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Cerco na universidade. “Os mantimentos estão a acabar. E eles estão completamente cercados”

Os protestos em Hong Kong duram há quase meio ano. O mais recente palco de contestação é a Universidade Politécnica onde esta terça-feira continuavam barricados “cerca de 100 estudantes”, testemunhou ao Expresso o fotojornalista Eduardo Leal, que acredita que o desfecho está para breve

Numa estratégia de permanente desafio às autoridades de Hong Kong, a população desta região administrativa especial chinesa vai conquistando sucessivos palcos de confronto, que começou de forma pacífica — com um milhão de pessoas nas ruas a 9 de junho — e já ganhou contornos de verdadeira guerra.

Passada a fase inicial das mega manifestações de rua, catalisadas pela proposta de uma nova e polémica lei da extradição, os protestos irromperam de forma violenta pelo edifício do Conselho Legislativo (1 de julho), transformaram estações de metro em arenas de luta corpo a corpo entre revoltosos e agentes da polícia e obrigaram ao cancelamento de centenas de voos, após a ocupação do principal terminal do Aeroporto Internacional de Hong Kong.

Na semana passada, o motor da contestação transferiu-se para o campus universitário. Os mais ferozes e irredutíveis estão dentro do Politécnico, que está cercado pela polícia desde domingo. “Neste momento, estão uns 100 estudantes barricados no interior, talvez até menos”, disse ao Expresso esta terça-feira ao início da tarde o fotojornalista português Eduardo Leal, que esteve dentro do Politécnico. “Na sua maioria são estudantes, muitos deles menores. Mas há também ex-alunos e voluntários que ajudam na organização dos protestos, como enfermeiros.”

Na segunda-feira, a polícia efetuou cerca de 1100 detenções. Muitos manifestantes procuravam formas de fugir dali, uns cansados, outros amedrontados, todos tentando antecipar-se a um previsível banho de sangue. “Os menores de idade saíam com liberdade para irem para casa, mas podem ainda vir a ser acusados. Os maiores de 18 anos eram imediatamente detidos.”

O repórter refere que esta terça-feira havia negociações envolvendo pais, políticos e pastores, com o objetivo de retirar do local os últimos jovens entrincheirados. “Julgo que não haverá mais violência”, diz Eduardo Leal. “No interior, estão a acabar os mantimentos e eles estão completamente cercados, por isso estão a sair. Além disso, esta terça-feira tomou posse um novo Comissário da Polícia de Hong Kong. Imagino que queira iniciar funções com uma vitória que será resolver esta situação.”

Esta terça-feira, em entrevista à publicação “South China Morning Post”, Chris Tang Ping-keung defendeu que o corpo de 31 mil agentes não consegue, por si só, acabar com a agitação social inédita no território, e que necessita do apoio da população. “Já chega”, disse o novo comissário. “Quaisquer que sejam as vossas crenças, não glorifiquem nem tolerem a violência. Não deixem que a multidão se motive mais e se radicalize mais.”

Há muito que os protestos em Hong Kong perderam o seu cunho pacífico. No interior do Politécnico, havia cenas dignas de quem parece preparar-se para uma batalha apocalíptica. Vestidos de negro e com o rosto tapado por passa-montanhas, alguns manifestantes montavam vigia armados com arco e flecha, outros enchiam garrafas com misturas explosivas (que testavam arremessando algumas para a piscina vazia), outros ainda improvisavam catapultas ou erguiam muros de tijolo.

Esta terça-feira, a imprensa local noticiou a descoberta de 8000 “cocktails molotov” em várias universidades, destinados a serem usados nas ruas, nos próximos protestos. Três universidades denunciaram à polícia o roubo de químicos dos seus laboratórios durante a agitação. Carrie Lam, a contestada e odiada chefe do Governo de Hong Kong, referiu-se às universidade como “fábricas de armas”.

Ainda que o cerco ao Politécnico termine sem vítimas a lamentar, Eduardo Leal acredita que “os protestos não vão acabar”. Por um lado, “a China está a desautorizar o Supremo Tribunal de Hong Kong em relação à lei das máscaras” que esta terça-feira considerou anticonstitucional a proibição do uso de máscaras em protestos decretada pelo Governo de Carrie Lam a 5 de outubro. Por outro, acrescenta o repórter, Hong Kong tem eleições locais marcadas para domingo. “Já se fala que serão canceladas. Se isso acontecer deve haver mais contestação nas ruas.”

(FOTO Estrada de acesso ao Politécnico bloqueada pelos estudantes, a 17 de novembro de 2019 WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de novembro de 2019. Pode ser consultado aqui

O território que tenta livrar-se do guarda-chuva onde o querem abrigar em 2047

A chamada revolução dos guardas-chuvas não dá sinais de abrandar nas ruas de Hong Kong, o antigo território britânico que passou para a administração chinesa em 1997 e ficou com um estatuto especial durante 50 anos. É a pedra no sapato da República Popular da China, que celebrou esta terça-feira o 70.º aniversário e não quer ouvir falar em mais autonomia, mas sim em “estabilidade de longo prazo” e “luta pela unificação completa do país”. 2:59 JORNALISMO DE DADOS PARA EXPLICAR O MUNDO

2047. Este é o ano que não sai do pensamento dos habitantes de Hong Kong. E porquê? Em 1997, quando a soberania deste território transitou do Reino Unido para a China, estes dois países acordaram um período de transição de 50 anos durante o qual Hong Kong manteria as liberdades de que vinha beneficiando.

Esse estatuto permite por exemplo que, a cada quatro anos, os cidadãos vão às urnas para eleger metade dos 70 membros do Parlamento.

Possibilita também que Hong Kong continue a ter moeda própria e a adotar políticas económicas com total autonomia. Hoje, o território é um grande centro financeiro e tem um dos maiores rendimentos per capita do mundo.

A nível social, essa exceção permite que em Hong Kong vigorem direitos que não são acessíveis a quem vive na chamada China Continental, como o direito a manifestarem-se.

Mas esta realidade de “um país, dois sistemas” tem os dias contados. Em 2047, findo o período de transição, Hong Kong perderá esse estatuto especial. Vingará então a vontade do Partido Comunista Chinês.

Conscientes disso, os habitantes de Hong Kong têm organizado mega-manifestações em defesa dos seus direitos e liberdades. Em 2014 saiu à rua o movimento dos guardas-chuvas, com exigências de mais democracia. Desde 9 de junho passado, as ruas estão novamente cheias. Inicialmente, os protestos visaram uma nova Lei da Extradição que tornaria possível que um cidadão de Hong Kong fosse extraditado para a China e julgado segundo a lei chinesa.

A resistência do governo aos protestos e a repressão da polícia levaram os manifestantes a apresentar cinco exigências. Enquanto não forem cumpridas, eles não abandonam as ruas.

A primeira já foi satisfeita: a retirada em definitivo da polémica lei da extradição.

Ficam a faltar quatro:

— A exigência de que as autoridades parem de qualificar os protestos como “motins” e os manifestantes como “desordeiros”.

— A libertação dos manifestantes que foram presos.

— Uma investigação independente à atuação da polícia.

— E uma exigência política: que o Chefe do Governo e o Conselho Legislativo passem a ser eleitos por sufrágio direto e universal.

Estes manifestantes têm a secreta esperança de que, chegados a 2047, a dinâmica democrática do território tenha contagiado o resto da China. E que Hong Kong possa continuar a ser um espaço de liberdade.

Episódio gravado por Pedro Cordeiro.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui

Assalto ao aeroporto com uma preocupação em mente: o futuro do território após 2047

Os protestos em Hong Kong conquistaram, esta segunda-feira, um palco inédito com milhares de pessoas a bloquearem o aeroporto, um dos mais movimentados do mundo. Pequim afirmou que a escalada dos protestos revela “sinais de terrorismo”

Milhares de manifestantes subiram, esta segunda-feira, a fasquia dos protestos em Hong Kong e ocuparam o terminal do aeroporto da cidade — o oitavo mais movimentado do mundo. Vestidos de negro, rumaram ao aeroporto após o meio-dia e sentaram-se no chão do terminal, inviabilizando a circulação característica de passageiros e trolleys.

Há quatro dias que já havia manifestantes no aeroporto. Andavam por ali pacificamente, distribuindo panfletos aos turistas para os sensibilizar para a sua causa. Esta segunda-feira, o reforço de ativistas obrigou ao cancelamento de todas as partidas previstas, afetando cerca de 180 voos.

Em cartazes ou através de gritos de ordem, os manifestantes justificaram a ação com a revolta provocada pela brutalidade da polícia na véspera. Uma nova jornada de protestos redundou em violência inédita, com a polícia a lançar gás lacrimogéneo dentro de estações de metro. Há também notícias de que foram disparadas balas de pimenta a curta distância.

Entre os manifestantes feridos, está uma mulher “alegadamente atingida por um saco de feijão [uma arma supostamente não-letal usada pela polícia para neutralizar os manifestantes] na zona de Tsim Sha Tsui”, lê-se na publicação “South China Morning Post”. “Um médico conhecedor do caso disse que ela pode perder o olho direito.”

No aeroporto, muitos manifestantes solidários taparam um olho com gaze, outros mostravam cartazes com um olho desenhado e em algumas paredes havia grafitis onde podia ler-se “olho por olho”.

Com o cair da noite, o número de manifestantes não ia além das centenas. A Autoridade Aeroportuária informou que espera que os voos sejam normalizados pelas seis da manhã desta terça-feira.

“Há muita revolta após a atuação da polícia no domingo”, diz ao Expresso Evan Fowler, um cidadão de Hong Kong a viver no Reino Unido. “É incerto o que os manifestantes pretendem fazer agora. O rumor / ameaça de bloqueio por parte da polícia pode ser determinante.”

A China reconheceu, esta segunda-feira, que a situação em Hong Kong atingiu um “ponto crítico” e que a escalada das ações dos manifestantes — a quem Pequim chama “desordeiros” — revela “sinais de terrorismo”, em especial contra as forças policiais. No domingo, um agente ficou ferido atingido por um cocktail Molotov arremessado pelos manifestantes.

“Este tipo de atividade criminosa violenta tem de ser combatida de forma enérgica no respeito pela lei, sem hesitação ou compaixão”, afirmou Yang Guang, porta-voz do Gabinete dos Assuntos de Hong Kong e Macau, do Governo chinês.

Em conferência de imprensa esta segunda-feira, a polícia de Hong Kong informou que, desde sexta-feira, foram presas 149 pessoas, acusadas de reunião ilegal ou ataque à polícia, entre outros. A libertação dos detidos — destes e de outros protestos passados — é outro ponto do rol de exigências dos manifestantes.

Dois meses nas ruas

Os protestos em massa estão nas ruas de Hong Kong desde 9 de junho. O gatilho foi uma nova lei da extradição, proposta pelo Governo local, que colocaria os cidadãos à mercê de serem transferidos e julgados na China Continental.

Mas desde então, e perante a recusa do Governo em retirar definitivamente a lei do circuito legislativo — apenas a suspendeu —, os manifestantes têm ampliado as exigências. Passaram a pedir a demissão da chefe do Governo Carrie Lam, o rosto da lei da extradição em quem não confiam e a quem encaram como porta-voz e ‘um pau mandado’ de Pequim.

Em pano de fundo, há uma preocupação permanente que toma os manifestantes: o futuro do território após 2047. Até 1997, Hong Kong foi uma colónia cedida ao Império Britânico pela dinastia Qing, no fim da Primeira Guerra do Ópio, em 1842. Há 22 anos, Londres e Pequim acordaram a transferência de soberania para a China, passando Hong Kong a beneficiar — durante 50 anos — de um estatuto especial com elevado nível de autonomia, a nível executivo, legislativo e judicial.

Essa fórmula “um país, dois sistemas” não confere aos cidadãos de Hong Kong o direito a elegerem o chefe de Governo por voto direto e universal — outra exigência dos manifestantes. Mas permite-lhes que protestem nas ruas como não é possível em nenhuma outra parte da China — o que têm feito em defesa das liberdades que (ainda) têm e em nome da uma maior democracia (que desejam). Com 2047 em mente, sabem que o tempo corre a favor do regime de Pequim.

(FOTO Protesto contra a lei da extradição, a 16 de junho de 2019, em Hong Kong STUDIO INCENDO / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 12 de agosto de 2019. Pode ser consultado aqui

Guarda-chuvas, capacetes, post-its, abraçadeiras: 25 “armas não-letais” dos protestos

Os manifestantes de Hong Kong saem à rua artilhados da cabeça aos pés. Levam consigo equipamentos de proteção individual, objetos para improvisar barricadas e material de papelaria para apresentar reivindicações. Às costas, uma mochila para acomodar (quase) tudo. Há precisamente um mês nas ruas, os “rebeldes” de Hong Kong não dão mostras de cansaço

FOTOGALERIA

MEGAFONE. Necessário para que as palavras de ordem se façam ouvir ao longe TYRONE SIU / REUTERS
CAPACETE. Um utensílio clássico em cenários com muita gente e grande agitação IVAN ABREU / GETTY IMAGES
PELÍCULA ADERENTE. Uma versão barata de impermeável para resguardar braços e pernas ANTHONY WALLACE / AFP / GETTY IMAGES
GUARDA-CHUVA. Símbolo icónico dos protestos pró-democracia de 2014, é usado como barreira de defesa contra o gás pimenta TYRONE SIU / REUTERS
ÓCULOS. Para proteger os olhos dos gases tóxicos com que a polícia costuma reagir TYRONE SIU / REUTERS
MÁSCARA CIRÚRGICA. Usada para tapar as vias respiratórias e, por vezes, ocultar a identidade dos manifestantes ANTHONY KWAN / GETTY IMAGES
MÁSCARA ANTIGÁS. Indispensável nos momentos de maior tensão em que o ar fica irrespirável, contaminado por gás lacrimogéneo TYRONE SIU / REUTERS
ÁGUA. Para hidratar o corpo e, em especial, limpar os olhos quando expostos a gases tóxicos GEOVIEN SO / GETTY IMAGES
GARRAFAS PLÁSTICAS. Utilizadas para esguichar água sobre cartuchos de gás lacrimogéneo acabados de lançar ANTHONY KWAN / GETTY IMAGES
IMPERMEÁVEL. Para cobrir o corpo e prevenir irritações cutâneas MIGUEL CANDELA / GETTY IMAGES
LUVAS. Para resguardar as mãos e, em certos contextos, não deixar impressões digitais VIVEK PRAKASH / AFP / GETTY IMAGES
CONE DE SINALIZAÇÃO. Em dia de manifestação, é usado para bloquear ruas ANN WANG / REUTERS
SUPERFÍCIE SÓLIDA. Tampos de madeira, pedaços de cartão, para além dos guarda-chuvas, tudo funciona como escudo de proteção VERNON YUEN / GETTY IMAGES
ABRAÇADEIRAS. Essenciais para unir gradeamentos e improvisar barricadas ANTHONY KWAN / GETTY IMAGES
SPRAY. Com que se grafitam os lemas das manifestações: “Hong Kong não é China”, lê-se nesta parede JORGE SILVA / REUTERS
PRETO. Cor usada em bandeiras, máscaras e t-shirts, traduz o luto resultante da morte gradual das liberdades em Hong Kong ANTHONY KWAN / GETTY IMAGES
UNION JACK. A bandeira do Reino Unido, de quem Hong Kong foi colónia até 1997, não é um símbolo generalizado dos protestos. Mas a assídua “avó Wong” não abdica dela HECTOR RETAMAL / AFP / GETTY IMAGES
COLA. Em fita ou em tubo para afixar cartazes. Os da foto, sobre uma placa que indica a direção dos gabinetes do Governo central, dizem: “Não à extradição para a China” MIGUEL CANDELA / GETTY IMAGES
POST-IT. Onde os manifestantes escrevem mensagens para as autoridades e depois afixam nas paredes da sede do Governo VIVEK PRAKASH / AFP / GETTY IMAGES
CARTAZ. “Hong Kong livre. Democracia agora”, é apenas um exemplo THOMAS PETER / REUTERS
INTERCOMUNICADOR. Sem liderança visível, os protestos são minimamente coordenados. Na foto, o deputado pró-democracia Eddie Chu está munido de equipamento de comunicação PHILIP FONG / AFP / GETTY IMAGES
TELEMÓVEL. Instrumento indispensável à organização das manifestações, combinadas nas redes sociais e em serviços de mensagens instantâneas como o Telegram CHRIS MCGRATH / GETTY IMAGES
MATERIAL DE LIMPEZA. No rasto dos protestos, há sempre manifestantes que depois se dedicam a limpar a via pública TYRONE SIU / REUTERS
DINHEIRO. Uns trocos no bolso dão sempre jeito. Estes manifestantes abastecem-se de Coca-Cola numa loja vazia. Um deles mostra uma caixa com dólares, para pagar o “furtado” TYRINE SIU / REUTERS
MOCHILA. Para transportar todas as “armas” necessárias a tantos e tão grandes protestos ANTHONY WALLACE / AFP / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de julho de 2019. Pode ser consultado aqui

Protesto, encenação ou uma grande estupidez?

A tradicional marcha pacífica de 1 de julho em Hong Kong terminou com uma violenta invasão do Parlamento. Ao Expresso, um cidadão do território levanta suspeitas de que todo o caos tenha sido orientado para que os manifestantes surjam nas imagens como “desordeiros”

“Acabei de chegar da zona de Admiralty. Passei lá o dia. É tão triste que esta seja a forma de governar na minha pátria: dividir para reinar.” Evan Fowler vive em Londres mas está, por estes dias, no seu Hong Kong natal. Sabia que o 1 de julho seria um dia agitado, como sempre acontece no território desde 1997. Organizado pela Frente Civil para os Direitos Humanos, sai à rua um protesto contra a transferência de Hong Kong para a República Popular da China e contra a crescente influência de Pequim sobre um território que, durante 50 anos, é suposto conservar alguma autonomia.

Este ano, o protesto descambou e terminou com uma violenta — e inédita — invasão ao Parlamento de Hong Kong (LegCo, abreviatura de Conselho Legislativo) com a polícia antimotim dentro do edifício a revelar grande passividade. “Suspeito que isto tenha sido um evento encenado”, diz Evan Fowler ao Expresso.

“As pessoas que partiram o vidro [da entrada do edifício] eram desconhecidas dos manifestantes e dos jornalistas que têm coberto os protestos, e desapareceram logo a seguir. Suspeito fortemente que as imagens [decorrentes da invasão], e que são provocadoras em relação à China, foram orientadas, senão mesmo organizadas, para retirar apoio aos protestos populares”, diz.

Dentro do Parlamento, os manifestantes espalharam o caos, destruindo tudo o que lhes aparecia pela frente. Arrancaram retratos, grafitaram as paredes e chegaram a estender uma bandeira colonial britânica — que não tem sido um símbolo das manifestações em Hong Kong — sobre a secretária do presidente da Assembleia.

“Era incrível ver o que se passava dentro do Parlamento. Grafitavam as paredes, partiam tudo”, diz ao Expresso um fotógrafo europeu que acompanhou a invasão do Parlamento. “Com isto, o movimento perdeu muita legitimidade.”

Uma tarja com exigências foi erguida junto à cadeira do presidente: abolição do sistema eleitoral antidemocrático e eleição do chefe do Executivo por sufrágio universal. Slogans de manifestações anteriores, nomeadamente dos protestos pró-democracia de 2014 (Movimento dos Guarda-chuvas), estas não são as exigências que têm motivado, desde 9 de junho, os gigantescos protestos nas ruas de Hong Kong, mas antes a nova e polémica lei da extradição.

“Isto é uma completa armadilha. Lamento que as pessoas tenham caído nela”, dizia, dentro do Parlamento, o deputado pró-democracia Fernando Cheung, acrescentando que a polícia podia ter facilmente impedido a invasão.

Também dentro da câmara dos deputados, um produtor da CNN, James Griffiths, ia descrevendo no Twitter o caos que se vivia. “Começo a ver discussões entre os manifestantes sobre o que fazer a seguir. Alguns querem abandonar completamente a zona do LegCo, outros querem ficar. O receio é que a minoria que fique vá enfrentar grandes consequências legais. Outro problema de um protesto sem liderança.”

Não deixar rasto digital em dia de protesto

Contrariamente aos protestos pró-democracia de 2014, “não há qualquer grupo ou organização a liderar estas manifestações”, diz Evan Fowler. “Muitas pessoas têm medo de ser presas”, como aconteceu aos líderes dos protestos de há cinco anos.

As manifestações são convocadas através das redes sociais e de plataformas de envio de mensagens instantâneas como o WhatsApp ou o Telegram, onde com frequência se fazem votações em tempo real sobre o que fazer a seguir.

No dia dos protestos, muitos participantes evitam usar o passe de metro, preferindo comprar bilhete nas máquinas ou então andar quilómetros a pé, para evitar deixar rasto digital. Evita-se também usar multibancos, recorre-se a telemóveis antigos e a cartões Sim acabados de comprar. Não falta também quem se movimente através de várias contas na Internet.

Polícia demorou muito a intervir

Esta segunda-feira, era já noite em Hong Kong quando a polícia “varreu” a sede do Parlamento. A maioria dos manifestantes já tinha abandonado o local. “Os manifestantes estavam preparados para abandonar o local, mas a polícia limpou a área à volta do LegCo excecionalmente rápido, com gás lacrimogéneo e bastonadas. O que levanta ainda mais perguntas sobre o porquê de hoje terem esperado tanto tempo para agir?”, questionou Griffiths.

A leitura dos acontecimentos que Evan Fowler faz vai no mesmo sentido suspeito. “Foi tudo muito conveniente. Tudo jogou a favor do guião do Governo que retrata protestos legítimos como um motim. Tudo jogou a favor da divisão da comunidade”, com as gerações mais velhas a insurgirem-se contra a “estupidez típica da juventude” que os transforma em “desordeiros”.

Reagindo aos acontecimentos, Carrie Lam, a contestada chefe do Executivo de Hong Kong, condenou o “uso da violência extrema” e precisamente “o vandalismo por parte dos manifestantes que invadiram o edifício do LegCo”, disse. “Nada é mais importante do que o Estado de direito em Hong Kong.” Carrie Lam falou numa conferência de imprensa realizada às 21 horas de Portugal Continental – eram quatro da manhã em Hong Kong. Horas depois, Hong Kong acordava sem grandes explicações para o que se passou.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de julho de 2019. Pode ser consultado aqui