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Dormir, trabalhar e brincar com os mortos por companhia

A pobreza e a saturação demográfica de Manila empurram famílias inteiras para dentro dos cemitérios da cidade. Vivem ali anos a fio, improvisando formas de sustento. O Dia de Todos os Santos, que se assinala esta sexta-feira, é uma oportunidade para ganharem um dinheiro extra e iludirem a profunda miséria em que vivem

Aquela que é para milhões de filipinos a sua última morada é também, para uns quantos milhares, a única casa possível. Em Manila, famílias inteiras vivem no interior de cemitérios públicos. Muitos ali nasceram, ali tiveram filhos e enterraram os pais. Sem condições para viverem na cidade, refugiam-se onde lhes é garantido teto de forma gratuita.

É o que acontece no Cemitério do Norte, um dos maiores e mais antigos da capital das Filipinas, onde jazem cerca de um milhão de pessoas, entre as quais personalidades históricas e celebridades. Inaugurado em 1904, é uma espécie de cidade dentro da cidade que se estende por 54 hectares (aproximadamente 54 campos de futebol) e onde se (sobre)vive sem saneamento, eletricidade e água potável.

A qualquer hora do dia, há colchões estendidos em cima de tumbas de mármore onde alguém dormita. Dentro de mausoléus, vê-se televisão com eletricidade desviada da rede pública. Os jazigos servem de mesa de refeições ou de tampo para jogos de tabuleiro, da preferência dos mais velhos. Os mais jovens jogam basquetebol nas ruas com cestos afixados em paredes com ossários. E há sempre alguém que toma banho ao ar livre, com água do balde tirada de um poço.

Nas ruas do cemitério, o lixo abunda, misturado com crânios e esqueletos abandonados a céu aberto e roupas rotas de cadáveres exumados ou à espera de serem incinerados.

Para as crianças — que recebem alguma instrução graças à generosidade de voluntários —, saltar de jazigo em jazigo é uma diversão indescritível. Indiferentes à chegada de mais um funeral — e são dezenas por dia, no Cemitério do Norte — convivem com a morte num registo chocante de grande banalidade.

Pressão demográfica

Viver no cemitério é o recurso possível para quem não tem meios para se aguentar na cidade. As Filipinas são um país de 110 milhões de habitantes onde, segundo o Banco Mundial, cerca de 22 milhões vivem abaixo do limiar nacional de pobreza. A capital, Manila, é uma das megacidades do mundo, com 12 milhões de habitantes: segundo o recenseamento de 2015, a cidade tem uma média de 71 mil habitantes por quilómetro quadrado.

Antiga colónia espanhola, as Filipinas são um país onde as tradições católicas são vividas com devoção e fervor, como acontece no Dia de Todos os Santos, que se assinala esta sexta-feira. Para quem vive nos cemitérios, estes rituais fúnebres são oportunidades para amealharem uns pesos extra e viverem os tempos que se seguem de forma mais desafogada.

Quem tem os seus ali enterrados quer ver os jazigos asseados e solicita os serviços de quem, morando nos cemitérios, tenta ganhar a vida a limpar túmulos, a cinzelar os nomes dos defuntos nas lápides de mármore, a trabalhar como pedreiros e coveiros, a ajudar a transportar caixões ou a vender flores e velas feitas com cera reciclada.

Esta “economia fúnebre” passa também por algum comércio voltado para os próprios moradores, como lojas de conveniência, cafés e karaokes. Há quem trabalhe na cidade e durma no cemitério. Todos sentir-se-ão esquecidos pelo “mundo lá fora”, mas tentam mentalizar-se que pelo menos ali conseguem viver.

E excetuando os dias em que há raides da polícia na perseguição a narcotraficantes e “zombis” — como o polémico Presidente das Filipinas, Rodrigo Duterre, chama aos toxicodependentes —, viver nos cemitérios é incomparavelmente mais calmo do que na confusão de Manila.

FOTOGALERIA

Brincadeiras na água dentro de um mausoléu, num cemitério de Manila MASSIMO RUMI / BARCROFT MEDIA / GETTY IMAGES
Vida e morte convivem no quotidiano de milhares de filipinos que vivem em cemitérios ARTUR WIDAK / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Crianças alegres, num triciclo que circula entre jazigos CHERYL RAVELO / REUTERS
Um casal apoia-se numa tumba, junto ao seu pequeno negócio ARTUR WIDAK / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Chegada de um funeral, junto a uma casa feita com blocos de cimento e chapas de zinco PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Nos cemitérios de Manila, não há escolas. A educação das crianças depende de voluntários CHERYL RAVELO / REUTERS
Hora de diversão dentro do Cemitério do Norte, em Manila EZRA ACAYAN / GETTY IMAGES
Partida de basket junto a uma parede com ossários EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Concentrados no jogo de bilhar, indiferentes ao que os rodeia NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGES
Roupas de moradores num cemitério de Manila MASSIMO RUMI / BARCROFT MEDIA / GETTY IMAGES
Uma residente põe a roupa a secar junto a um amontoado de jazigos TAKAHIRO YOSHIDA / GETTY IMAGES
Ossadas humanas num depósito de lixo NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGES
Qualquer sítio é bom para dormir, mesmo nos dias de maior afluência ao cemitério MOHD SAMSUL MOHD SAID / GETTY IMAGES
No Cemitério do Norte, há vida até no beco mais estreito MASSIMO RUMI / BARCROFT MEDIA / GETTY IMAGES
Crisóstomo não perde a fé, ainda que o espaço a que chama casa seja este pequeno cubículo PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Mural no cemitério público de Navotas, em Manila NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGES
As casas crescem por cima de filas de túmulos EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Qualquer sítio serve para conviver e tomar-se uma refeição EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
O conforto possível, no interior de um mausoléu, no Cemitério do Norte PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Não há tanque para lavar a roupa. Quanto à água, há que ir buscar ao poço CHERYL RAVELO / REUTERS
Uma loja de conveniência, dentro do Cemitério do Norte ARTUR WIDAK / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Basta uma bola e a brincadeira está garantida PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Jogos de tabuleiro, em cima de um túmulo, no Cemitério de Navotas NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGES
Sem parques infantis por perto, as crianças dão largas à imaginação possível EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Um banho rápido e de água fria, junto a um poço, num cemitério filipino ARTUR WIDAK / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Uma rua coberta de lixo, no Cemitério de Navotas NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGES
No Cemitério do Norte, um grupo de crianças estuda dentro de um mausoléu ARTUR WIDAK / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Tratando-se de crianças, nada dentro do cemitério fica por percorrer EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Esta família goza de alguma privacidade, dentro de um mausoléu JOHN JAVELLANA / REUTERS
Na falta de escorregas, as crianças improvisam EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Um cemitério que mais parece um bairro de lata NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGES
O colchão é uma chapa de zinco ondulada DONDI TAWATAO / GETTY IMAGES
Há quem nasça nos cemitérios de Manila EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES
Apesar de não haver serviço de eletricidade no cemitério, não faltam televisões ROMEO RANOCO / REUTERS
A curiosidade de quem vive no cemitério perante o ritual de quem visita a campa de um familiar EZRA ACAYAN / NURPHOTO / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui

Abu Sayyaf decapita mais um canadiano

A execução de um cidadão canadiano de 50 anos, cativo do grupo separatista filipino Abu Sayyaf desde há nove meses, relança a discussão à volta do pagamento de resgates a terroristas

As autoridades filipinas confirmaram, esta terça-feira, a decapitação de um canadiano que estava refém do grupo terrorista Abu Sayyaf há nove meses, na ilha de Sulu (sul). O grupo tinha ameaçado assassinar Robert Hall, de 50 anos, caso não fosse pago, até às 15 horas de segunda-feira (mais sete horas do que em Lisboa), um resgate no valor de 300 milhões de pesos (5,8 milhões de euros).

Nesse dia à noite, foi encontrada uma cabeça decepada junto à catedral da ilha de Jolo (sul). “A descoberta confirmou a decapitação brutal por parte do maléfico e criminoso Grupo Abu Sayyaf de uma vítima de rapto”, diz um comunicado militar, citado pela AFP.

Robert Hall tinha sido raptado a 21 de setembro, a bordo de um iate junto a um “resort” turístico da ilha de Samal, no sul, juntamente com a namorada (a filipina Marites Flor), um norueguês (Kjartan Sekkingstad, “manager” da estância) e outro canadiano. Este último, John Ridsdel, de 68 anos, foi degolado em abril passado, após um pedido de resgate não ter sido atendido pelas autoridades canadianas.

“Após a perda trágica de dois canadianos, quero reiterar que os raptos terroristas apenas alimentam mais violência e instabilidade”, reagiu o primeiro-ministro, Justin Trudeau. “O Canadá não vai ceder às suas táticas amedrontadoras e atitudes desprezíveis em relação ao sofrimento de outros. É precisamente por esta razão que o Governo do Canadá não vai nem pode pagar resgates por reféns de grupos terroristas, já que se o fizesse colocaria em perigo as vidas de mais canadianos.”

Estima-se que os quatro reféns tenham sido levados para a selva da ilha de Jolo, para onde as autoridades filipinas enviaram um forte dispositivo militar e policial para os tentar resgatar.

Segundo o Major Filemon Tan, porta-voz das forças de segurança no sul, os sequestradores têm conseguido escapar ilesos uma vez que gozam da cumplicidade da população carenciada. “Eles têm familiares na comunidade, que os alertam quando veem soldados nas imediações”, afirmou o militar à rádio DZMM.

O militar explicou ainda que as áreas de floresta, o terreno acidentado e as longas extensões de costa, que permitem que os terroristas se esquivem mar adentro quando se sentem apertados em terra, dificulta a perseguição aos terroristas.

Grupo pequeno mas muito violento

Fundado nos anos 90, o Grupo Abu Sayyaf — então associado e financiado pela Al-Qaeda de Osama bin Laden — luta pela criação de um Estado islâmico no sul das Filipinas, país de maioria católica. Nos últimos anos, algumas fações do grupo declararam fidelidade ao autodenominado Estado Islâmico (Daesh) e à liderança de Abu Bakr al-Baghdadi.

O grupo é pequeno, mas ativo e muito violento, recorrendo a ataques à bomba, extorsões, raptos e decapitações. Tem nos sequestros uma importante fonte de financiamento.

A 1 de maio passado, o grupo libertou 10 marinheiros indonésios, na ilha de Jolo, após cinco semanas em cativeiro. Habitualmente, as libertações têm implícito o pagamento de resgates. Hussin Amin, “mayor” de Jolo, afirmou então: “Se esta grande libertação aconteceu em troca de dinheiro, quem quer que tenha pago está a apoiar o Abu Sayyaf. Este dinheiro será usado para comprar mais armas de fogo e será utilizado como fundo de mobilização por parte destes criminosos”.

Segundo a Al-Jazeera, a violência associada ao Abu Sayyaf já provocou mais de 100 mil mortos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de junho de 2016. Pode ser consultado aqui