza tornam-se notícia à sexta-feira — o “domingo” dos muçulmanos, dia em que estão mais disponíveis para ações de intervenção social, muitas vezes incentivados pela oração do meio-dia, nas mesquitas, a principal da semana. Mas a iniciativa “vive” durante toda a semana, especialmente no interior das tendas montadas próximo da fronteira.

Na quarta-feira, no interior de uma delas, Asad participou numa palestra intitulada “A Grande Marcha do Regresso e o Movimento BDS: Formas principais de resistência popular”. BDS significa “Boicote, Desinvestimento e Sanções” e alude a uma campanha internacional que visa isolar Israel a todos os níveis, sobretudo académico e cultural.

No dia seguinte, o movimento assinalaria uma vitória importante. Galardoada com o Prémio Genesis, que reconhece “pessoas extraordinárias que inspiram a próxima geração de judeus”, a atriz norte-americana e israelita Natalie Portman — nascida em Jerusalém, em 1981 — anunciou que não iria a Israel receber a distinção devido a “acontecimento recentes” no país. A cerimónia, marcada para junho, foi cancelada.

“Batalha” dos panfletos

Em antecipação a mais uma jornada forte de protestos, na quinta-feira, as Forças de Defesa de Israel (IDF) “bombardearam” Gaza com panfletos: “Residentes de Gaza: Vocês estão a participar em atos de violência. O Hamas usa-vos para os seus objetivos extremistas. As IDF estão preparadas para tudo”. A mensagem aconselhava os locais a não se aproximarem da cerca e a manterem-se “longe de terroristas que praticam atos de violência. As nossas forças de defesa farão tudo o que for necessário para travar qualquer ataque ou assalto”.

O Expresso perguntou a Asad Abu Sharkh se os manifestantes irão tentar derrubar a cerca. “Os palestinianos estão muito determinados em continuar com os protestos de forma pacífica, de forma pacífica”, repete, “sem violência”, realça, “usando meios e métodos legais nos termos do direito internacional e das resoluções da ONU”.

Os factos dizem que, desde o início da Grande Marcha, nenhum “rocket” foi disparado desde a Faixa de Gaza contra território israelita, como muitas vezes acontece em contextos de agitação.

Ao estilo de uma “guerra psicológica”, o Hamas divulgou panfletos em árabe e hebraico destinados aos israelitas: “Sionistas: Vocês não têm lugar na Palestina. Regressem ao lugar de onde vieram. Não respondam aos vossos líderes. Eles estão a enviar-vos para a morte”. A mensagem atravessou a fronteira em papagaios de papel.

Na quinta-feira, as chamadas “tendas do regresso” receberam ordem para avançar 50 metros no terreno, sentido da fronteira. A medida foi “uma mensagem de persistência por parte do nosso povo para o mundo de que estamos a movimentar-nos na direção dos nossos objetivos legítimos”, anunciou o comité organizador. As tendas estão agora entre 500 e 700 metros de distância de Israel.

Interior de uma “tenda do regresso”, montada próximo da fronteira, onde se assiste a uma conferencia sobre a questão palestiniana HAIDAR EID

Habitantes de um retângulo de território de 41 quilómetros de comprido por seis a doze de largura, cerca de dois milhões de pessoas vivem em Gaza ao estilo de “uma prisão a céu aberto”, diz Asad Abu Sharkh.

Se, no passado, Israel chegou a adotar uma política de assassinatos seletivos para “eliminar” alvos concretos — como o “sheikh” Ahmed Yassin, líder espiritual do Hamas, alvejado por um helicóptero da Força Aérea israelita na sua cadeira de rodas, em 2004 —, hoje a estratégia em Gaza passa por uma “punição coletiva”.

O bloqueio israelita e egípcio asfixia o território e condena a sua população ao desespero. O único posto de fronteira que permite a saída de pessoas de Gaza — Rafah, no sul, que dá para a Península do Sinai — tem estado quase sempre fechado: em 2016 abriu 42 dias e em 2017 apenas 36.

E, no domínio da política palestiniana, o interminável braço de ferro constante entre o Hamas (que controla a Faixa de Gaza) e a Fatah (a fação dominante na Autoridade Palestiniana) mina a tão desejada reconciliação nacional.

Nascido no campo de refugiados de Nusairat (centro da Faixa de Gaza), Haidar Eid cresceu sob ocupação israelita. A família é originária da aldeia de Zarnuqa, área de Ramla (centro de Israel), cidade com uma população predominante judia, mas onde ainda vive uma minoria de árabes. Na sua página no Facebook, Haidar tem como imagem principal a famosa pintura de Pablo Picasso que alude ao sofrimento humano em contexto de violência. Diz ao Expresso: “Gaza é a Guernica da Palestina”.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 20 de abril de 2018. Pode ser consultado aqui

O pior pesadelo de Israel

Depois dos “rockets” disparados contra território de Israel e dos ataques surpresa através de túneis, os palestinianos da Faixa de Gaza parecem apostados num novo método de confronto. Começou na passada sexta-feira e está planeado para durar mais seis semanas — até ao 70º aniversário de Israel

Uma onda gigante de protestos pacíficos cresce na direção do território de Israel ISMAIL ELBOZOM

É o pior dos pesadelos de Israel — hordas de palestinianos a caminho da fronteira, com a intenção de a derrubar, motivados pela ideia de recuperarem terras que outrora foram suas e que foram ocupadas por Israel quando da criação do estado judeu. Este pesadelo ganhou vida e está a acontecer na Faixa de Gaza. “Vai acontecer todos os dias. Às sextas-feiras, será o dia principal”, diz ao Expresso, desde Gaza, o fotógrafo Ahmed Salama, de 23 anos. “Os palestinianos vão usar um método novo. Vão tentar e tentar e tentar… Talvez na próxima sexta-feira consigam entrar. Não temos nada a perder. O bloqueio está a matar-nos lentamente.”

Depois de anos em que Gaza reagiu ao bloqueio por terra, mar e ar, imposto por Israel e pelo Egito, lançando “rockets” contra território israelita ou tentando surpreender o inimigo através de túneis escavados sob a fronteira, uma nova estratégia está a mobilizar os palestinianos daquele território: marchas volumosas e persistentes na direção da fronteira, “indiferentes” aos que tombam mortos pelo caminho.

“Há tendas em cinco posições principais ao longo da fronteira” de 65 quilómetros, diz Ahmed. Chamam-lhes “cidades de tendas” e começaram a erguer-se no início de março para acomodar os manifestantes, incluindo famílias inteiras, “no ponto seguro mais próximo da fronteira”, explicava então Ahmed Abu Ayesh, porta-voz do comité coordenador, garantindo que as Nações Unidas seriam notificadas dos protestos.

Na sexta-feira passada, dia da primeira grande investida, milhares de palestinianos seguiram desarmados. Muitos outros não, arremessando pedras, bombas incendiárias, pneus a arder e tentando destruir a fronteira e entrar em território de Israel.

Da resposta das forças de segurança israelitas resultaram 17 palestinianos mortos (Israel diz que tem registos de “atividades terroristas” de “pelo menos 10”) e 1479 feridos — 757 alvejados com fogo real, informou, no domingo, o Ministério palestiniano da Saúde. Os restantes foram atingidos por balas de borracha e inalaram gás lacrimogéneo, disparado a partir de pequenos drones, a mais recente inovação tecnológica ao serviço das tropas de Israel.

Mahmud Abbas, o presidente da Autoridade Palestiniana — que, no ano passado, para pressionar o rival Hamas, que controla Gaza, ordenou cortes de energia no território, obrigando a população a viver com quatro horas de luz —, apelou à intervenção urgente das Nações Unidas. Logo na sexta-feira, o secretário-geral da organização, António Guterres, pediu “uma investigação independente e transparente a estes incidentes”. O assunto foi a debate, com urgência, no Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas e sucumbiu às sensibilidades da geopolítica.

O Kuwait, o único país árabe atualmente representado no CS, apresentou uma proposta de declaração apelando a uma investigação à violência, no mesmo sentido das palavras de Guterres. Citado pela agência AFP, “um diplomata do CS” disse que os Estados Unidos — que têm o poder de veto naquele organismo — levantaram objeções e fizeram saber que não apoiariam a adoção do documento.

Em Israel, o ministro da defesa, Avigdor Lieberman, lançava combustível para a fogueira, rejeitando qualquer comissão de inquérito aos factos ocorridos junto à fronteira com Gaza e afirmando que os soldados israelitas ali em missão “merecem uma medalha”.

Festa de uns, lamento de outros

A “Marcha do Regresso” tem inerente todo um simbolismo ao qual nenhum palestiniano ou israelita é indiferente. Começou na sexta-feira, 30 de março, no tradicional “Dia da Terra” que assinala a morte, em 1976, no norte de Israel, de seis israelitas árabes, às mãos da polícia, durante protestos contra a expropriação de terras árabes por parte do Governo de Telavive.

Está planeada para terminar a 15 de maio, dia em que os palestinianos assinalam a “catástrofe” (“Nakba”), o início do atual problema dos refugiados quando mais de 700 mil palestinianos fugiram ou foram expulsos das suas terras na sequência da criação, nas Nações Unidas, do Estado de Israel (1948), e da guerra da Independência que se lhe seguiu.

Na véspera do aniversário da “Nakba”, Israel comemorará o seu 70º aniversário — este ano, antevê-se, de forma mais esfusiante do que o habitual, em virtude do “presente” dado pelo aliado norte-americano: a transferência da sua embaixada de Telavive para Jerusalém, prevista para coincidir com o aniversário.

Na sexta-feira, quando participava nos protestos, o líder do Hamas enunciou o objetivo: “O nosso povo não pode abdicar de um centímetro de terra da Palestina. Os protestos continuarão até que os palestinianos regressem às terras de onde foram expulsos há 70 anos”, declarou Yahya Sinwar.

O movimento islamita — que convocou estes protestos — controla a Faixa de Gaza desde há quase 12 anos. Desde então, Hamas e Israel já travaram três guerras, em 2008/09, 2012 e 2014. A próxima poderá estar já em curso — seis semanas de confrontos na fronteira, em que os palestinianos adivinham-se persistentes e os israelitas intransigentes. E se há garantia neste conflito é que em cada funeral de um palestiniano abatido por Israel — e vice-versa — a dor é acompanhada pelo desejo de vingança.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 2 de abril de 2018, e republicado no “Expresso Online”, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui

Mortes palestinianas aumentam durante o cessar-fogo

Alguns palestinianos não resistiram aos ferimentos, levando o número de mortos na Faixa de Gaza a superar a fasquia dos 2000. Mais de 500 são crianças

Os bombardeamentos israelitas pararam na Faixa de Gaza, mas o número de palestinianos mortos continua a subir. O Ministério palestiniano da Saúde informou, esta segunda-feira, que as vítimas mortais resultantes da última operação israelita no território são já 2016, após o falecimento de alguns feridos internados em hospitais de Gaza, Cairo e Jerusalém.

Entre os mortos, há 541 crianças, 250 mulheres e 96 idosos, detalhou o ministério. A troca de fogo entre as forças de segurança israelitas e o movimento islamita Hamas, que controla o território, provocou também 10.196 feridos.

Por seu lado, as autoridades israelitas confirmaram que durante a operação militar morreram 64 soldados, cinco dos quais na sequência de “fogo amigo”, ou seja, fogo disparado do lado de Israel. Foram mortos ainda três civis.

Presentemente, vigora na Faixa de Gaza uma trégua mediada pelo Egito, que expira à meia-noite (22h em Lisboa) de hoje. Mas prosseguem no Cairo negociações indiretas entre israelitas e palestinianos visando a obtenção de um cessar-fogo duradouro.

O levantamento do bloqueio ao território imposto por Israel e pelo Egito desde 2007 é a principal exigência do Hamas e também o principal obstáculo à celebração de um acordo.

Israel destrói casas de suspeitos

Na Cisjordânia, o outro território palestiniano, a tensão continua latente. Esta segunda-feira, Israel destruiu as casas de dois palestinianos suspeitos de terem participado no rapto e morte de três jovens judeus, em junho, perto de Hebron, crime que desencadeou a intervenção militar em Gaza. Ambos – Amir Abu Eisha e Husam al-Qawasmi – continuam a monte.

Segundo a agência palestiniana Ma’an, as forças israelitas chegaram durante a noite de domingo, ordenaram às famílias que abandonassem as casas, artilharam-nas com explosivos e detonaram-nas.

Esta é uma tática usada por Israel contra suspeitos de participação em atos terroristas, contestada por organizações de defesa dos Direitos Humanos que a consideram uma forma de “punição coletiva”, que castiga populações inocentes.

A casa de Marwan Qawasmi, um terceiro suspeito, foi selada com betão. Este está detido em Israel desde julho, acusado de ter ordenado aos outros dois o rapto dos três jovens judeus.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de agosto de 2014. Pode ser consultado aqui