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Nestas terras as armas não se calam: 20 conflitos no mundo

Guerras, rebeliões internas, violência sectária, nalguns casos desde há décadas, tornam estas duas dezenas de territórios especialmente instáveis

Ronald Reagan levava pouco mais de um ano na Casa Branca quando, num discurso proferido na cerimónia de formatura do Eureka College (Illinois), a 9 de maio de 1982, partilhou o seu conceito de paz: “Não é a ausência de conflito, é a capacidade de lidar com o conflito por meios pacíficos.”

O norte-americano e o soviético Mikhail Gorbatchov seriam os últimos líderes das duas superpotências que ditaram as regras nos anos da Guerra Fria (1947-1991), quando muitos conflitos foram travados por procuração, numa lógica de esferas de influência que partiu o mundo em dois, tornando-o mais previsível do que é hoje.

No atual mapa-mundo da conflitualidade há disputas ativas que se arrastam há décadas, como na Palestina e no Sara Ocidental, em que as iniciativas de paz não germinam.

Em regiões com grande diversidade étnica, como nos Grandes Lagos africanos ou em Mianmar, a perseguição a um povo concreto com o intuito de o apagar da face da Terra — no caso, os tutsis e os rohingyas — prova que o genocídio não é prática do passado.

Ucrânia, caso único no século XXI

Diferendos envolvendo potências nucleares, seja em torno de Caxemira ou Taiwan, seja a propósito do desenvolvimento de programas nucleares nacionais, como nos casos da Coreia do Norte ou do Irão, têm potencial para escalar para um conflito global.

No Médio Oriente, Iémen, Líbia e Síria são atualmente os incêndios mais ativos numa região onde a conflitualidade é endémica. No continente africano, a Somália e a região do Sahel — latitudes especialmente castigadas pela seca — têm sido portos seguros para grupos terroristas.

No território correspondente à ex-União Soviética e à sua antiga zona de influência dois conflitos ameaçam arrastar terceiros para crises maiores: o estatuto do Kosovo e a disputa pelo enclave de Nagorno-Karabakh.

Já a invasão russa da Ucrânia — inicia­da em 2014, no Leste, e visando todo o país desde 24 de fevereiro de 2022 — não encontra paralelo no século XXI: o ataque de um Estado soberano a outro com o intuito de o controlar.

1. CAXEMIRA

Esta é uma ferida aberta pela partição da Índia britânica, há mais de 70 anos. Situada nos Himalaias, esta região estende-se pela Índia, Paquistão e China. A área administrada pela Índia é problemática, já que é a única região daquele país predominantemente hindu onde a maioria da população é muçulmana. A dinâmica separatista e o facto de ser fonte de abastecimento hídrico à Índia e Paquistão já originou três guerras. Quando a tensão cresce, o mundo fica à beira de um ataque de nervos. Frente a frente estão potências nucleares que encaram Caxemira como um jogo de soma zero: quem a controlar representa uma ameaça existencial à outra.

2. MIANMAR

O Estado reconhece a existência de 135 grupos étnicos. Os rohingyas não só estão excluídos da lista como são alvo de uma campanha de genocídio. Os problemas no país remontam à emancipação da então Birmânia do Reino Unido (1948), tiro de partida para grupos étnicos se lançarem na luta pela autodeterminação — até hoje. A 1 de fevereiro de 2021 a conflitualidade ganhou nova expressão: os militares depuseram o Governo da Nobel da Paz Aung San Suu Kyi (ele próprio fruto de débil tentativa de democratização após décadas de ditadura) e tomaram o poder. Grupos civis pegaram em armas.

3. TAIWAN

Situada a uma distância média de 180 quilómetros da costa chinesa, a ilha, também designada por Formosa ou China Nacionalista, é um país reconhecido por 12 outros. Para a China Popular, a pretensão independentista da sua província rebelde dificulta a implantação da revolução maoista em todo o território chinês e ameaça o projeto político da ‘China única’. Para o outro gigante geopolítico do Pacífico — os Estados Unidos —, apoiar Taiwan é uma forma de fragilizar Pequim. A perspetiva de conflito aberto em redor de Taiwan é uma grande ameaça à paz mundial.

4. COREIAS

A península da Coreia foi um dos palcos da Guerra Fria, com os territórios a norte e a sul do paralelo 38 a travarem uma guerra (1950-1953) apoiados, cada qual, por uma superpotência. Com a necessidade de assinar formalmente a paz entre as duas Coreias (que apenas celebraram um armistício) e com o sonho da reunificação como cenário, cimeiras ao mais alto nível foram pontuando períodos de desanuviamento, em especial na era Donald Trump, com seis cimeiras em 14 meses, envolvendo Coreia do Norte, Coreia do Sul e Estados Unidos. A falta de resultados práticos levou Pyongyang a retomar os testes com mísseis balísticos. Este mês, o líder norte-coreano, Kim Jong-un, ordenou a intensificação dos preparativos para a guerra.

5. CHINA-ÍNDIA

Há quem diga que China e Índia só ainda não se envolveram numa guerra maior entre ambas porque têm no meio os Himalaias, a cordilheira montanhosa mais alta do mundo. Ao longo de mais de quatro mil quilómetros de comprimento da Linha de Controlo Real, a fronteira entre os dois países mais populosos do mundo, disputas territoriais não-contíguas contribuem para uma tensão permanente. Para minimizar consequências apocalípticas, já que em causa estão os exércitos com mais efetivos no ativo do mundo e com acesso a armas nucleares, um protocolo sino-indiano de 1996 determina que os contingentes militares ali destacados não usem armas de fogo.

6. PALESTINA

O sonho de um Estado independente, traçado pelas fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias (1967) — na qual Israel conquistou os territórios palestinianos da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental —, é cada vez menos exequível. Em Israel, o novo Governo, composto por partidos de direita, extrema-direita e religiosos ultraortodoxos, prometeu intensificar a ocupação. Já no seio da Autoridade Palestiniana, a gerontocracia e a corrupção não garantem ao povo uma liderança credível para resolver um problema que dura há gerações. Na ausência de um processo de paz digno desse nome, a luta transfere-se cada vez mais para as ruas.

7. FILIPINAS

Há mais de 50 anos que este arquipélago, formado por cerca de 7640 ilhas, é fustigado por conflitos sectários, muitas vezes em paralelo. Entre os mais duradouros estão a insurgência islamita Moro, na ilha de Mindanau, e a rebelião comunista contra o poder central deste país esmagadoramente católico. Desde 2014, vários grupos locais declararam lealdade ao autoproclamado Estado Islâmico (Daesh). Ainda que, pontualmente, sejam celebrados acordos de paz parciais, há sempre focos de guerra ativos.

8. MAR DO SUL DA CHINA

O maior e o mais fundo dos oceanos só é pacífico no nome. Num dos seus mares, o mar do Sul da China, mais de 15 mil ilhas, atóis, bancos de areia e recifes, na maioria desabitados, alimentam disputas territoriais entre países circundantes. Desde que, em 1974, China e Vietname do Sul ocuparam partes distintas das ilhas Paracel, sucederam-se vários outros incidentes. Nos últimos anos a tensão tem-se intensificado com a crescente importância da região enquanto rota comercial e jazida de reservas de petróleo e gás.

9. SARA OCIDENTAL

Em 1976, a retirada de Espanha da sua última colónia em África deu alento ao sonho de independência do povo sarauí. Em nome desse desígnio, a Frente Polisário pegou em armas para defender a autoproclamada República Árabe Sarauí Democrática (RASD) e expulsar Marrocos, que avançara militarmente sobre o território em 1975. Em 1991, a promessa das Nações Unidas de que seria realizado um referendo à autodeterminação do Sara Ocidental levou ao congelamento das hostilidades durante 29 anos. Essa demora, bem como o sentimento de abandono dos sarauís (até Espanha passou a alinhar com Rabat), levou ao fim da trégua no final de 2020.

10. IRÃO

A ambição nuclear do Irão é mais antiga do que a República Islâmica, instituída em 1979. Mas foi só após os ayatollahs tomarem o poder — e Irão e Estados Unidos cortarem relações — que o programa nuclear se tornou um problema internacional, fruto de uma desconfiança generalizada em relação às reais intenções do regime de Teerão. O acordo de 2015, envolvendo sete países, desanuviou, mas os Estados Unidos retiraram-se dele e a tensão voltou a ser a regra.

11. NAGORNO-KARABAKH

Na região do Cáucaso, Azerbaijão e Arménia, antigas repúblicas da União Soviética, disputam há décadas o controlo de um pequeno enclave montanhoso. De maioria arménia, Nagorno-Karabakh é internacionalmente reconhecido como território de soberania azeri. Na prática, quem o administra é, em parte, a autoproclamada República Artsaque, apoiada pela Arménia. Esta disputa — que tem a Rússia ao lado dos arménios e a Turquia em apoio aos azeris — já originou duas guerras.

12. SOMÁLIA

Vive em guerra civil desde 1991, quando o ditador Mohamed Siad Barre foi deposto e vários clãs aproveitaram o vazio de poder para se guerrearem. Parte do território, a Somalilândia, declarou a sua independência logo em 1991. Anos depois, foi a Puntlândia a declarar-se autónoma. Território fragmentado, berço do grupo terrorista Al-Shabaab e porto seguro para a pirataria, a Somália é um desafio à vida.

13. GRANDES LAGOS

Do maior para o mais pequeno, Vitória, Tanganica, Niassa, Turcana, Alberto, Kivu e Eduardo são os sete grandes lagos que dão nome a uma vasta área do Centro, Leste e Sul de África. Abundante em recursos minerais, a região põe em contacto 10 países e múltiplas sensibilidades étnicas. Em 1994, o genocídio dos tutsis no Ruanda forçou milhões de pessoas a fugirem para países vizinhos. Hoje, muita da instabilidade na República Democrática do Congo — o segundo maior país africano — decorre dos êxodos humanos gerados por guerras passadas.

14. SAHEL

A sul do Sara, este corredor semiárido que atravessa África de costa a costa é das regiões mais vulneráveis do continente. Porto de abrigo de grupos islamitas desde a guerra civil na Argélia (1991-2002), o Sahel tem hoje uma dinâmica jiadista alimentada pelas grandes constelações terroristas (Al-Qaeda e Daesh). O cancelamento do mítico Rali Dacar, em 2008, durante a rebelião tuaregue, foi o despertar mediático para os problemas na região. Nos últimos anos o epicentro das crises tem passado de país para país. Em novembro, França deu por terminada uma presença militar permanente nesta zona francófona. Já a influência da Rússia está a crescer.

15. KOSOVO

Desde que declarou unilateralmente a independência, há 15 anos, esta antiga província sérvia de maioria albanesa tem em mãos a batalha da estabilidade. No Norte do país, uma minoria de sérvios kosovares recusa-se a obedecer a Pristina e mantém-se leal a Belgrado. A falta de acordo com a Sérvia mina também o reconhecimento internacional do Kosovo, que ainda não conseguiu tornar-se membro das Nações Unidas.

16. LÍBIA

O movimento da Primavera Árabe tornou-se um inverno rigoroso nesta antiga colónia italiana, com o ditador Muammar Kadhafi executado na rua, em 2011, ao fim de 32 anos de tirania, e o país tomado pela lei das milícias. Doze anos depois a Líbia está refém de dois poderes políticos em competição pelo controlo do país: um com sede em Trípoli, reconhecido pela ONU e apoiado pela Turquia, Catar e Itália; outro sediado no Leste do país, endossado pela Rússia, Egito, Emirados Árabes Unidos e França.

17. SÍRIA

Nos últimos 12 anos, a guerra — que originou o maior êxodo humano desde a II Guerra Mundial —, a corrupção, as sanções, o colapso financeiro do vizinho Líbano, a pandemia e a invasão da Ucrânia originaram “uma crise gémea — humanitária e económica — de proporções épicas”, alertou recentemente Geir O. Pedersen, enviado da ONU para a Síria. A análise não contabilizava ainda os trágicos terramotos de 6 de fevereiro. Uma das zonas mais atingidas foi Idlib (Noroeste), o último reduto da oposição a Bashar al-Assad.

18. UCRÂNIA

A invasão russa da Ucrânia ocorreu… há oito anos. Com manifestações pró-europeias nas ruas (movimento Euromaidan) e a recusa do Presidente (pró-russo) em assinar um acordo de associação com a UE, a corda quebrou para o lado de Viktor Yanukovych, que foi deposto em fevereiro de 2014. A reação da Rússia aconteceria semanas depois, com a chegada de forças pró-Moscovo à península da Crimeia, que acabaria por ser anexada. Em paralelo, o Kremlin não poupou no apoio a forças separatistas pró-russas no Leste da Ucrânia. Desde então, não mais as armas se calaram na região do Donbas. A 24 de fevereiro de 2022, Vladimir Putin — para quem a desintegração da URSS foi uma catástrofe geopolítica — insistiu na inversão do rumo da História: ao invadir a Ucrânia, quis abortar a aproximação ucraniana à UE e recuperar a influência russa no antigo espaço soviético.

19. IÉMEN

Desde que Norte e Sul se reunificaram (1990) que a união sempre foi uma miragem. O conflito mais recente remonta a 2014, quando os huthis (xiitas), sediados no Noroeste, avançaram sobre Saná e tomaram o poder. Aliados do Irão e vizinhos da Arábia Saudita, o Iémen é uma peça no xadrez das rivalidades regionais. Desde março de 2015 uma coligação de países liderada pelos sauditas bombardeia o Iémen visando o fim da era huthi. Tudo se passa num dos países mais pobres, com dinâmicas separatistas e a Al-Qaeda ativa.

20. ETIÓPIA

O segundo país africano mais populoso, onde vivem 80 grupos étnicos, tenta cicatrizar as feridas abertas por uma guerra recente, em que um dos beligerantes foi liderado por um Nobel da Paz: Abiy Ahmed Ali, primeiro-ministro etíope. Vigora há três meses uma trégua que pôs fim ao conflito no Norte, entre uma coligação de exércitos e milícias leais ao Governo e a Frente de Libertação do Povo do Tigray. Segundo o ex-Presidente nigeriano Olusegun Obasanjo, enviado da União Africana, a guerra fez cerca de 600 mil mortos.

NÚMEROS

103.000.000

de pessoas foram forçadas a fugir de casa em todo o mundo. Mais de metade vive no seu país (deslocados internos)

32.500.000

era o número de refugiados no mundo em meados de 2022, diz a ONU. A Síria é o principal país de origem, a Turquia o que mais acolhe

Artigo publicado no “Expresso”, a 24 de fevereiro de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Sinais de esperança em conflitos sem fim

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso descrevem confiança e resiliência em territórios onde parece só haver problemas

A cidade iraquiana de Mosul é possivelmente um dos locais em todo o mundo onde hoje o sentimento de esperança está mais em alta. Vai para sete anos ali foi autoproclamado o infame Estado Islâmico. Libertada do jugo jiadista, a cidade reergue-se agora das cinzas através de uma parceria entre o Governo de Bagdade e a UNESCO, que tem em curso a reconstrução de monumentos e infraestruturas.

Em inícios de março, Mosul estará nas bocas do mundo quando receber o Papa Francisco, naquela que será a primeira viagem apostólica ao estrangeiro em 15 meses. Com esta visita ao Iraque, o Papa levará alento à minoria cristã do Médio Oriente, a região onde nasceu o cristianismo e que tem sido martirizada por sucessivas disputas.

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso revelam como noutras latitudes turbulentas a confiança num futuro melhor germina, apesar de um presente de grandes dificuldades. Desde o campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh, o rohingya Faruque conta como um projeto de realização de vídeos sobre o património cultural rohingya, partilhado nos telemóveis, se tornou um promotor de esperança entre o seu povo.

No Sudão, Pedro Matos, funcionário do Programa Alimentar Mundial da ONU, descreve o que o faz sentir-se confiante em relação ao futuro do país. Marta Abrantes Mendes recorda os anseios de paz de iemenitas com quem trabalha, num projeto de reconciliação nacional. E, com a experiência de quem já serviu no Afeganistão, o major-general Carlos Branco acredita que a paz é possível no país dos talibãs.

ROHINGYA
Gravar memórias e acreditar

Vídeos sobre saúde, cultura e educação feitos por refugiados são formas de resiliência

Faruque tem 32 anos e vive há 28 no maior campo de refugiados do mundo. Tinha quatro quando os pais se fizeram à estrada para salvar a família de uma morte certa. Em Myanmar, fugir para o vizinho Bangladesh é, há décadas, a única escapatória para a minoria rohingya (muçulmana), perseguida naquele país de maioria budista.

Hoje, os horizontes de Faruque estão confinados aos limites do campo de Kutupalong, onde vivem mais de 600 mil rohingyas. “Como em Myanmar, não somos autorizados a circular livremente, não temos direito à educação formal nem podemos trabalhar. Numa prisão pode sair-se em liberdade cumprida a sentença, aqui vivemos assim indefinidamente. Mas tenho esperança de que as coisas mudem…”

Com a mesma lucidez com que descreve as limitações de um povo que não é plenamente reconhecido nem mesmo pelo país que o acolhe, Faruque fala de um projeto que o move diariamente: a Rohingya Film School. Criada no início do ano pelo irmão mais novo, Omar, que colaborava com órgãos de informação como a BBC e que morreu em maio, aos 21 anos, de ataque cardíaco, esta escola nasceu com um duplo objetivo: dar formação a jovens na área da fotografia e do vídeo e registar em som e imagem a herança cultural dos rohingyas.

Com a covid-19, o projeto (rebatizado de Omar’s Film School) tornou-se também um agente de saúde pública. “Com a pandemia, o acesso ao campo dos trabalhadores humanitários ficou limitado. Os refugiados ficaram numa situação ainda mais trágica. Começaram a circular rumores de que quem apanhasse covid-19 seria morto ou levado para uma ilha remota. Muitas pessoas não queriam ser testadas.”

Os voluntários começaram então a fazer vídeos sobre práticas higiénicas e cuidados a ter face ao vírus e a partilhá-los através do telefone. Hoje, fazem filmes sobre saúde, património, cultura, educação, para além de promoverem atividades da ONU e de ONG.

Para Faruque, trabalhar no projeto é uma forma de homenagear o irmão e de lutar pelo futuro da filha, de três anos. “Tenho esperança de que chegue o tempo em que eu viva num lugar a que possa chamar lar, a minha filha seja matriculada numa escola e as nossas capacidades sejam reconhecidas.”

SUDÃO
Resiliência a muitas guerras

Pais poupam para os filhos irem à escola. Os sudaneses acreditam no futuro

Os 12 anos que Pedro Matos leva de experiência humanitária apuraram-lhe a perceção na hora de identificar sinais de esperança em países devastados pela guerra. É o caso do Sudão, onde trabalha como coordenador para a digitalização do Programa Alimentar Mun­dial (PAM), a agência da ONU que recebeu o Nobel da Paz 2020. “O povo sudanês é incrivelmente resiliente. Vemos sinais disso por todo o lado, desde pais que poupam o que têm para manter os filhos na escola, onde eles nunca puderam ir, até à esperança dessas crianças, que vão para escolas remotas do Darfur com t-shirts esfarrapadas e sonham ser médicos ou advogados.”

O português realça também “a quantidade de mulheres em cargos de gestão por todo o país em associações locais e nos Ministérios da Educação ou da Saúde”. E simboliza esse ativismo no feminino na figura de Hawa Salih, que lidera uma rede de organizações de base comunitária em El Fasher, na região do Darfur. “É uma força da natureza, trabalha incansavelmente para montar projetos de emprego para milhares de mulheres em coisas tão diversas como o fabrico de tijolos até plantações de árvores para combater o avanço do deserto.”

Arrasado por várias guerras desde a independência, inundações históricas este ano e um aumento dos preços dos alimentos de 700% nos últimos cinco anos, o Sudão tem no PAM um parceiro crucial: presta assistência alimentar a 6,5 milhões de pessoas, promove projetos de ‘comida por trabalho’, apoia agricultores, fornece refeições escolares e investe na prevenção e tratamento da desnutrição.

AFEGANISTÃO
Talibãs fazem parte da solução

Em 2021, passam 20 anos sobre o início da guerra. Governo e talibãs estão em diálogo

A5 de janeiro, o reinício das conversações de paz entre o Governo afegão e os talibãs devolve esperança ao futuro do país. “Se por futuro entendermos instauração de uma democracia liberal, então seguramente não teremos futuro”, alerta o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz da força internacional no Afeganistão em 2007 e 2008. “Mas há outros futuros possíveis, sem vio­lência e com paz. Tudo dependerá da solução política e da fórmula governativa que forem negociadas, que terão inevitavelmente de contar com a participação dos talibãs.”

“Quanto menor for a ingerência internacional neste processo, melhor, em particular das potências regionais.” Porém, “quaisquer que sejam as soluções adotadas, terão de ter em conta os interesses das grandes potências, em particular dos EUA. O que significa para os talibãs respeitar o compromisso de não manterem relações com a Al-Qaeda e não permitirem que o território seja utilizado por organizações terroristas”.

IÉMEN
Vozes que anseiam por paz

Os estereótipos reduzem-no a um país sem solução. Mas é importante ouvir os iemenitas

Marta Abrantes Mendes trabalha a partir do Líbano num projeto sobre reconciliação nacional e justiça transicional no Iémen, país do qual se diz ser a pior crise humanitária do mundo. Desenvolve, pois, grande parte do seu trabalho ao telefone, a falar com iemenitas.

“Ouvi representantes da sociedade civil sobre memória, necessidade de reconciliação e justiça social e vias de responsabilização pelas violações registadas durante o conflito. Algumas conversas duravam mais de duas horas e o quadro que se desenhou foi de um país com um grande ensejo de encontrar paz e encerrar os ciclos contínuos de violência de grande parte da sua história contemporânea.”

Marta incomoda-se com as representações externas em relação ao Iémen. “São sempre muito contundentes, como se não houvesse volta a dar. Tudo seria mais fácil se o palco fosse ocupado por iemenitas.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 31 de dezembro de 2020. Pode ser consultado aqui