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Dia Internacional da Educação: Em Gaza, os livros são usados para acender fogueiras onde as pessoas cozinham e se aquecem

Na Faixa de Gaza, não há razões para celebrar o Dia Internacional da Educação, que se assinala esta sexta-feira. Escolas e universidades são alvos de guerra e, pelo segundo ano letivo consecutivo, não há aulas no território palestiniano. Asma Mustafa, uma professora de inglês que já se deslocou oito vezes, tenta contrariar as adversidades

Asma Mustafa é professora de inglês na Faixa de Gaza desde 2008 CORTESIA ASMA MUSTAFA

A guerra está a tornar a escola uma memória cada vez mais longínqua para centenas de milhares de jovens da Faixa de Gaza. Pelo segundo ano letivo consecutivo, não há aulas no território palestiniano.

A esmagadora maioria das escolas e universidades foram arrasadas e as que se aguentaram de pé deixaram de ser centros de estudo e transformaram-se em abrigos para deslocados.

Na ausência de educação formal, o conhecimento continua a transmitir-se graças a pessoas determinadas como Asma Mustafa. Esta professora de inglês de 38 anos, que até ao início da guerra trabalhava numa escola pública para raparigas, no norte de Gaza, desenvolveu uma iniciativa ao estilo de “primeiros socorros educativos”.

“A educação parou desde o 7 de Outubro e ninguém se preocupou mais com as crianças de Gaza. Fiquei muito inquieta pelo facto de os alunos ficarem sem aulas pelo segundo ano consecutivo. É algo muito difícil de aceitar para uma mãe e professora”, diz ao Expresso Asma Mustafa, mãe de duas meninas pequenas.

“Ao mesmo tempo, comecei a olhar à minha volta, nos abrigos e nos acampamentos de deslocados… As crianças estavam perdidas. Segui o meu coração e o meu dever, enquanto professora e mãe para com as crianças deslocadas que me rodeiam, e decidi tornar-me a escola delas”, partilha. “Assumi a responsabilidade de começar a ensiná-las de forma espontânea.”

A professora improvisa salas de aula em todos os locais para onde é deslocada
CORTESIA ASMA MUSTAFA

Cerca de um mês após o início da guerra, a professora empreendeu uma iniciativa educativa a que chamou “Uma História Por Dia”.

“Conto histórias às crianças, histórias com uma lição de vida ou uma mensagem. Histórias que lhes deem força e transmitam ensinamentos sobre a vida. Quero que essas histórias as levem a ter melhores comportamentos e a saber como solucionar problemas. Foco-me muito na resolução de problemas e nas competências para a vida.”

Além das histórias, Asma transmite-lhes conhecimentos básicos de inglês, árabe e matemática. Cria jogos, põe-nas a pintar e a desenhar, organiza atividades de grupo, dá-lhes dicas de higiene pessoal (quando doenças se espalham pelos acampamentos) e promove brincadeiras, para que as crianças façam alguma descarga emocional e lidem menos mal com a sua condição de deslocados.

“Às vezes, reúno-as à volta do meu leitor de MP3. Fico feliz quando elas saltam e começam a bater palmas. Sinto os seus batimentos cardíacos”, diz. Asma ensina-as a dançar a Dabkha, a dança tradicional palestiniana, inscrita, em 2023, na lista da UNESCO de Património Cultural Imaterial da Humanidade.

Tudo contribui para as ajudar a lidar com o trauma da guerra. “Elas ficam felizes por encontrar alguém que as possa ajudar, alguém que é líder, como um professor. Elas acreditam nos professores.”

As sessões são importantes para alhear as crianças do som das bombas, do zumbido dos drones, da omnipresença da guerra, dia e noite. Permitem também que convivam entre si, criem uma rotina e alimentem a esperança de que um dia possam voltar à escola.

CORTESIA ASMA MUSTAFA

“Nas sessões, também as escuto”, acrescenta a professora. “Os meus alunos estão cheios de histórias e, nas tendas, os pais não têm tempo para os ouvir”, ocupados que estão a arranjar meios de sobrevivência.

As próprias crianças não são poupadas às tarefas de emergência. As horas que deviam passar na escola, são usadas a procurar lenha para as fogueiras, a carregar jerricãs de água ou à espera de comida em pontos de distribuição.

Muitas ficaram órfãs e passam a ser ‘mãe ou pai’ de irmãos mais novos. São obrigadas a tornarem-se adultos à força.

As “turmas” de Asma são compostas por crianças que vivem nas tendas em redor da sua. À semelhança da esmagadora maioria dos habitantes de Gaza, também ela teve de fugir da casa onde vivia, no norte do território. Fala ao Expresso a partir do campo de refugiados de Nuseirat, no centro de Gaza.

“Já me desloquei por oito vezes: duas para abrigos e seis para tendas. Já me desloquei quatro vezes dentro da mesma zona humanitária, como lhe chama Israel”, diz. “Já testemunhei sete guerras antes desta, mas nunca antes tive de sair de casa, a não ser no dia 7 de outubro de 2023.”

CORTESIA ASMA MUSTAFA

A cada nova etapa rumo ao desconhecido, Asma leva, junto com os pertences, o material educativo que consegue arranjar, por vezes comprado a preços elevados. Chegada a um novo destino, monta “a sua escola”.

“A vida é miserável. Perdemos as casas, perdemos tudo. Agora, para cozinhar, usamos lenha, papéis, tudo o que se consegue arranjar. Povos do mundo, acordem, em Gaza cozinhamos com fogo! Os livros que havia em Gaza foram queimados para as pessoas fazerem fogueiras e poderem cozinhar alimentos”, alerta a professora.

“Mas o mais importante para mim é continuar com as crianças à minha volta. Enquanto for viva, irei ensinar, haja ou não quadro, giz, papel ou lápis. O professor é a escola. O professor é o livro. O professor é a caneta.”

Os números da destruição

Segundo o último relatório do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), com data de 14 de janeiro, este é, até ao momento, o impacto da guerra no sector da educação:

  • 658 mil alunos não têm educação formal;
  • 12.241 estudantes e 503 funcionários educativos, incluindo professores, foram mortos;
  • 88% dos edifícios escolares (496 de um total de 564) foram destruídos ou parcialmente danificados;
  • 51 edifícios universitários foram destruídos e 57 danificados.

A 18 de abril de 2024, 25 relatores especiais das Nações Unidas expressaram grande preocupação com o padrão dos ataques a escolas, universidades, professores e estudantes, o que parecia configurar, nas suas palavras, “a destruição sistémica do sistema educativo palestiniano”.

Israel sempre rejeitou as acusações, acusando o Hamas de usar os estabelecimentos de ensino para atividades terroristas e a população estudantil como refém.

CORTESIA ASMA MUSTAFA

Quaisquer que sejam as adversidades, e em Gaza são muitas, Asma Mustafa mantém um compromisso diário com a educação, por meio de métodos de ensino originais e inovadores.

No seu website, por exemplo, ela disponibiliza “45 estratégias inovadoras de ensino de inglês como língua estrangeira”. Nos tempos da pandemia de covid-19, promoveu a iniciativa “Teachers Behind Screens” (Professores atrás de ecrãs), para treinar professores para o ensino de forma virtual.

Com o projeto “I Believe I Can Fly” (Acredito que posso voar), pôs os alunos em contacto com dezenas de países. “As crianças não estão autorizadas a viajar devido ao cerco imposto a Gaza. Estão a perder a comunicação com todo o mundo.”

Em 2020, esta professora foi distinguida com o Global Teacher Award, atribuído pela organização privada indiana AKS (Alert Knowledge Services), que se dedica ao reconhecimento de “educadores excecionais pela eminência e eficácia do seu ensino, pela sua liderança especializada e pelo seu envolvimento com a comunidade”. Em 2022 foi considerada a melhor docente na Palestina.

Formada pela Universidade Islâmica de Gaza, Asma entrou para os quadros do Ministério da Educação em 2008, quando o Hamas já controlava o território.

“Dediquei-me a ensinar as crianças por meio de uma aprendizagem ativa. Quero ajudá-las a pensar de forma crítica e profunda e não apenas a receber informação dos professores, como acontecia comigo quando estudava. Achei que precisava de mudar o método tradicional com que recebi educação. Adoro ensinar com recurso a jogos e acredito nesse tipo de ensino. Quero que os cérebros dos meus alunos estejam frescos e capazes de pensar e repensar.”

CORTESIA ASMA MUSTAFA

O contexto em que se vive em Gaza nos últimos anos — sob bloqueio desde 2007 e, desde então, sob intensos bombardeamentos de Israel, por várias ocasiões —, condena as crianças e jovens a uma carência particular. “Há uma necessidade massiva dos alunos terem mais um amigo do que um professor”, diz Asma. “Decidi ser amiga deles. Em Gaza, as crianças acreditam nos professores.”

No ano em que Asma começou a trabalhar como professora, em 2008, Gaza passou por uma guerra com Israel. “Eu era jovem, tinha 21 anos e era muito próxima dos meus alunos. Após 21 dias de guerra, voltámos às escolas e foi pedido aos professores que se dedicassem à descarga emocional dos alunos. Jogamos, brincamos, deixamos as crianças fazer desenhos e contar as suas histórias para expressarem os sentimentos.”

A mesma tarefa parece agora ser mais difícil de concretizar. “Eu não esperava que a guerra durasse 15 meses. Ninguém esperava”, admite. Por todo o mundo, crises mostram que quanto mais tempo as crianças ficam fora da escola, maior é o risco de não regressarem.

Estima-se que, na Faixa de Gaza, mais de 40% da população tenha até 14 anos. Se continuarem privados de educação, um grande segmento da sociedade fica com o futuro em risco. “Deixar de estudar durante algum tempo torna-se um grande problema. Se a guerra continuar, também o futuro da Palestina ficará perdido.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

Cessar-fogo em Gaza e retaliação do Irão a Israel: as duas frentes de um jogo perigoso

As negociações com vista a um cessar-fogo na Faixa de Gaza, previstas para quinta-feira, são uma prova de fogo para o Irão: uma trégua pode fazer abortar o prometido ataque contra Israel, em retaliação pelo assassínio do líder do Hamas em Teerão. Em cima da mesa das conversações está um plano em três fases, apresentado por Joe Biden, que, pela primeira vez em dez meses de guerra, propõe uma “cessação permanente das hostilidades”

A região do Médio Oriente vive dias profundamente contraditórios em que tanto se fala de um iminente ataque do Irão contra Israel como de negociações com vista a um cessar-fogo na Faixa de Gaza. A verdade é que a conclusão do segundo processo — a trégua em Gaza — pode determinar a ocorrência do primeiro — a retaliação iraniana contra Israel.

Israel e o Hamas estão convocados para nova jornada de negociações indiretas, agendadas para esta quinta-feira. Sobre a mesa está um plano que, pela primeira vez, aborda uma “cessação permanente das hostilidades”, incluindo a retirada israelita de Gaza e a libertação dos reféns.

“Concordamos que não pode haver mais atrasos”, defenderam o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, o Presidente francês, Emmanuel Macron, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, numa declaração conjunta divulgada na segunda-feira.

A concretizarem-se, serão as primeiras negociações com Yahya Sinwar na liderança do Hamas, a partir dos túneis de Gaza. Até recentemente, o interlocutor era Ismail Haniyeh, exilado no Catar, que foi assassinado em Teerão, a 31 de julho, num atentado atribuído a Israel, embora não reivindicado pelo Estado hebraico.

Porquê negociar agora?

A guerra em Gaza dura há mais de dez meses, o território está cada vez mais inabitável, o número de mortos entre a população civil não cessa de aumentar e os reféns israelitas tardam em regressar a casa. Paralelamente, a região está cada vez mais perto de uma guerra generalizada.

Na semana passada, os mediadores Catar, Egito e Estados Unidos instaram Israel e o Hamas a retomarem as discussões, a 15 de agosto, no Cairo ou em Doha, para discussão de um “acordo-quadro” cuja finalização está presa “apenas pelos detalhes”.

“Não há mais tempo a perder nem desculpas de qualquer das partes para mais atrasos. É tempo de libertar os reféns, iniciar o cessar-fogo e aplicar este acordo”, defenderam os presidentes Joe Biden (Estados Unidos), Abdel Fattah el-Sisi (Egito) e o emir Tamim bin Hamad Al Thani (Catar), num comunicado conjunto de 8 de agosto.

Em cima da mesa está uma proposta apresentada pelo Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a 31 de maio, numa intervenção a partir da Casa Branca. “Depois de intensa diplomacia levada a cabo pela minha equipa e das minhas muitas conversas com os líderes de Israel, Catar, Egito e outros países do Médio Oriente, Israel apresentou uma nova proposta abrangente. É um roteiro para um cessar-fogo duradouro e para a libertação de todos os reféns. Esta proposta foi transmitida pelo Catar ao Hamas.”

A data das negociações poderá não ser inocente. Na próxima segunda-feira, nos Estados Unidos, arranca, em Chicago, a convenção do Partido Democrata que deverá confirmar o ticket Kamala Harris-Tim Walz na corrida à Casa Branca. Como ficou visível na recente visita a Washington do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, a questão palestiniana divide fortemente o Partido Democrata.

Um eventual acordo de cessar-fogo seria uma grande vitória para Biden e para a sua “diplomacia paciente”, como lhe chamou o jornal americano “The Washington Post”. O Presidente dos Estados Unidos tem tentado equilibrar o papel do seu país como pacificador do Médio Oriente, enquanto mantém apoio incondicional a Israel.

Que plano está na mesa do diálogo?

A proposta que israelitas e Hamas têm em mãos vai além das anteriores. Pela primeira vez, aborda um cenário de fim da guerra, uma “cessação permanente das hostilidades”, que inclui a retirada militar israelita completa da Faixa de Gaza e o regresso de todos os reféns vivos. Em concreto, prevê três fases.

FASE 1 — Decorreria durante seis semanas e passaria por um cessar-fogo “total e completo”, retirada das forças israelitas de “todas as zonas povoadas” da Faixa de Gaza, libertação de reféns – incluindo mulheres, idosos e feridos – em troca da libertação de centenas de prisioneiros palestinianos. Civis palestinianos seriam autorizados a regressar a casa “em todas as áreas de Gaza”, incluindo ao norte do território. Haveria um aumento da ajuda humanitária, com a previsão de 600 camiões a entrar diariamente em Gaza. Centenas de milhares de abrigos temporários seriam fornecidos pela comunidade internacional.

FASE 2 — Haveria uma troca de prisioneiros que permitiria a libertação dos restantes reféns vivos, incluindo os soldados do sexo masculino. As forças israelitas retirar-se-iam de Gaza e “desde que o Hamas cumpra os seus compromissos”, o cessar-fogo temporário evoluiria — “nas palavras da proposta israelita”, enfatizou Biden — para uma “cessação permanente das hostilidades”.

FASE 3 — Teria início um grande projeto de reconstrução de Gaza. Os restos de reféns mortos seriam devolvidos às famílias.

    Este plano foi confirmado pela resolução 2735 do Conselho de Segurança, a 10 de junho passado, com 14 votos a favor e abstenção da Rússia.

    Como reagiu o Hamas à proposta?

    A 2 de julho, o Hamas respondeu positivamente ao plano de cessar-fogo anunciado por Biden, abdicando da exigência que vinha fazendo no sentido de um cessar-fogo total e permanente antes de se comprometer com qualquer acordo. Passado mais de um mês, o grupo jiadista defende que as negociações previstas para esta semana devem ser retomadas com base na proposta apresentada por Biden e no ponto do seu ‘sim’ dado em julho.

    O Hamas receia que, assim que as negociações forem retomadas, Israel possa apresentar novas condições. O grupo palestiniano diz ter demonstrado flexibilidade, mas que Israel não revela seriedade na vontade de alcançar uma trégua. Estas dúvidas tornam a presença de uma delegação do Hamas incerta nas negociações desta semana.

    “O que obstrui o sucesso da última proposta é a ocupação israelita”, disse Jihad Taha, porta-voz do Hamas. “Preencher as restantes lacunas no acordo de cessar-fogo passa por exercer pressão real sobre o lado israelita, que estava, e ainda está, a praticar uma política de colocação de obstáculos no caminho do êxito de quaisquer esforços que levem ao fim da agressão.”

    Que defende Israel?

    Israel anuiu ao envio de uma equipa de negociadores às conversações desta semana. Mas no país, a resistência a um entendimento com o Hamas é forte, a começar pelo próprio primeiro-ministro, que sempre defendeu que não aceitaria um acordo que estipulasse o fim da guerra sem a derrota total do Hamas. “O objetivo é o regresso dos reféns e desenraizar o regime do Hamas em Gaza”, defende Netanyahu.

    Segundo um artigo publicado, esta terça-feira, pelo jornal americano “The New York Times”, documentos que detalham as mais recentes posições negociais revelam que “Israel foi menos flexível nas recentes negociações de cessar-fogo em Gaza” e que “fez cinco novas exigências”.

    Dois exemplos: Israel exigiu que as suas forças continuem a controlar a fronteira sul da Faixa de Gaza (o Corredor Philadelphi, junto ao Egito) e impôs restrições ao regresso de deslocados palestinianos à parte norte do território, o que não constava na proposta apresentada por Biden. Segundo a imprensa israelita, a introdução de novas exigências foi feita por Netanyahu. Na prática, contribuem para sabotar a proposta de cessar-fogo, o que originou um braço de ferro entre o primeiro-ministro e a sua equipa de negociadores.

    Na semana passada, o jornal digital israelita “The Times of Israel” descreveu discussões acaloradas entre responsáveis políticos e da área da segurança israelitas a propósito da proposta de cessar-fogo. “Altos funcionários, incluindo o ministro da Defesa, Yoav Gallant, e o chefe das FDI [Forças de Defesa de Israel], Herzi Halevi, terão dito […] ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu que a sua insistência em novos termos sabotaria o acordo de cessar-fogo e a libertação de reféns em negociação, levando o primeiro-ministro a afirmar que foi o Hamas, e não ele, a introduzir novas exigências”, relata a publicação.

    Outra altercação descrita por “The Times of Israel” envolveu o chefe da Mossad, que tem liderado as negociações por parte de Israel. David Barnea terá dito, numa reunião com o primeiro-ministro, que há um acordo pronto e que Israel deve aceitá-lo. “Você é fraco!”, terá gritado Netanyahu. “Não sabe como conduzir uma negociação difícil. Está a pôr palavras na minha boca. Em vez de pressionar o primeiro-ministro, pressione Sinwar.” Segundo o jornal, posteriormente, o gabinete do primeiro-ministro negou a afirmação.

    A imprensa israelita escreve que, além do líder da Mossad, são favoráveis a um acordo de cessar-fogo o chefe das FDI, Herzi Halevi, e Ronen Bar, chefe do Shin Bet, a agência interna de segurança de Israel. Para os três, dez meses de uma guerra intensa em Gaza infligiram danos suficientes à capacidade militar do Hamas.

    Outro crítico da atuação de Netanyahu no atual contexto é Benny Gantz, que abandonou o gabinete de guerra em junho em rota de colisão com o primeiro-ministro e que o acusa de dar prioridade à sobrevivência do seu governo em detrimento do resgate dos reféns. “A segurança de Israel durante a campanha mais difícil da sua história tornou-se vítima de caprichos políticos”, disse Gantz, veterano militar tornado político centrista.

    Há relação entre estas negociações e o esperado ataque do Irão a Israel?

    São, basicamente, duas faces de uma mesma moeda. Esta terça-feira, a agência Reuters avançou que “só um acordo de cessar-fogo em Gaza decorrente das negociações esperadas para esta semana impediria o Irão de retaliar diretamente contra Israel”. A convicção decorre de afirmações de “três altos funcionários iranianos”.

    Para o Irão, não retaliar o atentado que vitimou o líder do Hamas, em território iraniano, será admitir fraqueza. Haniyeh estava no Irão a convite do regime, assistira nesse dia à tomada de posse do Presidente Masoud Pezeshkian e ficara alojado numa casa controlada pelos Guardas da Revolução, onde foi morto. Teerão atribui o ataque a Israel.

    Por outro lado, o regime dos ayatollahs está consciente que esse atentado adicionou complexidade a quaisquer negociações com vista a um cessar-fogo em Gaza. Se o Irão retaliar sobre Israel, não só se arrisca a destruir as hipóteses de um cessar-fogo como potencia uma guerra alargada na região.

    Em Teerão, ações como o atentado que vitimou Haniyeh ou, noutra escala, bombardeamentos como o de sábado, que visou uma escola transformada em abrigo para deslocados, na cidade de Gaza, são “armadilhas” de Netanyahu para arrastar o Irão para uma guerra mais ampla, em especial à medida que aumenta a pressão para um cessar-fogo.

    As opções do Irão são limitadas. A aliança dos Estados Unidos com Israel dissuade a República Islâmica de avançar para ações maiores, diretamente ou por procuração. E a continuação dos combates em Gaza corre o risco de contaminar o Líbano e resultar numa derrota do Hezbollah, o aliado mais importante do Irão.

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de agosto de 2024. Pode ser consultado aqui

    Nações Unidas querem investigar valas comuns descobertas em Gaza

    Descoberta de centenas de corpos enterrados em dois dos maiores hospitais levanta novas suspeitas de crimes de guerra

    O horror na Faixa de Gaza parece não ter fim. Terça-feira, as Nações Unidas pediram “uma investigação clara, transparente e credível” às valas comuns descobertas em dois dos maiores hospitais no território palestiniano — o Al-Shifa, na cidade de Gaza (centro), e o Nasser, em Khan Yunis (sul). A descoberta foi possível após a retirada das tropas israelitas e a entrada no terreno de equipas da proteção civil palestiniana. “Dado o clima de impunidade prevalecente, isto deveria incluir investigadores internacionais”, defendeu o austríaco Volker Türk, alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos. “Os hospitais estão abrangidos por uma proteção muito especial ao abrigo do direito internacional humanitário. O assassínio intencional de civis, detidos e outras pessoas que estão ‘fora de combate’ é crime de guerra.”

    As duas unidades de saúde foram palco de operações de forças especiais de Israel, que acusa o Hamas de ocultar infraestruturas terroristas nos hospitais. A ONU fala de centenas de corpos “enterrados profundamente no solo e cobertos de resíduos” e outros “despidos e com as mãos amarradas”. No hospital Nasser, em Khan Yunis, foram recuperados 283 cadáveres.

    Jornalistas fazem falta

    As Forças de Defesa de Israel rejeitaram as alegações de enterros em massa e possíveis execuções dentro de hospitais. Admitiram ter matado e detido centenas de militantes do Hamas nos dois complexos hospitalares e ter procedido à exumação “seletiva” de cadáveres enterrados previamente pelos palestinianos, para tentar encontrar reféns levados pelos jiadistas a 7 de outubro. “Os exames foram feitos de forma cuidadosa e exclusivamente em locais onde os serviços de informação indicaram a possível presença de reféns, com base em dicas fornecidas por reféns previamente libertados. Foram realizados com respeito, mantendo a dignidade do falecido”, afirmou o exército israelita.

    Stéphane Dujarric, porta-voz do secretário-geral da ONU, António Guterres, realçou que a descoberta de valas comuns “é outra razão por que precisamos de um cessar-fogo” e de “maior acesso por parte dos [funcionários] humanitários”. Dujarric alertou ainda para o bloqueio à informação em relação ao que se passa em Gaza e que resulta numa deficiente cobertura noticiosa da guerra. “Precisamos de mais jornalistas com a possibilidade de fazer o seu trabalho em Gaza com segurança e contar os factos”, disse. A guerra já dura há mais de meio ano e parece estar longe do fim. Israel tem iminente uma ofensiva na zona de Rafah (sul), onde está concentrada a maioria da população do território.

    (FOTO Deslocação de populações em Gaza JABER JEHAD BADWAN / WIKIMEDIA COMMONS)

    Artigo publicado no “Expresso”, a 25 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

    EUA perderam a paciência e começaram a endurecer a relação com Israel: abstenção no Conselho de Segurança viabiliza exigência de cessar-fogo

    A posição dos Estados Unidos de apoio incondicional a Israel é cada vez mais insustentável entre os próprios norte-americanos. Depois de, na semana passada, o secretário de Estado Antony Blinken dizer que a ofensiva em Rafah seria “um erro”, este domingo a vice-Presidente Kamala Harris não descartou “consequências” se a investida for avante. Esta segunda-feira, a abstenção de Washington a uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que exige o cessar-fogo imediato em Gaza confirma uma mudança de posição em relação a Israel

    Com o mês do Ramadão a entrar na terceira semana, o Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas aprovou, esta segunda-feira, uma proposta de resolução com vista a uma trégua humanitária imediata na Faixa de Gaza, que contribua para aliviar o sofrimento da população durante o mês mais sagrado para os muçulmanos, que termina a 9 de abril.

    A resolução foi proposta pelos dez membros não permanentes do CS e tinha garantido, à partida, o apoio de dois dos cinco membros permanentes — a Federação Russa e a China. A votação foi inequívoca e também surpreendente: 14 votos a favor a uma abstenção, dos Estados Unidos, que assim optaram por não aplicar o poder de veto em defesa de Israel.

    O texto aprovado esta segunda-feira:

    “exige um cessar-fogo imediato durante o mês do Ramadão, respeitado por todas as partes, que leve a um cessar-fogo sustentável e duradouro, e também exige a libertação imediata e incondicional de todos os reféns.”

    Esta resolução segue-se a uma outra votada há três dias, proposta pelos Estados Unidos que foi vetada por Moscovo e Pequim. Essa iniciativa lançou uma nuvem sobre a relação — até agora à prova de bala — que os EUA mantêm, há décadas, com Israel. A votação desta segunda-feira confirma que Washington perdeu a paciência.

    O documento redigido pelos Estados Unidos, que foi a votos na sexta-feira, determinava “o imperativo de um cessar-fogo imediato e sustentado para proteger os civis de todos os lados”. O diploma recebeu 11 votos a favor, uma abstenção e a rejeição de três membros, entre os quais a Federação Russa e a China. Por terem poder de veto, Moscovo e Pequim fizeram prevalecer a sua posição e neutralizaram a vontade da maioria que aprovou a resolução.

    Nos corredores das Nações Unidas, circulava a ideia de que os Estados Unidos iam assumir uma rota de colisão com o aliado Israel e defender uma trégua nos combates. Na véspera da votação, um artigo no influente “The New York Times” realçava que a resolução continha “a linguagem mais forte que Washington usou até agora” e que era “uma aparente mudança do aliado mais próximo de Israel”.

    O diabo está nos detalhes

    Porém, “se lermos cuidadosamente a resolução proposta pelos Estados Unidos, ela não pede um cessar-fogo”, alerta ao Expresso Joel Beinin, professor emérito de História do Médio Oriente, na Universidade de Stanford (Califórnia, EUA).

    O texto era significativamente mais forte do que diplomas anteriores apoiados pelos norte-americanos, dizia que a trégua era importante, mas ficava aquém ao não exigi-la. E, contrariamente a resoluções anteriores vetadas pelos EUA que defendiam um cessar-fogo incondicional, esta ligava diretamente um cessar-fogo à libertação dos reféns israelitas.

    Da expectativa de uma posição dura em relação a Israel às críticas sobre a linguagem ambígua e complicada do texto da resolução, que mais parecia uma tentativa de agradar a todos, não ficou clara uma mudança substancial no apoio dos EUA a Israel — que a votação desta segunda-feira confirmou.

    Para Joel Beinin, os Estados Unidos tiveram duas grandes motivações para apresentar esta resolução. Por um lado, “as ações israelitas em Gaza são ultrajantes”. Por outro, “a opinião pública nos EUA é favorável a um cessar-fogo, ao fornecimento de ajuda humanitária a Gaza e à libertação dos reféns. O Presidente Biden corre o risco de perder as eleições de novembro se não tiver em conta que partes importantes da base do Partido Democrata se opõem à sua política relativa à guerra em Gaza”.

    Desde o ataque do Hamas de 7 de outubro, os EUA já vetaram três resoluções condenatórias de Israel. Desde a década de 1970, no Conselho de Segurança da ONU, os EUA têm sido um escudo protetor dos israelitas, tendo já usado a prerrogativa do veto 48 vezes em defesa de Israel, mais de metade das 85 vezes em que bloqueou resoluções. Isso tem valido a Washington o rótulo de cúmplice da impunidade de Israel face ao direito internacional.

    A resolução apresentada na sexta-feira indiciou uma vontade de mudança em linha com o crescente incómodo vocalizado por políticos norte-americanos em face da desproporcionalidade da guerra, do “pesadelo sem fim”, como o descreveu, este fim de semana, o secretário-geral da ONU, António Guterres, que esteve na fronteira entre Gaza e o Egito, e dos planos de guerra de Telavive, que passam por uma operação em Rafah, onde estão acantonados cerca de 1,5 milhões de palestinianos.

    A 14 de março, o líder da maioria democrata no Senado, Chuck Schumer, um judeu, proferiu um discurso apaixonado em que afirmou que Israel tem direito a defender-se, mas que “a forma como exerce esse direito é importante”. Schumer fez a apologia dos dois Estados como solução para o conflito, identificou a liderança do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu como parte do problema e defendeu que “novas eleições são a única forma de permitir um processo de tomada de decisão saudável e aberto sobre o futuro de Israel”.

    “Israel não poderá sobreviver se se tornar um pária”, acrescentou. “O apoio a Israel diminuiu em todo o mundo nos últimos meses, e esta tendência só irá piorar se o Governo israelita continuar a seguir o seu caminho atual.”

    Este domingo, a televisão norte-americana ABC divulgou uma entrevista à vice-Presidente dos EUA, Kamala Harris, que se mostrou incisiva em relação a Israel. “Temos sido claros em várias conversas e de todas as formas que qualquer grande operação militar em Rafah seria um grande erro”, defendeu. “Deixe-me dizer uma coisa: estudei os mapas. Não há lugar para aquelas pessoas irem.” A vice de Biden sugeriu mesmo que se a investida sobre Rafah for avante poderá haver “consequências” para Israel.

    “Claro que, a longo prazo, tudo isto pode ter impacto nas relações entre os Estados Unidos e Israel. Mas por enquanto, os EUA continuam a enviar armas para Israel”, comenta Joel Beinin.

    Os EUA são o principal fornecedor de armamento de Israel. E todos os anos, Washington desembolsa uma grande quantia em ajuda militar ao Estado judeu. Em 2023, a verba rondou os 3800 milhões de dólares (mais de 3500 milhões de euros). Atualmente, a Casa Branca está a trabalhar com o Congresso para garantir uma ajuda adicional de 14 mil milhões de dólares (quase 13 mil milhões de euros).

    Na passada sexta-feira, a congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez defendeu, num discurso na Câmara dos Representantes, que os EUA não podem continuar a “facilitar” matanças em Gaza como forma de honrar a sua aliança com Israel.

    “É chegado o momento de forçar o cumprimento da lei dos EUA e dos padrões de humanidade, e cumprir as nossas obrigações para com o povo americano de suspender a transferência de armas dos EUA para o Governo israelita, a fim de parar e prevenir novas atrocidades.”

    A 23 de dezembro de 2016, estava Barack Obama a viver os seus últimos dias na Casa Branca (com Donald Trump já eleito), os Estados Unidos fizeram história e abstiveram-se numa resolução do CS sobre os colonatos israelitas nos territórios palestinianos, que assim foi aprovada.

    resolução 2334 considera que os colonatos “não têm validade legal e constituem uma violação flagrante do direito internacional” e “exige que Israel cesse imediata e completamente todas as atividades dos colonatos no território palestiniano ocupado”.

    O primeiro-ministro de Israel disse que o país não iria obedecer. “Netanyahu já tinha destruído a sua relação com o Presidente Obama ao agir pelas suas costas e combinar com a liderança republicana do Congresso um discurso numa sessão conjunta do Congresso e por fazer lóbi contra o acordo nuclear com o Irão”, explica Joel Beinin.

    “Essa resolução foi, em parte, uma forma de ‘retribuição’. Não teve qualquer impacto porque o Conselho de Segurança não adotou qualquer mecanismo de aplicação, Obama estava em final de mandato e os EUA nada fizeram uma vez que a Administração Trump [que se seguiu] apoiou totalmente a expansão dos colonatos. Apesar dessa resolução, os laços EUA-Israel tornaram-se mais estreitos com Trump.”

    Oito anos depois, o mesmo Netanyahu continua a bater o pé ao amigo americano. Na quinta-feira, véspera da votação no Conselho de Segurança da resolução proposta pelos EUA, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, defendeu que uma incursão terrestre em Rafah seria “um erro”, algo “desnecessário” para derrotar o Hamas e que os EUA “não apoiam”.

    No dia seguinte, Blinken chegou a Israel pela oitava vez desde 7 de outubro. Reuniu-se com o gabinete de guerra do Governo israelita e ouviu de Netanyahu aquilo que não queria: “Eu disse-lhe que não seremos capazes de derrotar o Hamas sem entrar em Rafah e eliminar os batalhões restantes que lá estão”, afirmou o chefe do Governo israelita. “Eu disse-lhe que esperava fazê-lo com o apoio dos Estados Unidos, mas que, se for necessário, fá-lo-emos sozinhos.”

    (FOTO Sala do Conselho de Segurança das Nações Unidas WIKIMEDIA COMMONS)

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de março de 2024. Pode ser consultado aqui

    Morte, fome e destruição: Gaza é uma tragédia a céu aberto

    Responsáveis de organizações humanitárias internacionais com equipas na Faixa de Gaza relatam um horror sem fim naquele território palestiniano. E acusam Israel de obstrução deliberada dos esforços de assistência à população. “As consequências de um assalto total a Rafah são inimagináveis”, alerta Avril Benoit, diretora-executiva dos Médicos Sem Fronteiras

    “Moramos numa tenda de 15 metros quadrados. Obtemos água todos os dias, vamos encher garrafões a 500 metros de distância. Fazemos pão, porque nas padarias não há. Há carne, outros tipos de alimentos e enlatados que vêm da ajuda internacional”, conta o palestiniano Ahmed numa mensagem enviada ao Expresso. “Os legumes são escassos e ridiculamente caros. Cozinhamos no fogo por falta de gás. A eletricidade está cortada, claro. Há grande aglomeração de pessoas na cidade, muito lixo acumulado. Toda a gente está desempregada.”

    Antes da guerra, Ahmed vivia num apartamento na cidade de Gaza. Os bombardeamentos israelitas deixaram-no ao deus-dará, com a mulher e duas crianças. Agora vive num acampamento em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, onde estão refugiadas 1,5 milhões de pessoas.

    Rafah está em contagem decrescente para o início de uma grande ofensiva terrestre com que Israel espera deitar mão a Yahya Sinwar, o líder do Hamas. “As consequências de um assalto total a Rafah são inimagináveis”, alerta Avril Benoit, diretora-executiva dos Médicos Sem Fronteiras (MSF). “Uma das nossas médicas em Rafah disse que está a escrever os nomes dos filhos nos braços e pernas deles, para serem identificados se forem mortos.”

    Benoit, que participou numa conferência de imprensa virtual com representantes de organizações humanitárias presentes em Gaza, a que o Expresso assistiu, denuncia “os ataques repetidos e persistentes contra unidades de saúde” e descreve um filme de terror: profissionais de saúde mortos em bombardeamentos, pacientes que se recusam a sair dos hospitais com medo de serem mortos por snipers, outros em suporte vital que morrem devido a cortes na eletricidade, bancos de sangue vazios, cirurgias sem anestesia, reutilização de compressas, feridos com infeções graves. “Colegas em Gaza disseram que viram bebés cujas pernas tiveram de ser amputadas antes de aprenderem a andar.”

    As regras da guerra

    Jeremy Konyndyk, presidente da Refugees International, culpa Israel pela “ausência de qualquer processo humanitário de deconfliction”, prática normalizada, mas inexistente nesta guerra. “Muitas vezes, estabelece-se um canal de comunicação, facilitado pela ONU, entre os operadores humanitários e os militares que conduzem hostilidades em determinada área, para que as partes se vejam e os militares saibam onde estão as instalações humanitárias, quais são os movimentos das equipas, e evitem atingi-los.” Israel respeitou esta prática em 2006, na guerra com o Hezbollah.“Toda a negação de acesso à ajuda humanitária é um caminho muito rápido para a fome”, diz Konyndyk. “Se não houver uma operação humanitária significativa e autorizada a operar sem restrições em todo o território, a fome ocorrerá não devido a fenómenos naturais, mas pela forma como esta guerra está a ser conduzida e pelas recusas persistentes e intencionais do Governo israelita de dar acesso à assistência.”

    Sally Abi Khalil, da Oxfam, cita relatos de pessoas que se viram forçadas a comer ração para animais, e de mulheres que não conseguem produzir leite materno. “O uso que Israel faz da fome como arma de guerra tem sido incrivelmente eficaz. Os palestinianos estão à beira da fome.”

    Terça-feira, o Programa Alimentar Mundial suspendeu a distribuição de ajuda no norte da Faixa, depois de os seus camiões terem sido pilhados por gente desesperada.

    A contas com a justiça

    A 26 de janeiro, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ordenou a Israel que tome “medidas imediatas e eficazes para permitir a prestação de serviços básicos e assistência humanitária” a quem está urgentemente necessitado”. Dia 26, Israel será chamado a reportar de que forma tem correspondido.

    Florence Rigal, presidente dos Médicos do Mundo (MdM), defende que não só o Governo de Israel não parou com os bombardeamentos indiscriminados como a ajuda humanitária não aumentou. “A nossa capacidade de atuação em Gaza enquanto organização médica humanitária é muito baixa.”

    Um obstáculo é a dificuldade em fazer entrar ajuda no território, apesar de dezenas de camiões com comida, água e medicamentos estarem parados na fronteira com o Egito. Outro é a impossibilidade de fazer circular a ajuda dentro da Faixa de Gaza. “Bombardeamentos e atiradores furtivos põem todas as atividades em risco”, diz. Há duas semanas, a sede dos MdM foi destruída.

    (FOTO Destruição na área de El-Remal, na Faixa de Gaza, A 9 de outubro de 2023, após bombardeamentos de Israel WIKIMEDIA COMMONS)

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de fevereiro de 2024, e no “Expresso”, a 23 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui