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O “conflito mais documentado de sempre” tem cada vez mais países unidos na investigação de potenciais crimes de guerra

São já seis os países que aderiram à Equipa de Investigação Conjunta, um mecanismo internacional de cooperação judicial criado para investigar crimes de guerra na Ucrânia. “Temos de construir parcerias”, apelou o procurador-geral do Tribunal Penal Internacional (TPI). “Cooperação não quer dizer competição. Temos de dar as mãos em nome dos interesses comuns da humanidade”

Dor sem fim na cidade ucraniana de Bucha, após a descoberta de uma vala comum junto a uma igreja WOLFGANG SCHWAN / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES

A guerra na Ucrânia está para durar, dizem cada vez mais observadores, mas a justiça internacional não espera pelo fim para responsabilizar quem violou as suas regras. Esta terça-feira, Estónia, Letónia e Eslováquia juntaram-se à Equipa de Investigação Conjunta (JIT, na sigla inglesa) criada a 25 de março por Polónia, Lituânia e Ucrânia, para investigar alegados crimes internacionais cometidos na Ucrânia.

“Hoje é um dia importante”, congratulou-se o procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI). “A JIT tem três novos membros. É algo necessário para abordar crimes com a magnitude daqueles que muitas vezes temos visto no TPI. Temos de construir parcerias. E o que isto mostra é que não há uma dicotomia entre cooperação e independência. Cooperação não quer dizer competição. Temos de dar as mãos em nome dos interesses comuns da humanidade.”

Karim A. A. Khan expressou-se nestes termos numa conferência de imprensa realizada esta terça-feira, em Haia, a que o Expresso assistiu de forma remota. De forma inédita, também o Gabinete do Procurador do TPI — que a 2 de março tinha aberto uma investigação aos crimes ocorridos na Ucrânia com base em relatos apresentados por 39 Estados membros — é membro participante desta JIT, em circunstâncias que o próprio detalhou.

O TPI (cujo estatuto é subscrito por 123 Estados membros) tem total acesso a toda a informação partilhada na JIT, mas não está obrigado a partilhar a informação que recolher com os outros membros. O TPI é um tribunal independente, com um mandato específico, explicou o seu procurador. “Não são valores europeus que estamos a proteger. O TPI não é um braço da União Europeia. Tratam-se de valores humanos”, esclareceu Karim A. A. Khan.

Cooperar para evitar sobreposições

Paralelamente às investigações desenvolvidas pelos seis Estados membros da JIT, outros treze países estão a conduzir processos próprios. Organizações não governamentais e associações da sociedade civil estão também no terreno a recolher informação sobre alegados crimes internacionais cometidos na Ucrânia.

“Isto não se trata de um mega caso. Não significa que estamos a copiar-nos uns aos outros e a fazer a mesma coisa em países diferentes. A JIT centraliza as áreas em que necessitamos de cooperar e ajuda a resolver situações de sobreposição. Todos temos processos diferentes”, explicou Andres Parmas, procurador geral da Estónia.

Provas recolhidas por vários países e guardadas em diferentes jurisdições podem ser contraproducentes. “Temos uma grande necessidade de coordenação. E é aqui que o Eurojust entra. Temos mais de 20 anos de experiência de operações de grande escala”, disse Ladislav Hamran, presidente da Agência da União Europeia para a Cooperação Judiciária Penal (Eurojust), que é parceira deste mecanismo internacional de cooperação judicial desde a primeira hora.

A contribuição desta agência da UE passa por dar apoio legal, financeiro e também logístico, como o fornecimento de telefones satélite, computadores portáteis, impressoras, scanners 3D, coletes à prova de bala, capacetes, veículos todo o terreno, drones e outros equipamentos importantes para a recolha de provas.

“Podemos concluir com certeza que a guerra na Ucrânia será o conflito armado mais documentado que testemunhamos até ao momento”, comentou Ladislav Hamran.

Tradutores, para que todos se entendam

O Eurojust, que acolheu a conferência de imprensa desta terça-feira, colmata ainda as necessidades de tradução para que os relatórios forenses possam ser lidos por todos, independentemente da sua nacionalidade, e para que procuradores, investigadores e agentes da polícia, quando reunidos, se possam expressar nas suas línguas maternas e serem entendidos por todos.

“Nunca antes na história dos conflitos armados, a comunidade legal respondeu com esta determinação. A decisão de formar esta JIT foi tomada aqui mesmo, no edifício do Eurojust, apenas seis dias após começar este conflito”, acrescentou o presidente da agência.

Dariusz Barski, procurador nacional da Polónia, explicou que no seu país, que já acolheu mais de 3,5 milhões de refugiados ucranianos, muito deste trabalho passa por entrevistar pessoas para recolher informação que possa ser útil a qualquer investigação.

“Estes processos também se referem às atividades levadas a cabo pelas autoridades e responsáveis da Bielorrússia que disponibilizaram o seu território para esta guerra de agressão iniciada pela Rússia contra o território independente da Ucrânia”, disse Barski. “Encorajo outros países a juntarem-se à JIT.”

A Lituânia, outro país fundador da Equipa, invoca a sua experiência de mais de 30 anos de investigação de crimes atribuídos ao Exército Vermelho por alturas da desagregação da União Soviética (1991), de que o país báltico fazia parte: “Queremos partilhar esta experiência com os nossos colegas na Ucrânia”, disse Nida Grunskiene, procuradora geral lituana. “Tomamos a decisão [de participar na JIT] depois de avaliarmos a informação pública que nos chegou nos primeiros dias da guerra na Ucrânia.”

Justiça ucraniana é rápida e lenta

Presente na conferência de imprensa, Iryna Venediktova, a procuradora-geral da Ucrânia, foi confrontada por um jornalista com a rapidez com que o país julgou o primeiro militar russo: um cidadão de 21 anos, condenado a prisão perpétua pela morte de um homem de 62 anos que seguia de bicicleta, na região de Sumy (nordeste).

“Na Ucrânia, os jornalistas perguntam-me porque é que os julgamentos demoram tanto. ‘Três meses, tanto tempo, o que andaram vocês a fazer até agora?’ Já os jornalistas internacionais perguntam-me: ‘Porquê tão rápido?’”, disse. “Nós vamos a tribunal quando estamos prontos.”

A procuradora disse que, atualmente, há cerca de 15 mil casos relativos a crimes de guerra no país e que a Ucrânia vai acusar cerca de 80 suspeitos por essas atrocidades. Admitiu também que as investigações tornam-se difíceis porque as autoridades de Kiev não têm acesso a partes do território, como a região do Donbas (leste), por exemplo. “Mas temos acesso a pessoas.”

Em abril passado, quando visitou a cidade ucraniana de Bucha, onde foram executados civis, o procurador do TPI proferiu uma frase que ficou a soar: “A Ucrânia parece uma cena de crime”.

Esta terça-feira, Karim A. A. Khan mostrou-se um homem confiante no papel da justiça. “Os custos com a justiça são irrisórios quando comparados com os milhares de milhões de dólares que são gastos num conflito. É mais barato financiar um mecanismo judicial como este do que comprar tanques e mísseis”, disse.

“Sou um grande fã da jurisdição universal. Cabe aos Estados decidirem se se juntam ou não à JIT. O que devemos fazer é aplaudir qualquer autoridade, qualquer procurador independente que tente chegar à verdade e reivindicar os direitos dos sobreviventes. Não estamos em competição. Esta é uma obrigação partilhada.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de maio de 2022. Pode ser consultado aqui. Tradução do artigo em língua russa neste link

Irão e Venezuela. Cercados por sanções e pela amizade com a Rússia

Castigados por sanções, Irão e Venezuela desesperam por aumentar as suas exportações de petróleo. O boicote à Rússia pode abrir portas, mas há obstáculos no caminho

Encontro entre os Presidentes da Venezuela e do Irão, Nicolas Maduro e Ebrahim Raisi, em Teerão, a 11 de junho de 2022 PRESIDÊNCIA IRANIANA

A invasão da Ucrânia expôs a dependência energética da Europa em relação à Rússia. Inversamente, identificou o boicote ao petróleo e gás russos como a arma mais eficaz para ferir o regime de Vladimir Putin. Para os países que querem pressionar Moscovo deixando de lhe comprar energia, Irão e Venezuela poderiam ser fornecedores alternativos. Ambos são grandes produtores de petróleo — o Irão controla também as segundas maiores reservas mundiais de gás natural — e vivem asfixiados por sanções. Um aumento das exportações traria grande alívio às finanças nacionais. Mas subsistem barreiras políticas que o inviabilizam.

IRÃO
Economia é importante, segurança é fundamental

Nas semanas que antecederam a invasão da Ucrânia, houve notícias de iminente novo acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão. Sete países (incluindo a Rússia) dialogam, desde abril de 2021, em quatro hotéis de Viena, com vista a reativar o acordo de 2015 (JCPOA, na sigla inglesa), fragilizado pela saída dos Estados Unidos nos anos de Donald Trump. A atual condição de pária levou Moscovo a mostrar as garras e a complicar a obtenção de um acordo final.

“A Rússia prefere manter a energia cara, para poder usá-la como alavanca contra o Ocidente”, diz ao Expresso Javad Heiran-Nia, do Centro de Investigação Científica e Estudos Estratégicos do Médio Oriente, em Teerão. “Por essa razão, adiou as negociações com o Irão, solicitando garantia por escrito dos EUA de que as suas relações comerciais com o Irão não seriam prejudicadas” num novo acordo.

Os russos não parecem dispostos a facilitar o que é urgente para os iranianos: o aumento das exportações de recursos energéticos para afastarem o espectro da bancarrota. “A Rússia procura usar o Irão como instrumento para contornar as sanções de que é alvo”, acrescenta o analista. “Isto não é interessante para o Irão após o ressurgimento do acordo nuclear e porá em risco os seus interesses.”

A boa relação entre Irão e Rússia é tão antiga quanto a própria República Islâmica: a União Soviética foi o primeiro país a reconhecê-la, em 1979. Acentuou-se em agosto passado, com a posse de um novo Presidente em Teerão.

“A estratégia do Irão na era Ebrahim Raisi passa por virar a oriente e expandir a relação com China e Rússia em vez de EUA e União Europeia. Por essa razão, nunca condenou o ataque à Ucrânia”, diz ao Expresso o politólogo iraniano Mohammad Eslami, da Universidade do Minho. O Irão absteve-se em duas das três resoluções condenatórias da Assembleia-Geral da ONU e votou derrotado contra a suspensão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos.

“O que a política externa iraniana nos últimos dois meses sugere é que o Irão vê no isolamento da Rússia a ocasião para ampliar o seu relacionamento com esse país, visado por sanções”, diz Eslami. “Como não há espaço para novas sanções do Ocidente ao Irão, este não tem limitações para trabalhar com a Rússia.”

Além da influência russa, outras razões condicionam a capacidade exportadora iraniana. Por um lado, o alto consumo interno de energia. Por outro, problemas que subsistem entre Irão e Europa. “Iniciaram ‘negociações críticas’ durante a presidência de Hashemi Rafsanjani [1989-1997]. Nos mandatos de Mohammad Khatami [1997-2005], esse diálogo deu lugar a negociações construtivas. Mas a questão nuclear e as sanções não melhoraram a relação”, diz Heiran-Nia. “Com Hassan Rohani [2013-2021], a relação melhorou um pouco após o acordo nuclear. Mas esta questão, como os direitos humanos, a política regional, os mísseis do Irão e o problema dos prisioneiros são temas conflituantes.”

A 16 de março passado, foram libertados dois iraniano-britânicos presos em Teerão, acusados de espionagem e conspiração para derrubar o Governo. Não são caso único na República Islâmica, que não reconhece a dupla cidadania e usa este tipo de casos como moeda de troca para outros fins. Segundo a imprensa iraniana, a libertação de Nazanin Zaghari-Ratcliffe e Anoosheh Ashoori teve como contrapartida o pagamento de uma dívida do Reino Unido ao Irão equivalente a €463 milhões.

“Pode haver discussões sobre as exportações de gás iraniano durante a guerra, mas os europeus não vão querer tornar-se dependentes de um país com o qual têm muitos problemas”, conclui Heiran-Nia. “Claro que o Irão quer melhorar a sua situação económica, mas no discurso dos responsáveis iranianos a segurança tem sido sempre mais importante”, acrescenta Eslami. “O Irão prefere confiar na Rússia como aliado fidedigno.”

VENEZUELA
Em contacto com os Estados Unidos

As reações internacionais à guerra na Ucrânia tornaram a Rússia o país mais sancionado do mundo — ultrapassou o Irão. Do grupo faz parte também a Venezuela, que poderia ganhar com a atual conjuntura, não fosse o forte alinhamento com Moscovo, em especial desde a era de Hugo Chávez (1999-2013), que aproveitou o boom do petróleo para comprar aos russos centenas de milhões de dólares em armamento e equipamentos militares.

“A Venezuela e a Rússia são parceiros estratégicos. Nicolás Maduro está do lado de Putin e contam com o apoio do gigante chinês”, diz ao Expresso Nancy Gomes, professora na Universidade Autónoma de Lisboa, nascida na Venezuela, referindo o Presidente do país. Com a Europa à procura de fontes energéticas alternativas à Rússia, “a Venezuela poderia beneficiar se tivesse capacidade operacional para pôr a funcionar a infraestrutura que a produção e exportação de petróleo requerem”. A académica crê que “isto pode demorar e exige alterações políticas que não parecem estar a ocorrer”.

O politólogo argentino Ignacio Labaqui corrobora ao Expresso que “o balanço de mais de 20 anos de governos chavistas tem sido negativo para a produção de petróleo na Venezuela”. A seu ver, “a deterioração das infraestruturas e a falta de investimento resultaram numa queda drástica da produção, ao ponto de, em abril de 2020, o país produzir menos de 350 mil barris de petróleo por dia.” Em abril de 2002, a Venezuela produzia diariamente quase 3 milhões de barris. Este ano, a cifra situa-se acima dos 600 mil. Se as sanções fossem levantadas, poderia injetar no mercado mais 400 mil barris diários.

A relação com a Rússia tem permitido à Venezuela minimizar o impacto das sanções. A aliança fez-se sentir em crises passadas. Em 2008, Caracas foi das poucas capitais a seguirem Moscovo e a reconhecerem a independência da Abecásia e da Ossétia do Sul, territórios da Geórgia.

Mas a Venezuela não parece disposta a deixar-se arrastar para as dificuldades que se projetam para a Rússia. Não participou nas recentes votações contra Moscovo na Assembleia-Geral da ONU. E no início de março, com a guerra em curso, Maduro recebeu uma delegação política dos EUA para uma reunião que incluiu a “segurança energética”. “Posso descrevê-la como respeitosa, cordial, muito diplomática”, disse o chefe de Estado venezuelano.

“As sanções que afetam a comercialização do petróleo não foram levantadas. É provável que Maduro peça aos EUA e aos europeus que reconhecem Juan Guaidó como presidente [interino] da Venezuela que deixem de o fazer, antes de começar a abandonar a relação com a Rússia”, conclui Labaqui. O analista prevê que “o Governo dos EUA peça progressos no respeito dos direitos humanos como condição para suspender as sanções.”

OS CINCO PAÍSES MAIS SANCIONADOS DO MUNDO

RÚSSIA — Reconhecer a independência de Donetsk e Luhansk, a 21 de fevereiro, e invadir a Ucrânia, três dias depois, originou um tsunami de sanções que tornou a Rússia o país mais boicotado do mundo. Pelo menos 6379 indivíduos, 979 entidades, 13 barcos e três aviões estão sancionados (7374, no total).

IRÃO — As primeiras sanções à República Islâmica foram decretadas pelos EUA após o assalto à sua embaixada em Teerão (1979). Hoje, o programa nuclear e a hostilidade com Israel justificam o grosso das 3616 sanções impostas ao Irão.

SÍRIA — A guerra civil iniciada em 2011 é a fonte da esmagadora maioria das 2608 sanções em vigor. O regime de Bashar al-Assad, que tem na Rússia um aliado, é penalizado pela repressão de populações civis.

COREIA DO NORTE — Muitas das 2077 sanções foram adotadas após o primeiro teste com armas nucleares (2006). O programa nuclear de Pyongyang é a grande preocupação.

VENEZUELA — As sanções têm como principal motor a relação tensa com os EUA, acentuada pela revolução bolivariana de Hugo Chávez (1999). Hoje, o país enfrenta 651 sanções.

Artigo publicado no “Expresso”, a 6 de maio de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Ataque à estação de Kramatorsk. Onde fica? Quem fez? E porquê?

O filme de terror em que se tornou a guerra na Ucrânia teve, esta sexta-feira, mais um capítulo, com um ataque com míssil a uma estação ferroviária, na cidade de Kramatorsk, no leste do país. Ali concentravam-se milhares de pessoas que corresponderam ao apelo das autoridades locais para deixarem a região e irem para locais mais seguros

A chegada a Kiev de dois dos principais responsáveis da União Europeia, Ursula von der Leyen e Josep Borrell, presidente da Comissão Europeia e Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, respetivamente, ficou, esta sexta-feira, ensombrada por um ataque contra civis, no leste da Ucrânia. Incentivados pelas autoridades regionais a deixarem a região, centenas de pessoas foram alvejadas por um míssil, enquanto esperavam para subir a um comboio que os levasse para lugar seguro.

O QUE ACONTECEU?

Um ataque com um míssil atingiu uma estação ferroviária da cidade de Kramatorsk, no leste da Ucrânia, onde milhares de ucranianos aguardavam para serem transportadas para zonas mais seguras.

O último balanço dá conta de pelo menos 50 mortos e 98 feridos. Os civis tinham sido incentivados pelas autoridades regionais a abandonarem a cidade, na mira das forças russas, para escaparem ilesos aos combates.

Imagens captadas no local pouco após o ataque mostram cadáveres espalhados na plataforma, entre malas de viagem e também alguns peluches. Entre as vítimas mortais, há pelo menos cinco crianças.

Destroços de um grande míssil, encontrado perto da estação, tinha inscrito em russo a frase “pelos nossos filhos”. O Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, afirmou que este ataque revelou “um mal sem limites”.

QUEM REALIZOU O ATAQUE?

Pavlo Kyrylenko, governador da região de Donets, onde fica Kramatorsk, disse tratar-se de um ataque deliberado das forças russas. “Eles quiseram semear pânico e medo”, afirmou. “Quiseram atingir o maior número possível de civis.”

A Rússia reagiu através do seu Ministério da Defesa que, num comunicado, referiu-se às acusações feitas por “representantes do regime nacionalista de Kiev” como “uma provocação”, que não corresponde à verdade.

Moscovo contra-ataca a narrativa ucraniana com dois argumentos. Por um lado, “as forças armadas russas não tinham qualquer missão de ataque planeada para 8 de abril, na cidade de Kramatorsk”, acrescentou o ministério.

Por outro, “sublinhamos que os mísseis táticos Tochka-U, cujos restos foram encontrados nas proximidades da estação de Kramatorsk e [cujas imagens] foram divulgadas como testemunhas, são usados apenas pelas forças armadas ucranianas”.

QUE TIPO DE ARMAMENTO FOI USADO?

Um projétil identificado nas imediações da estação ferroviária alvejada aponta para um míssil Tochka-U, que os russos dizem já não usar. Segundo o governador de Donets, o foguete transportava munições de fragmentação, que, quando acionadas, pulverizam bombas mais pequenas sobre uma área mais ampla.

“Se, no início, eles visavam exclusivamente trilhos ferroviários, agora não foram apenas trilhos, também dispararam um míssil com munições de fragmentação destinadas a pessoas. Isso é uma confirmação absoluta de que [este ataque] foi planejado contra civis”, disse Pavlo Kyrylenko.

Este tipo de armamento visa provocar um grande número de vítimas na zona onde rebenta. O seu uso está proibido pela Convenção sobre Munições de Dispersão (2008) — que a Federação Russa não assinou — e pode equivaler a crimes de guerra.

A 11 de março, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos disse ter recebido “relatos credíveis” relativos ao uso deste tipo de armas em zonas ucranianas habitadas, por parte das forças russas.

QUE IMPORTÂNCIA TEM KRAMATORSK?

Esta cidade fica na região de Donets que, juntamente com a de Luhansk, compõem o território de Donbas (fronteiro à Rússia), que acolhe populações ucranianas de língua russa e grupos separatistas armados que se têm batido pela secessão.

A 21 de fevereiro, três dias antes da Rússia invadir a Ucrânia, Moscovo reconheceu a independência das repúblicas separatistas de Donets e Luhansk, naquilo que, hoje, pode ser interpretado como o tipo de partida para a invasão russa do país vizinho.

Mais de um mês após o início dessa “operação militar especial”, na terminologia de Moscovo, e após enfrentar uma grande resistência em torno de Kiev, a capital (norte), a Rússia mudou o foco das suas ações militares para o leste e o sul da Ucrânia.

“Bombardeamentos pesados já começaram a devastar cidades da região e as autoridades imploraram aos civis que fugissem. Mas a intensidade dos combates impede as transferências [de populações]”, escreve esta sexta-feira, o jornal “The Moscow Times”, uma publicação independente em língua inglesa que este ano foi obrigada a mudar-se de Moscovo para Amesterdão, nos Países Baixos.

“Não é segredo. A batalha por Donbas será decisiva. Aquilo que já estamos a viver, todo este horror, pode multiplicar-se”, alertou o governador da região de Luhansk, Sergiy Gaiday, não perdendo a ocasião para se dirigir às populações locais. “Vão-se embora! Os próximos dias são as últimas oportunidades.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui

Descodificador. Que pode fazer a justiça na ‘guerra de Putin’?

Imagens de cadáveres de civis espalhados nas ruas de Bucha e de edifícios completamente destruídos e sem vida na cidade sitiada de Mariupol levantaram um coro de denúncias sobre crimes de guerra na Ucrânia. Como pode intervir o direito internacional?

Morte e destruição sem fim, em Bucha, nos arredores de Kiev CHRIS MCGRATH / GETTY IMAGES

1. A guerra desencadeada pela Rússia é legal?

Não, desde o seu primeiro minuto. A Carta das Nações Unidas — uma das pedras angulares do direito internacional, assinada a 26 de junho de 1945, no término da II Guerra Mundial — proíbe expressamente, no seu artigo 2º, “o recurso à ameaça ou ao uso da força [o chamado jus ad bellum], quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado”. A única exceção em que um país pode, por sua iniciativa, recorrer à força é em situações de legítima defesa (artigo 51º). Ora, no caso da invasão russa da Ucrânia, nem a Rússia foi atacada nem havia uma iminência de ataque armado contra o país liderado por Vladimir Putin.

2. Que legislação é importante?

Além da Carta da ONU, a regulação do uso da força faz-se também através do direito internacional humanitário, que procura limitar o sofrimento provocado pela guerra. Surgiu no século XIX, com o intuito de humanizar a guerra, e assenta em quatro Convenções de Genebra. A primeira (1864) confere proteção aos soldados feridos e enfermos durante uma guerra terrestre. A segunda (1906) estende as obrigações do primeiro tratado às forças navais. A terceira (1929) define o tratamento dos prisioneiros de guerra. E a quarta (1949) outorga proteção aos civis, inclusive em território ocupado. A Rússia ratificou os quatro tratados.

3. Que tribunais são competentes?

Qualquer violação por Estados que tenham ratificado as Convenções de Genebra pode conduzir a um processo diante do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ou do Tribunal Penal Internacional (TPI). O TIJ aprecia litígios entre Estados e é o órgão jurisdicional das Nações Unidas, composto por 15 juízes independentes eleitos pelo Conselho de Segurança, por recomendação da Assembleia-Geral. Quanto ao TPI, que tem sede em Haia, só julga indivíduos.

4. Vladimir Putin pode ser julgado?

Teoricamente, sim, no TPI. Mas, na prática, há uma infinidade de obstáculos até que isso se torne possível. Desde logo, há que recolher, no terreno, indícios e provas das atrocidades imputadas às forças russas, suscetíveis de implicar toda a cadeia de comando até chegar ao Presidente da Rússia. Esta fase pode demorar anos. Se a investigação do TPI resultar na formulação de uma acusação, é então emitido um mandado de captura internacional, dado que o tribunal apenas julga na presença do arguido, e não à revelia. Além disso, o TPI não dispõe de uma força policial que possa atravessar fronteiras nacionais para executar o mandado de detenção. A questão coloca-se: quem apanha Putin?

5. Há algum processo a decorrer no TPI?

Sim. A 28 de fevereiro passado, o procurador do TPI, o britânico Karim A. A. Khan, anunciou a abertura de uma investigação aos alegados crimes de guerra russos, com base em denúncias de atrocidades apresentadas por cerca de 40 países. Atualmente, no terreno, instituições como o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, ONG como Amnistia Internacional e Human Rights Watch e ainda jornalistas, ativistas e cidadãos estão numa corrida contra o tempo na procura de registar e documentar o maior número de indícios de crimes de guerra possível. Nem a Rússia nem a Ucrânia assinaram o Estatuto de Roma (que instituiu o TPI), mas tal não constitui entrave a uma ação nesse tribunal.

6. A Ucrânia já acorreu à justiça?

Sim, de forma bastante inteligente. Dois dias após a Rússia ter iniciado a invasão da Ucrânia, argumentando com a urgência em proteger as populações ucranianas russófilas do leste do crime de genocídio, a Ucrânia instaurou um processo no TIJ, acusando a Rússia de manipular o conceito de genocídio para justificar a sua invasão ilegal. A Rússia tentou boicotar o caso faltando a algumas sessões. A 16 de março, ouviu o TIJ dar razão a Kiev e a instar Moscovo a parar imediatamente com as operações militares. A favor votaram 13 juízes e contra apenas dois: o magistrado chinês e o russo. Os veredictos do TIJ são vinculativos, mas o tribunal não tem forma de obrigar ao seu cumprimento.

7. O massacre de Bucha é genocídio?

A violência das imagens captadas naquela cidade dos arredores de Kiev ergueu muitas vozes, incluindo a do Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, num coro de denúncias de uma situação de genocídio, o mais grave dos crimes contra a Humanidade. Mas, à luz do direito internacional, a tragédia de Bucha dificilmente configura um crime desse tipo. Segundo a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948), genocídio consubstancia um conjunto de atos “cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Esta especificidade, aparentemente, não é o caso de Bucha.

Artigo publicado no “Expresso”, a 8 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui ou aqui

Como a Rússia pretende transformar e subjugar a Ucrânia, segundo a agência oficial do Kremlin: “Um país desnazificado não pode ser soberano”

Considerada uma caixa de ressonância do Kremlin, a agência noticiosa russa RIA Novosti publicou um artigo de opinião em que detalha a forma como se pretende concretizar a “desnazificação” da Ucrânia. “Este é um processo duradouro que não deve ser inferior a uma geração”, defende o autor

A guerra na Ucrânia é também um conflito de narrativas e a sua intensificação no terreno tem reflexo ao nível das tomadas de posição dos círculos próximos aos poderes em causa.

É o caso da agência estatal russa RIA Novosti, considerada uma câmara de ressonância do Kremlin, que, este domingo, publicou um artigo intitulado “O que a Rússia deve fazer com a Ucrânia” (uma tradução para língua inglesa pode ser lida aqui).

Nele, Timofey Sergeytsev, o autor, descreve como deve ser concretizado o “inevitável processo de desnazificação da Ucrânia”, que se tornou necessário “quando uma parte significativa do povo — provavelmente a maioria — foi dominada e arrastada para um regime nazi a nível político”.

Punições exemplares

Começando pelo campo de batalha, “os nazis que pegaram em armas devem ser destruídos ao máximo”, sem distinção entre membros das Forças Armadas da Ucrânia, dos chamados batalhões nacionais, bem como das unidades de defesa territorial.

“Todos eles estão igualmente envolvidos em atos de extrema crueldade contra a população civil, são igualmente culpados do genocídio do povo russo, não cumprem as leis e costumes da guerra. Criminosos de guerra e nazis no ativo devem ser punidos de forma exemplar e exponencial. Deve haver uma lustração total.”

Outras medidas passam por:

  • formação de órgãos públicos de autogoverno e milícias para defesa e aplicação da lei nos territórios libertados, “protegendo a população do terror dos grupos nazis clandestinos”;
  • retirada de materiais educativos e proibição de programas educacionais em todos os níveis “contendo diretrizes ideológicas nazis”;
  • investigações em massa para identificar responsabilidades pessoais por crimes de guerra, crimes contra a humanidade, disseminação da ideologia nazi e apoio ao regime nazi;
  • publicação dos nomes dos cúmplices do regime nazi, envolvendo-os em trabalhos forçados para recuperar as infraestruturas destruídas, como punição para “aqueles que não estarão sujeitos à pena de morte ou prisão”;
  • criação de memoriais, placas comemorativas, monumentos às vítimas do nazismo ucraniano, “perpetuando a memória dos heróis” nessa luta.

A “desnazificação” deve chegar, inclusive, ao nome do país. “O nome ‘Ucrânia’ aparentemente não pode ser mantido como o título de qualquer entidade estatal totalmente desnazificada num território libertado do regime nazi”, defende Sergeytsev.

Desnazificar é desucranizar

A desnazificação será também inevitavelmente uma desucranização, uma rejeição da inflação artificial em grande escala da componente étnica de auto-identificação da população dos territórios históricos da Pequena Rússia e da Nova Rússia, iniciada pelas autoridades soviéticas. Deve ser devolvida aos seus limites naturais e privada de funcionalidade política”, pode ler-se.

O autor defende que desnazificar a população “consiste na reeducação, que é alcançada pela repressão ideológica (supressão) das atitudes nazis e censura estrita: não apenas na esfera política, mas também necessariamente na esfera da cultura e da educação.”

Este é um processo duradouro que não deve ser inferior a uma geração, “que deve nascer, crescer e atingir a maturidade em condições da desnazificação”. Para tal, prevê-se a criação de órgãos permanentes para a desnazificação por um período de 25 anos.

Construção artificial anti-russa

“Ao contrário da Geórgia e dos países bálticos, a Ucrânia, como a história mostrou, é impossível enquanto Estado-nação, e as tentativas de ‘construção’ levam naturalmente ao nazismo. O ucrainismo é uma construção artificial anti-russa que não tem o seu próprio conteúdo civilizacional”, defende.

Para a concretização do objetivo final, não basta eliminar as atuais autoridades em Kiev. “A debanderização [termo que decorre de Stepan Bandera (1909-1959), um político ultranacionalista ucraniano, e que se refere ao fim do atual governo ucraniano] por si só não será suficiente para a desnazificação. O elemento Bandera é apenas um ator e um cenário, um disfarce para o projeto europeu da Ucrânia nazi. Portanto a desnazificação da Ucrânia é também a sua inevitável de-europeização.”

Para esclarecer dúvidas, o artigo da RIA Novosti enfatiza que um processo de desnazificação só pode ser realizado pelo vencedor, pelo que “um país desnazificado não pode ser soberano”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui. Este artigo está traduzido para língua russa, aqui