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As dificuldades de Volodymyr Zelensky para alimentar o guião heroico da guerra

Falta de resultados rápidos na contraofensiva fragiliza narrativa “cinematográfica” do Presidente ucraniano

Dezoito meses passados desde o início da invasão russa, a Ucrânia enfrenta um drama particular dentro da tragédia maior que é a guerra. Com o passar do tempo, o cansaço relativamente ao tema tende a acentuar-se e os espaços informativos dedicam-lhe menos atenção. Mas para Kiev manter o assunto relevante é crucial para não ficar só.

O desafio está entregue em especial ao Presidente, um antigo comediante que com­preendeu, aos primeiros disparos russos, que a importância da comunicação estava ao nível das movimentações militares. “Volodymyr Zelensky percebeu que a Ucrânia só podia ter um combate minimamente equilibrado com a Rússia se conseguisse manter o conflito no topo da agenda político-mediática”, comenta ao Expresso Alexandre Guerra, profissional na área da comunicação e especialista em assuntos internacionais. “Ele sabia que a realidade da guerra, por si só, não chegava para mobilizar a opinião pública interna e a comunidade internacional.”

No espaço da antiga União Soviética duas contendas serviam de aviso a Zelensky. Primeiro, a guerra entre Rússia e Geórgia, em 2008, que culminou com o reconhecimento por parte de Moscovo da independência das repúblicas separatistas georgianas de Ossétia do Sul e Abecásia. E depois, em 2014, a invasão e anexação da península ucraniana da Crimeia, no que é considerado um preâmbulo da guerra atual.

Nos dois casos a agressão russa não suscitou reações práticas. “A realidade não foi sufi­ciente para os aliados europeus e americano se mobilizarem numa resposta perentória à Rússia”, diz o autor do livro “A Política e o Homem Pós-Humano”. “Zelensky tinha essa lição bem estudada. E, estando habituado a amplificar a realidade e até a recriá-la, sabia que teria de criar uma espécie de realidade aumentada da guerra.”

Série com três temporadas

“Por necessidade, e não por capricho”, Zelensky tornou-se realizador e a sua equipa de comunicação argumentista de um ‘guião cinematográfico’, criando heróis e exacerbando conquistas, tudo para tocar as pessoas. O que acontecia no terreno, e que Zelensky comentava em intervenções diárias, “ajudou a enaltecer os feitos como se fossem temporadas de uma série”, ilustra Guerra.

A frase “preciso de munições, não de uma boleia”, atribuída a Zelensky dois dias após a invasão, contribuiu para criar a lenda, sem que haja certeza de que ele a tenha efetivamente dito quando confrontado por uma oferta dos norte-americanos para o resgatar de Kiev. Seguiu-se “a resistência heroica de Kiev, um momento de uma enorme espetacularidade, em que ele não se poupou a puxar pelos feitos dos seus soldados”.

Ao estilo de uma segunda temporada, a reconquista de Kharkiv motivou o Presidente a fazer uma promessa épica: “A bandeira ucraniana retornará a todas as partes do nosso país. Como na região de Kharkiv [Nordeste], os guerreiros ucranianos encontrar-se-ão no Donbas [Leste], no Sul e na Crimeia. Vai acontecer”, disse após visitar a zona de Kharkiv.

“Zelensky sabia que as opiniões públicas internacionais gostam de uma boa história. A dada altura, o próprio começou a alimentar a expectativa de uma grande contraofensiva em múltiplas frentes” — uma terceira temporada da guerra —, “à imagem da II Guerra Mundial. Zelensky nunca escondeu ser muito inspirado por Churchill”.

Contraofensiva silenciosa

A ideia de uma reviravolta na guerra, a expensas da derrocada da Rússia, encaixava nas expectativas dos ucranianos e comprometia o Ocidente com Kiev. Entrou no argumentário de análise ao conflito, mas os resultados tardaram. No terreno, os militares ucranianos, cientes de que as conquistas não surgem por artes mágicas, começaram a fazer-se ouvir. A 30 de junho, ao jornal “The Washington Post”, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da Ucrânia, Valery Zaluzhny, realçava a capacidade militar da Rússia. “Não sentimos que a defesa deles tenha ficado mais fraca”, disse quando questionado sobre o possível impacto do motim do Grupo Wagner no esforço inimigo.

“A contraofensiva era um processo militar que estava em curso de forma lenta e gradual. O problema é que a história que Zelensky quis dar ao mundo era mais espetacular. E a dada altura a sua retórica hollywoodesca ficou muito desfasada da realidade no terreno”, diz Alexandre Guerra. “Os resultados militares não eram compatíveis com aquilo que Zelensky anunciava. E quando se começou a exigir ganhos rápidos, as chefias militares sentiram frustração.” (Ver texto ao lado.)

Este mês, Zelensky despediu os responsáveis de todos os centros de recrutamento militar do país, fragilizados por casos de suborno por parte de ucranianos que não queriam ir combater. Meses antes já tinha demitido de forma abrupta o chefe do Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU) e a procuradora-geral do Estado, alegando haver funcionários nesses órgãos a colaborar com a Rússia.

“A realidade que Zelensky criou, também a nível interno, passava pela ideia de cidadãos super-heróis, todos eles dispostos a ir para a linha da frente”, conclui Guerra. “Ora, a realidade nunca foi bem assim.”

Sem ser um líder consen­sual, o Presidente tem provado estar à altura do desafio. Deu ímpeto à resistência e injetou esperança no povo. Há dois meses disse à BBC: “Algumas pessoas acham que isto é um filme de Holly­wood e esperam resultados imediatos. Não é. O que está em jogo é a vida das pessoas.” Por breves momentos, Zelensky jogou à defesa.

SEIS MARCOS DA ESTRATÉGIA DE COMUNICAÇÃO DO PRESIDENTE DA UCRÂNIA

25/2/2022
No dia seguinte à invasão, num vídeo filmado numa rua de Kiev, era já noite, Zelensky mostra-se na companhia de responsáveis políticos. “Boa-noite a todos. O líder do partido está aqui, o chefe de gabinete do Presidente está aqui, o primeiro-ministro [Denys] Shmyhal está aqui, o [principal conselheiro da presidência, Mikhail] Podoliak está aqui, o Presidente está aqui. Estamos todos aqui.” O comandante assegurava que não abandonaria o barco.

1/3/2022
Zelensky intervém, de forma virtual, no Parlamento Europeu. Seria o primeiro de 42 discursos em Parlamentos estrangeiros: 35 por videoconferência (incluindo na Assembleia da República) e sete presencialmente.

3/4/2022
Numa mensagem gravada e transmitida durante a gala dos Prémios Grammy, Zelensky apela ao coração: “Os nossos músicos usam armaduras em vez de smokings.”

21/12/2022
Vai aos Estados Unidos, a primeira deslocação ao estrangeiro. No total, visitou 21 países desde o início da guerra. Foi três vezes à Polónia.

26/12/2022
É Pessoa do Ano da “Time”.

10/1/2023
Fala, por vídeo, nos Globos de Ouro. Em março, Hollywood rejeita ouvi-lo nos Óscares.

QUATRO ‘RALHETES’ AO PRESIDENTE

Contra ofensiva lenta
“Isto não é um show”
Com a contraofensiva nas notícias, a 30 de junho “The Washington Post” entrevista o chefe do Estado-Maior da Ucrânia, que admite que a operação segue ao ritmo possível, atendendo à forte defesa da Rússia. “Isto não é um show a que o mundo inteiro assiste e faz apostas”, disse Valery Zaluzhny. “Cada metro é conseguido com sangue.” O general mostra-se “irritado” com quem se diz frustrado com a falta de resultados. Nove dias antes, à BBC, Zelensky disse que os progressos eram “mais lentos do que o desejado”.

Adesão à NATO
“Não somos a Amazon”
Paralelamente aos pedidos de armas, Zelensky pugnou por adesões rápidas à União Europeia e à NATO. Mas na cimeira da Aliança Atlântica em Vílnius, a 11 e 12 de julho, ele surgiu como um homem só, após ‘levantar a voz’ no Twitter: “É inédito e absurdo que não seja definido um prazo nem para o convite nem para a adesão da Ucrânia.” O post não caiu bem junto dos aliados. O ministro britânico da Defesa verbalizou o que muitos mais terão pensado. “Já lhes tinha dito, no ano passado, quando viajei 11 horas [até Kiev] para receber uma lista [de armamento]… não somos a Amazon”, disse Ben Wallace. “As pessoas querem ver um pouco de gratidão.”

Defesa russa
“Queríamos resultados muito rápidos, mas…”
A 18 de julho, numa entrevista à BBC, Oleksandr Syrskyi, o comandante das forças armadas terrestres ucranianas que liderou a defesa de Kiev e foi o cérebro do contra-ataque em Kharkiv, disse: “Gostávamos de obter resultados muito rápidos, mas é praticamente impossível.” O general explicou que o Leste e o Sul do país estavam saturados com campos minados e barreiras defensivas colocadas pelos russos. São exemplos valas para tanques e fortificações “dentes de dragão”, que desaceleram o avanço dos blindados.

Solução política
“Outra saída é negociar”
Há uma semana, Mark Milley, líder do Estado-Maior conjunto dos EUA, juntou-se ao coro de altas patentes que alertam para uma contraofensiva “longa, lenta e muito sangrenta”. À televisão jordana Al-Mamlaka, o general realçou o complexo sistema defensivo russo e apontou outro caminho: “Derrotar militarmente 200 ou 300 mil soldados russos é muito difícil e desafiador. Outra saída para esta situação é através de negociações.”

(FOTO Volodymyr Zelensky, Presidente da Ucrânia PRESIDÊNCIA DA UCRÂNIA)

Artigo publicado no “Expresso”, a 1 de setembro de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Norte pressiona, mas Sul não isola a Rússia

INFOGRAFIA DE JAIME FIGUEIREDO

Sem sinais de trégua, a guerra da Ucrânia e a nova ordem mundial que está a originar têm levado a realinhamentos geopolíticos, qual movimento de placas tectónicas em contexto sísmico. A 10 de março, o anúncio de um acordo de normalização diplomática entre o Irão e a Arábia Saudita, mediado pela China, revelou quão dispensáveis são hoje os Estados Unidos no Médio Oriente. Na semana passada, a cimeira de Moscovo entre Xi Jinping e Vladimir Putin confirmou que, à parte os rótulos aplicados a essa relação, a China é cada vez menos neutra no conflito e a Rússia está longe do isolamento.

Um fórum onde é visível a resistência de grande parte do mundo à pressão ocidental é o grupo das 20 economias mais desenvolvidas do mundo. Há um mês, uma reunião do G20 em Bangalore (Índia) terminou sem acordo quanto a condenar a Rússia: os países ocidentais defendiam uma posição clara e grande parte dos restantes defendeu que o G20 não é um fórum político, mas de discussão de problemas económicos.

Sem serem antiocidentais, muitos países de África, Ásia e América Latina — o chamado Sul Global — têm posição híbrida relativamente ao conflito: criticam a invasão, mas mantêm o diálogo com Moscovo, nem que seja por razões práticas, como descontos na energia que importam.

A 23 de fevereiro, 52 Estados-membros da ONU não alinharam com a maioria de 141 que aprovou uma resolução na Assembleia-Geral a exigir a “retirada” russa da Ucrânia e o “fim das hostilidades”. A Namíbia absteve-se. “O nosso foco está na resolução do problema, não em atribuir culpas”, justificaria a primeira-ministra Saara Kuugongelwa-Amadhila, para quem os gastos com armamento “poderiam ser mais bem usados a promover o desenvolvimento na Ucrânia, em África, na Ásia, na própria Europa, onde muitas pessoas passam por dificuldades”.

Está marcada para 26 a 29 de julho, em São Petersburgo, a segunda cimeira Rússia-África. A primeira realizou-se em 2019, em Sochi, com a participação dos 54 Estados africanos, 43 ao nível de chefes de Estado. Então, em declarações ao jornal “The Moscow Times”, Albert Kofi Owusu, diretor da agência noticiosa do Gana, partilhou a sua experiência de colaboração com a Rússia e o Ocidente. “Com a ajuda ocidental, há todo um conjunto de condições. Dizem: se querem este dinheiro, têm de fazer determinada coisa em relação aos LGBTQ, por exemplo, mesmo que vá contra os valores do país. China e Rússia dizem: ‘Aqui está o dinheiro’.”

AS RAZÕES DE ÁFRICA

1 Memória e sentimento de gratidão relativamente ao apoio dado pela União Soviética, ao longo de décadas, aos movimentos de libertação nacional. São exemplos o ANC (África do Sul) e o MPLA (Angola).

2 Dependência africana relativamente à Rússia no que respeita à importação de cereais e, cada vez mais, a recursos energéticos.​

3 A Rússia é o maior fornecedor de armas a África. Há também presença crescente de organizações privadas de segurança, como o Grupo Wagner (de origem russa), em apoio de “guardas pretorianas” presidenciais.

4 Ausência de África nos lugares permanentes do Conselho de Segurança da ONU. A Rússia defende a reforma do órgão para acomodar países de África, Ásia e América Latina.

AMÉRICA LATINA NÃO QUER SER ‘O QUINTAL’ DOS ESTADOS UNIDOS

IDEOLOGIA
Bolivarianos Cuba, Nicarágua e Venezuela estão ao lado do Kremlin desde a primeira hora. Identificam-se com o modelo autoritário de Putin e reproduzem a narrativa de que a Rússia foi provocada pelo Ocidente/NATO.

ECONOMIA
Negociantes Brasil, México e Argentina, as maiores economias regionais, não percecionam a Rússia como ameaça. No Brasil, o comércio bilateral é significativo — a Rússia é o maior fornecedor de fertilizantes. No Palácio do Planalto, a política relativa à Rússia não mudou após Lula suceder a Bolsonaro.

GEOPOLÍTICA
Aliados Muitos países têm relações diplomáticas históricas com a Rússia, ao ponto de a verem como parceiro geopolítico crucial. Exemplo: na pandemia, a vacina russa Sputnik V foi a primeira a ser usada na Argentina, Bolívia, Venezuela, Paraguai e Nicarágua.

VIZINHANÇA
Anti-imperialismo 
Coloquialmente conhecida como “pátio traseiro dos Estados Unidos”, a América Latina olha para norte com histórico receio em relação ao que dali possa vir. Neste contexto, Moscovo é vista como velha antagonista de Washington.

ORIENTE CONTA COM A RÚSSIA

Organização do Tratado de Segurança Coletiva
Aliança militar criada em 2002, é composta por seis ex-repúblicas soviéticas: Arménia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão, além da Rússia. Procura replicar o modelo da NATO.

Organização de Cooperação de Xangai
Fundada em 2001, tem carácter político, económico e militar. Engloba oito países da Eurásia: China, Índia, Rússia, Paquistão, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Usbequistão. Irão já iniciou o processo de adesão.

União Económica Eurasiática
Organização de integração económica regional, prevê livre circulação de “bens, serviços, capitais e trabalho”. Os membros são: Arménia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Rússia. Entrou em vigor em 2015.

Comunidade de Estados Independentes
Organização de cooperação, resultou do desmembramento da União Soviética. Das 15 antigas repúblicas soviéticas, só quatro não são membros: os bálticos (Estónia, Letónia, Lituânia) e a Geórgia.

ALERTAS

“Temos de reequilibrar a nossa ordem global, torná-la mais inclusiva. Estou muito impressionado com o quanto estamos a perder a confiança do Sul Global”
Emmanuel Macron, Presidente de França

“Acho que a Rússia cometeu um erro crasso ao invadir o território de outro país. Mas quando um não quer, dois não brigam. Precisamos encontrar a paz”
Lula da Silva, Presidente do Brasil

“A situação no mundo muda de forma dinâmica. Estão a formar-se os contornos de um mundo multipolar”
Vladimir Putin, Presidente da Federação Russa

EDUCAÇÃO

27 mil
estudantes africanos frequentam universidades e instituições científicas na Rússia, segundo estatísticas de Moscovo de 2021. Em 2008 eram 9 mil. A formação de elites africanas foi um dos pilares da cooperação entre África e a União Soviética: estima-se que cerca de 60 mil africanos tenham estudado na URSS entre 1949 e 1991

HÁ MAIS DE UMA DÚZIA DE PAÍSES QUE QUEREM ADERIR AO GRUPO DOS BRICS

Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (conhecidos pelo acrónimo BRICS) representam um quarto da superfície terrestre e 40% da população mundial. Estas economias emergentes começaram a realizar cimeiras anuais em 2009 (a África do Sul só a partir de 2010), vivia o mundo uma crise financeira. Os BRICS são considerados o principal bloco rival do G7, que agrupa as economias mais avançadas. “O interesse nesta associação global é bastante alto e continua a crescer. Não só Argélia, Argentina e Irão, na verdade, são mais de uma dúzia de países”, disse recentemente o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov. A cimeira deste ano, de 22 a 24 de agosto, em Durban, terá interesse acrescido: a África do Sul é membro do Tribunal Penal Internacional, que emitiu um mandado de detenção para Vladimir Putin.

TRÊS PERGUNTAS A

Pedro Ponte e Sousa
Professor na Universidade Portucalense

Qual a estratégia da Rússia?
A Rússia tem procurado expandir as suas relações económicas, políticas e militares com o conjunto do mundo não Ocidental ou do Sul Global. Já vinha a fazê-lo antes da invasão, mas intensificou essa estratégia para contrariar os custos da guerra, bem como as sanções económicas do Ocidente.

Como reagiu o Sul Global?
Não adotou nem deverá adotar sanções económicas à Rússia. Nem é certo que aqueles do Sul Global que são membros do Tribunal Penal Internacional se comprometam a deter Vladimir Putin. O fundamento assenta numa separação entre a condenação política, que é evidente, e o uso de ferramentas económicas para transformar o comportamento político do outro ou, como parece pretender o Ocidente, para ‘punir’ a Rússia. O Sul Global salienta que as sanções económicas — mesmo as das últimas décadas (smart sanctions), dirigidas aos atores responsáveis pela guerra — continuam a ter impacto desproporcional sobre os mais pobres e dão um free pass aos líderes políticos.

As sanções funcionam?
Sim e não. Os impactos macroeconómicos são inegáveis. Contudo, o objetivo das sanções económicas não deveria ser ‘punir’ o outro, mas ajudar a transformar o seu comportamento político. E não só as sanções não estão a funcionar com a Rússia como a investigação científica demonstra que raramente funcionam. São uma ótima forma de quem as impõe mostrar que faz alguma coisa, e dar uma imagem de força, mas não há especiais indícios de eficácia. A solução tem sido aumentar a escala e âmbito das sanções e apontar para o longo prazo. Mas tem servido para cortar mais as relações com a Rússia, atirá-la para os braços da China e diversificar as suas relações, bem como aprofundar a mentalidade de Guerra Fria II (Ocidente versus Rússia e China) entre os decisores políticos.

Artigo publicado no “Expresso”, a 31 de março de 2023. Pode ser consultado aqui

UE mostra as garras à Rússia: “Quando um membro permanente inicia uma guerra não provocada devia ser suspenso do Conselho de Segurança”

O quarto dia de discursos na Assembleia Geral das Nações Unidas ficou marcado por um violento discurso do presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, contra a Rússia. A braços com outra “guerra”, o primeiro-ministro do Paquistão descreveu, de forma emocionada, as consequências de “inundações bíblicas” no seu país. E um “oásis” chamado Timor-Leste agradeceu expressamente a dois países a assistência prestada ao sector da saúde

Os grandes desafios do mundo não olham a antiguidade. Esta sexta-feira, na Assembleia Geral das Nações Unidas, o jovem Timor-Leste, que é independente e membro da ONU há apenas 20 anos, expressou receios ao nível das maiores preocupações dos veteranos da mais universal das organizações, fundada há quase 80 anos.

“Como quase todos os países do planeta, Timor-Leste sofre várias catástrofes decorrentes das alterações climáticas — períodos de seca prolongada, seguida de inundações —, a pandemia de covid-19 e agora o impacto económico global resultante do confronto Rússia-Ucrânia-NATO”, afirmou o Presidente do país.

Reeleito há cinco meses, José Ramos-Horta particularizou um agradecimento especial a dois países que considerou fundamentais para minimizar o impacto de algumas destas crises, designadamente ao nível da saúde pública.

À Austrália, que “provou ser uma verdadeira vizinha irmã”, Ramos-Horta agradeceu “a pronta assistência ao nosso frágil sistema de saúde”, com o envio de pessoal médico, ventiladores e equipamentos de intubação e formação a timorenses. “Quando a vacina ficou disponível, a Austrália forneceu-nos para além das nossas necessidades.”

“Rússia, Ucrânia e NATO têm de engolir o orgulho”

O outro país elogiado foi Cuba. “À época da independência, há 20 anos, nós tínhamos 20 médicos, hoje temos mais de 1200 para uma população de 1,5 milhões. Isto não teria sido alcançado sem a solidariedade cubana.” Então, “a esperança [média] de vida era inferior a 60 anos, agora uma mulher timorense pode esperar viver para além dos 71 anos de idade.”

Ramos-Horta descreveu Timor-Leste — que, no próximo ano, espera dar um passo importante na sua robustez enquanto país aderindo à Organização Mundial do Comércio — como “um oásis de tranquilidade”, “num mundo atormentado por conflitos e catástrofes provocadas pelo homem, de Mianmar ao Afeganistão, do Iémen à Ucrânia”. 

“Rússia, Ucrânia e países da NATO têm de engolir o orgulho, rever as políticas passadas que levaram a este suicídio mútuo, afastar-se das fronteiras uns dos outros.”

José Ramos-Horta
Presidente de Timor-Leste

Timor-Leste aderiu às Nações Unidas em 2002, no mesmo ano que se tornou independente. Depois, a ONU só abriu portas mais duas vezes: em 2006 para acolher o Montenegro e em 2011 para entrar o Sudão do Sul, colocando em 193 o número de Estados membros.

A organização tem ainda dois “Estados não membros”, com direito a assistir aos trabalhos e a intervir na Assembleia Geral e a manter uma missão permanente na sede da organização, em Nova Iorque. Um deles é a Santa Sé e o outro a Palestina, que sonha há décadas com um Estado independente e com o estatuto de ‘igual entre iguais’ na ONU.

Discurso de um sentido só: Israel

No debate desta sexta-feira, Mahmud Abbas excedeu largamente os 15 minutos atribuídos a cada orador e, durante quase 50 minutos, discursou sobre um tema só: a ocupação israelita da Palestina e o sonho adiado de 14 milhões de palestinianos dispersos pelo mundo — descendentes dos 700 mil que fugiram das terras onde viviam (Nakba), durante a guerra da independência de Israel.

“A nossa confiança na possibilidade de alcançarmos uma paz com base na justiça e no direito internacional está, infelizmente, a diminuir devido às políticas de ocupação de Israel”, disse o Presidente da Autoridade Palestiniana (AP), perante uma sala onde primava pela ausência o representante de Israel.

“Israel não acredita na paz, acredita na imposição de um status quo pela força e pela agressão. Por isso, não temos mais um parceiro israelita com quem possamos conversar”, disse. “Israel terminou a relação contratual connosco e transformou-a numa relação entre um Estado ocupante e um povo ocupado.”

“Porquê razão Israel não é responsabilizado pelo direito internacional? Quem está a protege-lo? As Nações Unidas protegem-no, e à cabeça estão os países mais poderosos.”

Mahmud Abbas
Presidente da Autoridade Palestiniana

Abbas, que preside à AP desde 2005 (e cujo mandato expirou em 2009 sem que, desde então, os palestinianos tenham conseguido realizar eleições para legitimar o titular do cargo), discursou um dia após o primeiro-ministro israelita fazer-se ouvir e reafirmar o seu compromisso com a solução de dois Estados.

“Um acordo com os palestinianos, com base em dois Estados para dois povos, é a coisa certa para a segurança de Israel, para a economia de Israel e para o futuro das nossas crianças”, defendeu Yair Lapid.

Na tribuna da Assembleia Geral, a seguir ao líder palestiniano, discursou o francês Charles Michel, em representação da União Europeia (UE), que não esqueceu os palestinianos: “O povo palestiniano espera há muito tempo e em vão por qualquer progresso em relação ao seu próprio futuro. O povo palestiniano não pode tornar-se a entidade esquecida na paisagem global”.

O presidente do Conselho Europeu da UE centrou a sua intervenção na guerra que “o Kremlin lançou ao povo ucraniano”, uma guerra híbrida que “combina violência armada e mentiras venenosas”.

Reforma da ONU é “necessária e urgente”

O dirigente europeu não poupou nas palavras e disse estar convicto que as Nações Unidas podem fazer mais quando Estados poderosos, como a Rússia, pisam a linha do aceitável.

“Quando um membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas inicia uma guerra não provocada e injustificável, uma guerra condenada pela Assembleia Geral da ONU, a sua suspensão do Conselho de Segurança devia ser automática”, defendeu.

Charles Michel criticou o uso abusivo do direito de veto, “que devia ser a exceção, mas tornou-se a regra”, e defendeu que “uma reforma é necessária e urgente”.

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Numa jornada em que discursaram vários Estados insulares — Vanuatu, Fiji, Ilhas Salomão, Santa Lúcia e Maurícias —, vulneráveis à subida do nível dos oceanos, as palavras mais desesperadas soaram da boca de um país onde vivem mais de 220 milhões de pessoas.

“Enquanto estou aqui hoje para contar a história do meu país, o Paquistão, o meu coração e a minha mente não conseguiram sair de casa. Nenhuma palavra consegue descrever o choque que estamos a viver ou como a face do país está transformada”, disse Muhammad Shehbaz Sharif, o primeiro-ministro paquistanês.

“Durante 40 dias e 40 noites, uma inundação bíblica caiu sobre nós, destruindo séculos de registos climáticos, desafiando tudo o que sabíamos sobre desastres e como responder-lhes.”

O Paquistão é, desde meados de junho, o país mais atingido pela fúria da natureza e pelos efeitos devastadores das alterações climáticas. A dimensão da catástrofe levou Sharif ao desespero, dizendo que o país trava “uma batalha pela sua sobrevivência” e que “a vida no Paquistão mudou para sempre”.

Por que razão o meu povo está a pagar um preço tão alto pelo aquecimento global sem culpa própria? A natureza lançou a sua fúria sobre o Paquistão sem olhar à nossa pegada, que é quase nula. As nossas ações não contribuíram para isto.”

Muhammad Shehbaz Sharif
primeiro-ministro do Paquistão

(IMAGEM SITE DO PARLAMENTO EUROPEU)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Vidas interrompidas por seis meses de guerra

A invasão russa da Ucrânia originou o maior êxodo humano na Europa desde a II Guerra Mundial. Para os ucranianos que ficaram no país, o quotidiano é de sobrevivência e resiliência

PRECES — Aos sons das sirenes, esta ucraniana de Kiev deposita em Deus a esperança do regresso à paz, num conflito que opõe irmãos da mesma fé DANIEL LEAL / AFP / GETTY IMAGES
ÊXODO — Mulheres e crianças, como estas já a salvo do outro lado da fronteira com a Eslováquia, receberam ordem para partir. Os homens ficaram, para defender o país PETER LAZAR / AFP / GETTY IMAGES
SOBREVIVÊNCIA — Um esforço para cumprir rituais quotidianos de sempre, por ruas ladeadas por edifícios esventrados e sem vida DIMITAR DILKOFF / AFP / GETTY IMAGES
ESPERA — Este ucraniano de Kharviv acredita que a sua cidade tem defesa possível, apesar de russófona e da proximidade ao território da Rússia SERGEY BOBOK / AFP / GETTY IMAGES
DOR — Os olhos desta mulher fecham-se intuitivamente, como que a negar toda a tragédia que se abateu sobre Irpin, acabada de ser bombardeada ARIS MESSINIS / AFP / GETTY IMAGES
CAOS — Palco de um massacre de civis ucranianos, a cidade de Bucha tornou-se também um cemitério de equipamentos militares russos ARIS MESSINIS / AFP / GETTY IMAGES
FUGA — Aproveitando uma trégua nos combates, habitantes de Irpin fogem através de uma ponte partida, levando pouco mais do que a roupa do corpo DIMITAR DILKOFF / AFP / GETTY IMAGES
DESPEDIDA — É um ‘até já’ incerto, na estação ferroviária de Odessa. A menina vai para porto seguro, o pai fica para ir à guerra BULENT KILIC / AFP / GETTY IMAGES
SOBERANIA — As cores da Ucrânia galgaram fronteiras e tornaram-se símbolo de resistência, em todo o mundo ALEXEY FURMAN / GETTY IMAGES
MORTE — Neste cemitério de Kharkiv, as bandeiras da Ucrânia identificam as sepulturas de militares, que deram a vida pelo país DIMITAR DILKOFF / AFP / GETTY IMAGES
DESORIENTAÇÃO — Uma mão amiga transmite segurança a uma idosa assustada, durante a evacuação de Irpin ANDRIY DUBCHAK / GETTY IMAGES
RESILIÊNCIA — É o que parece transmitir o ciclista ao atravessar uma rua de Bucha obstruída por destroços de veículos militares CHRIS MCGRATH / GETTY IMAGES
FUTURO — O baloiço sobreviveu intacto à guerra, em Borodianka, permitindo que as crianças continuem a sorrir CHRISTOPHER FURLONG / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Ataques na Crimeia: Quem fez? O que podem significar?

Instalações militares russas têm sido alvo de “atos de sabotagem”, como os qualifica Moscovo. Kiev não confirmou nem negou a autoria dos ataques, mas é quem mais beneficia com eles

Apesar da guerra em curso em áreas consideráveis da Ucrânia, a Crimeia, nos últimos tempos, vinha conseguindo fazer jus à sua fama de “popular resort de verão” e ter pessoas na praia como se tempos normais vivessem. Esta terça-feira, porém, aquela península do sul da Ucrânia anexada pela Rússia em 2014 voltou ao epicentro do conflito, após ataques atribuídos às forças ucranianas encherem de fumo negro os céus de partes do território.

A Rússia reconheceu a ocorrência de grandes explosões numa infraestrutura militar — um depósito de munições —, numa base militar russa perto da cidade de Dzhankoi, no norte da Crimeia.

As explosões foram “provocadas por um incêndio que levou à detonação de munições”, escreve a publicação “The Moscow Times”. As autoridades russas qualificaram o ataque como “um ato de sabotagem”.

Citado pela BBC, Refat Chubarov, um líder tártaro da Crimeia, disse que as explosões foram um “golpe” que pôde ser ouvido “do outro lado da estepe”. Os seus efeitos levaram à interrupção da circulação numa linha ferroviária e obrigaram à transferência de cerca de 3000 pessoas de uma localidade.

Segundo a agência Reuters, que cita o diário russo “Kommersant”, um segundo ataque visou outra base militar russa, em Gvardeyskoye, no centro da Crimeia. Os dois ataques aconteceram uma semana após um outro com igual perfil ser registado numa zona ocidental da península.

A promessa de Zelensky

Esta sucessão de explosões numa parte da Ucrânia que não tem estado na linha da frente dos combates poderá indiciar uma nova dinâmica no conflito — prestes a cumprir meio ano — em antecipação ao inverno, época em que também as movimentações da guerra se ressentem das gélidas temperaturas.

Para a Rússia, a Crimeia alberga não só a sede da Frota do Mar Negro como também serve de armazém a muito equipamento militar destinado às tropas em combate. Para Kiev, atacar esse potencial é, pois, uma forma de atingir as manobras de guerra da Rússia nas suas várias frentes.

Por outro lado, a Crimeia — cuja conquista pelos russos, em 2014, pode ser considerado um primeiro capítulo desta guerra — permanece um objetivo militar dos ucranianos. Na semana passada, o Presidente ucraniano prometeu “libertar” a região dos russos. “Esta guerra russa contra a Ucrânia e contra toda a Europa livre começou com a Crimeia e deve terminar com a Crimeia, com a sua libertação”, afirmou o Volodymyr Zelensky.

Putin acusa EUA de quererem prolongar o conflito

As autoridades ucranianas não se pronunciaram sobre os ataques desta terça-feira, não confirmando nem negando a autoria. Mas não passaram despercebidas as declarações de Andriy Yermak, chefe do gabinete do Presidente da Ucrânia, segundo o qual está em curso uma “operação de desmilitarização” do território que irá continuar até à “desocupação total” dos territórios ucranianos.

O atrevimento e a capacidade revelados por Kiev nestes ataques têm-se feito sentir também fora de portas. Segundo a agência Tass, citada pela Associated Press, num outro ato de sabotagem que Moscovo atribuiu aos ucranianos, no início de agosto, seis torres de transmissão de alta tensão foram destruídas em explosões, na região de Kursk, no ocidente da Rússia, perto da fronteira com a Ucrânia.

Esta terça-feira, o Presidente russo acusou os Estados Unidos de contribuírem para o arrastamento do conflito ao fornecerem armamento pesado aos ucranianos. “A situação na Ucrânia mostra que os EUA estão a tentar prolongar o conflito”, disse Vladimir Putin, discursando na cerimónia de abertura de uma conferência sobre segurança em Moscovo. Washington está “a usar o povo da Ucrânia como carne para canhão”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui