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Recordar a I Guerra para evitar a III

O centenário do armistício da I Guerra Mundial, amanhã, traz à reflexão a hipótese de um novo conflito mundial

O ano de 2012 viu partir a última pessoa que participou na I Guerra Mundial. Chamava-se Florence Green, era inglesa e trabalhou numa messe de oficiais da Royal Air Force em Marham, no leste do Reino Unido. Morreu aos 110 anos, os mesmos que tinha o inglês Claude Choules, o último combatente vivo das hostes aliadas, que falecera meses antes de Florence. Do lado das potências centrais, Franz Künstler, nascido no Império Austro-Húngaro, foi o derradeiro veterano a partir — em 2008, com 107 anos de idade. O inglês Harry Patch foi o último sobrevivente entre aqueles que lutaram nas trincheiras. Morreu em 2009, aos 111 anos.

Com estes desaparecimentos centenários, calaram-se de vez os testemunhos na primeira pessoa de quem travou “a guerra que irá acabar com a guerra”, como a ela se referiu o escritor inglês H. G. Wells. Não seria assim, já que, passados apenas 21 anos, outro conflito em grande escala mobilizaria o mundo e dizimaria a Europa. Hoje, 100 anos após o fim da I Guerra Mundial — o armistício foi assinado a 11 de novembro de 2018, na floresta de Compiègne, em França —, uma terceira guerra mundial será um cenário plausível?

Soldados britânicos ocupam uma trincheira alemã, em Ovillers-la-Boisselle, França, durante a Batalha do Somme, em julho de 1916. Um está de vigia enquanto os outros descansam JOHN WARWICK BROOKE / WIKIMEDIA COMMONS

“Uma guerra como a de 1914-18 não é provável, mas só pensando que é possível podemos preveni-la”, diz ao Expresso Álvaro Vasconcelos, ex-diretor do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia e fundador do blogue Fórum Demos. “O nacionalismo é a guerra, disse François Mitterrand no seu discurso-testamento no Parlamento Europeu. É bom lembrarmo-nos disso para que a tragédia europeia não se repita. Nos anos 90, o nacionalismo na Europa levou ao ódio do outro, à guerra e ao massacre”, diz, em referência à Jugoslávia. Hoje, está em alta um pouco por todo o mundo.

Protagonistas da III Guerra

No seu manifesto, o Fórum Demos elenca uma “penosa série de acontecimentos” que alertam para ameaças à democracia: “A eleição de Donald Trump nos EUA, o crescimento da extrema-direita xenófoba na Europa, a recusa da hospitalidade europeia relativamente aos que fogem da guerra nas nossas fronteiras, os milhares de mortos sepultados no Mediterrâneo, a repressão brutal da oposição em países árabes, as vitórias eleitorais de conservadores religiosos no Brasil”.

Professor responsável pelas unidades curriculares de Geopolítica e de Cibersegurança no Instituto Universitário Militar, Armando Marques Guedes realça “o nacionalismo ‘antiglobalista’ e, muitas vezes, agressivamente antioutros — entendidos hoje como os de outras religiões, etnias ou culturas — que pulula na Europa”. Da França ao Reino Unido, da Finlândia à Polónia, Áustria, Alemanha, República Checa, Eslováquia, Hungria e Itália. Mas também na China e Índia, Rússia e Turquia, Brasil e Venezuela, além dos EUA.

“Creio que o nacionalismo que ‘voltou’ é muito mais parecido com o dos anos 30 do que com o dos anos 10 do século passado. Não acredito muito numa guerra europeia, ou num terceiro capítulo da Grande Guerra Civil Europeia”, diz. “O que creio ser possível são mais Ucrânias e Geórgias por essa Europa fora.”

“Uma III Guerra Mundial, comparável à primeira, seria uma guerra total entre Estados Unidos, China e Rússia”, diz ao Expresso o investigador Carlos Gaspar, do Instituto Português de Relações Internacionais. “A Europa, depois do seu suicídio nas duas grandes guerras do século XX, ficou reduzida a um estatuto menor e as suas principais potências — Reino Unido, França, Alemanha — são regionais, poderiam ficar à margem de uma nova guerra hegemónica.”

China em todo o lado

Com sofisticada tecnologia no ar em vez de homens enfiados em trincheiras, “uma III Guerra Mundial seria provavelmente dominada e decidida pelas armas nucleares”, acrescenta Gaspar.

Trump rasgou recentemente o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário — assinado entre EUA e URSS em 1987 —, numa medida interpretada como visando forçar a China a comprometer-se num potencial novo tratado. A China é um dos cinco membros do exclusivo clube de países com armas nucleares e tem planos de expansão nesse domínio. A 23 de junho passado, Pequim lançou um concurso para a construção de um quebra-gelos movido a energia nuclear.

Marques Guedes recorda que a China “tem uma presença cada vez maior em África — vide a sua enorme base naval em Djibouti, criada em agosto de 2017 — e penetração em redor, com navios de guerra nos dois lados do Atlântico Sul, no Golfo da Guiné e na África Ocidental, e no Mediterrâneo. E, imagine-se, no Mar Negro e no Ártico!”. O académico afasta o cenário de um conflito à escala da guerra de 1914-18. “Mas prevejo guerras assimétricas [envolvendo atores não-estatais e recorrendo a táticas terroristas, por exemplo] e novas guerras por procuração, com ‘estrangeiros próximos’ e ‘estrangeiros distantes’, para utilizar a terminologia russa, por trás delas”.

A lição de Mark Twain

Em conflitos na complexa região do Médio Oriente, por exemplo, os “próximos” são a Arábia Saudita, o Irão, a Turquia, o Qatar, os Emirados Árabes Unidos e, em parte, o Egito e Israel; os “distantes” são a Rússia, os Estados Unidos, o Reino Unido, a França, a União Europeia, a NATO e, com protagonismo crescente, a Alemanha e a Polónia.

Uma dessas guerras trava-se na Síria. Outras grassam no Iémen, Líbia, Mali, República Centro-Africana e no martirizado Afeganistão. Marques Guedes cita Mark Twain: “A História não se repete, mas rima muitas vezes”.

CONTEXTO

Pretexto
A 28 de junho de 1914, é assassinado em Sarajevo o herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, arquiduque Francisco Fernando

Alianças
De um lado, os Aliados (Tríplice Entente: França, Rússia, Reino Unido). Do outro, as potências centrais (Tríplice Aliança: Alemanha, Império Austro-Húngaro, Itália). Esta última só entra na guerra em 1915, mas na fação aliada. Ao lado das potências centrais ficou o Império Otomano

Baixas
Metade dos 20 milhões de mortos eram civis. Os Aliados perderam 5,7 milhões de soldados, as potências centrais quatro milhões

Portugueses
Combateram 100 mil do lado aliado; 7500 perderam a vida

(Imagem principal: Ilustração alusiva ao momento da assinatura do armistício, a 11 de novembro de 1918, numa carruagem-restaurante de um comboio estacionado na floresta de Compiègne, norte de França MAURICE PILLARD VERNEUIL / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso, a 10 de novembro de 2018

O dragão e a cidade do Porto: uma história de bravura e gratidão

A figura do dragão está conotada com o Futebol Clube do Porto, mas ainda o clube não tinha nascido e já esse animal mitológico era um símbolo da cidade. Na origem da história, está uma demonstração de valentia das gentes do Porto

Invencibilidade, força, espírito de luta. Para um portista, é tudo quanto o dragão simboliza e, por arrasto, é esse também o ADN do Futebol Clube do Porto (FCP). Nos últimos anos, o protagonismo do clube e os feitos desportivos alcançados dentro e fora de portas levaram a uma conotação entre a criatura e a principal instituição desportiva do Porto. Mas um passeio pela cidade revela que o dragão já era um símbolo do Porto antes mesmo da fundação do clube.

“Podemos datar a associação do dragão à cidade do Porto de 14 de janeiro de 1837, quando D. Maria II promulgou o novo brasão da cidade, que trouxe novidades”, explica ao Expresso o arqueólogo Joel Cleto, autor e apresentador da série “Caminhos da História”, emitida no Porto Canal. “Essas novidades tinham a ver com algo que acontecera na cidade poucos anos antes, um acontecimento injustamente esquecido e que, no entanto, foi crucial para a História do Portugal Contemporâneo — o Cerco do Porto”. Ou, como a ele se referiu o escritor portuense Almeida Garrett, ele próprio um dos “cercados”, o momento em que “o Portugal velho acaba e o novo começa”.

Com D. Miguel no trono, é instaurado o absolutismo em Portugal. O descontentamento popular generalizou-se e o país mergulhou numa guerra civil (1832-1834). D. Pedro IV (primeiro imperador do Brasil), irmão do monarca e anti-absolutista, regressa a Portugal, organiza um exército nos Açores, desembarca na praia de Pampelido (hoje, praia da Memória, concelho de Matosinhos) e avança para o Porto. Tinha com ele 7500 homens.

De Lisboa, partem 40 mil homens fiéis a D. Miguel que, chegados ao Porto, montam um cerco à cidade. Frente a frente, muito mais do que dois irmãos em luta pelo poder, estavam conceções opostas de sociedade e de organização do Estado: absolutismo (D. Miguel) e liberalismo (D. Pedro).

“D. Pedro resiste porque não tem ao seu lado apenas 7500 homens… Muito rapidamente, a eles se juntam uma boa parte da população do Porto”, diz Joel Cleto. “É isso que explica que ele resista um ano e, depois, consiga romper o Cerco, que constitui o início do fim do absolutismo.”

Entre 8 de julho de 1832 e 18 de agosto de 1833, o Porto é diariamente bombardeado, há dificuldades de abastecimento, morre-se à fome e proliferam doenças (cólera, tifo). Após vencer a guerra, D. Pedro proclama rainha D. Maria II, sua filha, e toma uma série de medidas para recompensar as gentes do Porto pelo seu heroísmo e apoio inesgotável à luta pelo liberalismo e pela liberdade.

Estátua de D. Pedro IV, na Praça da Liberdade MARGARIDA MOTA

“D. Pedro tem consciência de que se não fosse o Porto não teria triunfado”, diz o historiador portuense. “Durante um ano, ele e a sua filha, D. Maria II, vão fazer imensas coisas para agradecer ao Porto.”

Manda que se crie uma grande biblioteca (Biblioteca Pública Municipal do Porto), um grande museu (o atual Museu Nacional Soares dos Reis, para onde manda que se transfira a espada de D. Afonso Henriques que estava no seu túmulo, em Coimbra) e um jardim para as mulheres da cidade (Jardim de são Lázaro).

Atribui à cidade o título que ainda hoje a define — Invicta —, acrescentado aos outros que o Porto já detinha: “Antiga, Muy Nobre, Sempre Leal e Invicta Cidade do Porto”. Confere-lhe a mais alta condecoração do país: a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito. Decreta que o segundo filho do Rei de Portugal passe a ostentar o título de Duque do Porto, de cuja coroa sobressai “um dragão negro das antigas armas dos senhores reis d’estes reinos”. E doa o seu coração à cidade –— atualmente guardado numa urna de prata na Igreja da Lapa, que D. Pedro frequentou durante o Cerco.

A 14 de janeiro de 1837, por carta régia redigida por Almeida Garrett, D. Maria II outorga à cidade um novo brasão (que incluía a coroa ducal, e portanto a figura do dragão), onde estão representados os agradecimentos de D. Pedro.

Brasão da cidade do Porto conforme foi outorgado por D. Maria II, em 1837, na estátua de D. Pedro IV MARGARIDA MOTA

Símbolo das armas da Casa Real Portuguesa e personificação dos valores que sobressaíram durante o Cerco do Porto, o dragão passa a figurar, como elemento decorativo, em dezenas de locais por toda a cidade.

Pode-se vê-lo na fachada da Câmara Municipal (Avenida dos Aliados), no Palácio da Justiça (Cordoaria), na estátua equestre de D. Pedro IV (Praça da Liberdade), na estátua do Infante D. Henrique (Jardim do Infante D. Henrique), na Casa dos 24 (junto à Sé Catedral), no Palácio da Bolsa, e no altar onde está depositado o coração de D. Pedro IV.

Estes dragões, sintetiza Joel Cleto, têm a ver “com o Duque do Porto e, acima de tudo, com o Cerco do Porto e com o caráter invencível, resistente, heroico, imortal, indomável da cidade do Porto.” Tudo o que um portista reconhece no “seu Porto”.

Desde 2015 que, numa iniciativa do Museu do Dragão, Joel Cleto é o guia da “Rota do Dragão”, um passeio a pé pelas ruas do Porto com paragens junto a fontanários, estátuas e monumentos decorados com dragões. A 18 de maio arranca a primeira visita de 2018, outras três se seguirão a 24 de junho, 14 de julho e 29 de setembro.

A origem da relação entre o dragão e o FCP data de 1922, quando o clube, fundado 29 anos antes, adota aquele que é o seu emblema atual, e que mais não é do que a sobreposição das armas da cidade promulgadas por D. Maria II (onde um dragão encima a coroa ducal) ao emblema original do clube (uma bola de futebol antiga azul com as letras FCP a branco).

Símbolo do FCP, no “cogumelo” que funciona como bilheteira, junto ao Estádio do Dragão MARGARIDA MOTA

O dragão passa, então, a fazer parte do património do FCP. E assim continuará mesmo após o Estado Novo ordenar uma reforma heráldica e “declarar guerra” à imagem do dragão.

Através de uma portaria com data de 25 de abril de 1940, é aprovada uma nova constituição heráldica das armas, selo e bandeira dos municípios portugueses, onde ficou evidente a vontade de apagar dos brasões de concelhos e freguesias todos os resquícios liberais e monárquicos. Das armas da cidade do Porto, desapareceu — até aos dias de hoje — a coroa ducal com o dragão, substituída por uma coroa encimada por cinco castelos.

Mas na cidade, nem todas as instituições acataram a ordem do Estado Novo. “Algumas mantiveram a coroa e o dragão nos seus emblemas, que lá continuam nas suas sedes e nas fachadas dos seus edifícios”, diz o historiador. “É o caso do Orfeão do Porto, dos Bombeiros Portuenses, da Associação de Futebol do Porto e de duas instituições poderosas da cidade: a Associação Comercial do Porto e o FCP.”

Ao recusar adotar as novas armas da cidade impostas pelo Estado Novo, o FCP teve na manutenção da coroa e do dragão uma manifestação de resistência em relação ao poder central. “Desde muito cedo que o clube tem orgulho na presença do emblema da cidade no seu lema. O próprio hino do FCP diz isso: ‘Teu pendão leva o escudo da cidade, Que na história deu o nome a Portugal’”, recorda Joel Cleto.

Hino do Futebol Clube do Porto, exposto no Museu do Dragão MARGARIDA MOTA

Já com Pinto da Costa na presidência, o dragão toma o clube “de assalto”. O dragão dá nome ao estádio, ao museu e ao pavilhão das modalidades (Dragão Caixa). O projeto de formação desportiva chama-se Dragon Force, organizado em torno do lema “Tu tens o poder do Dragão”. O clube publica a revista “Dragões” e premeia atletas e funcionários com um Dragãos de Ouro. No estádio, em dias de jogos, a mascote Draco partilha o palco com “a equipa dos dragões”.

“Julgo que foi uma reação aos clubes da capital, que começaram a ser identificados como ‘o clube da águia’ e ‘o clube do leão’”, conclui Joel Cleto. “Mas pegou com grande sucesso.”

(Foto principal: O dragão, na parede exterior do estádio do Futebol Clube do Porto MARGARIDA MOTA)

Artigo publicado na “Tribuna Expresso, a 12 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui