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Um ‘navio-fantasma’ a cair aos bocados e em risco de explodir

A ONU corre contra o tempo para chegar a um navio de 47 anos, carregado de combustível e abandonado em zona de guerra. O “Safer” ameaça “uma catástrofe de proporções épicas”

Imagem de satélite do petroleiro “Safer” FOTO MAXAR TECHNOLOGIES

A cada minuto que passa, o mundo está mais próximo de um grande desastre. Ao largo do Iémen, no corredor do Mar Vermelho, um superpetroleiro carregado com mais de um milhão barris de crude está abandonado há sete anos e em acelerado processo de degradação.

“É provável que se afunde ou expluda a qualquer momento”, alertou recentemente David Gressly, o coordenador humanitário das Nações Unidas para o Iémen. “Ninguém quer que o Mar Vermelho se transforme num mar negro, mas é isso que vai acontecer”, acrescentou. “Não se trata de uma questão de ‘se’, é apenas uma questão de ‘quando’.”

Um superpetroleiro com mais de um milhão barris de crude está abandonado há sete anos e a degradar-se

No centro deste alarme está o “FSO Safer”, uma embarcação gigante com espaço suficiente para transportar três milhões de barris de crude. Está ancorado no mesmo local há 30 anos, sensivelmente a oito quilómetros da península iemenita de Ras’ Isa. Foi ali colocado para funcionar como terminal flutuante para armazenamento e descarga do crude explorado nos campos de Ma’rib (oeste) de onde o petróleo é transportado para o navio por um oleoduto de quase 450 quilómetros.

Consequência da guerra

Enquanto funcionou regularmente, a empresa proprietária do navio, a petrolífera estatal iemenita SEPOC, assegurou as manutenções necessárias. Os problemas começaram em 2015, quando o Iémen deu mais um mergulho no abismo. Os huthis — grupo político-religioso xiita zaidita apoiado pelo Irão — tomaram o poder pela força, levando as autoridades reconhecidas internacionalmente a refugiarem-se na cidade de Aden, no sueste do país.

O derramamento da carga originaria a quinta maior fuga de crude de um petroleiro da história

Percecionando a ofensiva huthi como avanço do arquirrival Irão na sua península, a Arábia Saudita mobilizou um conjunto de países da região e desencadeou uma operação militar no Iémen, apoiada em bombardeamentos aéreos, um bloqueio naval e incursões terrestres. Com o Iémen em guerra civil, o “Safer” ficou ao abandono e tornou-se uma bomba-relógio.

O volte-face dos huthis

As Nações Unidas estimam que em caso de derramamento da totalidade da carga a bordo, este navio seria o protagonista da quinta maior fuga de crude da História a partir de um petroleiro. O incidente mais grave ocorreu em 1979, ao largo da ilha caribenha de Tobago, na sequência da colisão entre o “Atlantic Empress” e o “Aegean Captain”, durante uma tempestade tropical. Foram despejados para o Mar das Caraíbas mais de 2,1 milhões de barris de petróleo.

Em caso de fuga, a ONU estima que sejam necessários €18 mil milhões para ações de limpeza

Para lá da corrosão do casco, da degradação dos equipamentos e de uma inundação na casa das máquinas detetada a 27 de maio de 2020 (e reparada pelos huthis, não se sabe com que eficiência), o “Safer” representa um perigo de explosão decorrente da possível ignição do gás acumulado nos tanques de armazenamento.

Desde há anos que as Nações Unidas olham para esta embarcação, construída em 1976, como putativa origem de “uma catástrofe de proporções épicas”. Em agosto de 2019, a partida de uma equipa de peritos para avaliar o estado do navio e proceder a reparações estava iminente quando, na véspera, foi cancelada pelas autoridades huthis.

Desta vez há garantias de uma efetiva colaboração por parte dos huthis, sobretudo após a assinatura de um Memorando de Entendimento, a 5 de março de 2022, entre “as Nações Unidas e as autoridades de Saná”, que reconheceu a existência de “amplos e múltiplos riscos”.

ONU comprou navio novo

Russell Geekie, assessor do coordenador humanitário da ONU para o Iémen, detalha ao Expresso os contornos da operação. “Há uma primeira fase, de emergência, em que uma equipa de salvamento tornará o ‘Safer’ seguro para a transferência do petróleo do navio degradado para um navio de substituição e preparará o ‘Safer’ para ser rebocado. A segunda fase compreende a instalação de uma boia de ancoragem em catenária à qual a embarcação de substituição será amarrada, e o reboque do ‘Safer’ para uma área verde, para reciclagem.”

Há um mês, o Programa da ONU para o Desenvolvimento comprou um navio para substituir o “Safer”

O navio de substituição foi comprado há cerca de um mês pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento à empresa belga Euronav, por 55 milhões de dólares (mais de €50 milhões). “É um petroleiro muito grande de duplo casco”, descreve o funcionário da ONU. “Deve navegar esta semana em direção ao Mar Vermelho, desde uma doca seca na China, onde foi feita a manutenção e modificações com vista à operação.”

Recurso a crowdfunding

Em caso de derrame, a ONU calcula que sejam necessários 20 mil milhões de dólares (€18 mil milhões) para custear as ações de limpeza. O dinheiro apareceria certamente com uma facilidade que não acontece agora, quando ainda se está em fase de prevenção da catástrofe. A ONU pede 129 milhões de dólares (€118 milhões) para a primeira fase da operação de resgate do “Safer”, mas as verbas entram a conta-gotas: ainda só estão assegurados 95 milhões de dólares (€87 milhões).

Um Memorando de Entendimento assinado há um ano garante a colaboração dos huthis na operação da ONU

“Além das contribuições de Estados-membros, a verba angariada inclui mais de 12 milhões de dólares (€11 milhões) provenientes do sector privado e 250 mil dólares (quase €230 mil) arrecadados num crowdfunding”, explica Geekie.

A campanha de crowdfunding, que apela à recolha de 500 mil dólares, é a forma que qualquer cidadão tem de dizer ‘presente’ e de se associar à resolução de um grave problema. “As contribuições variam entre $1 e $4000 de um indivíduo no Canadá”, diz o assessor. Entre os doadores estão também seis crianças de uma escola primária do estado norte-americano de Maryland.

Solução à vista

“Estamos mais perto do que nunca de evitar esta catástrofe, mas precisamos urgentemente de preencher a lacuna orçamental de 34 milhões de dólares (€31 milhões) para fazer face à primeira fase da operação”, apela Russell Geekie. “As Nações Unidas estão confiantes de que a transferência do crude pode ser completada em junho, desde que haja financiamento em breve.”

Paralelamente ao financiamento, há desenvolvimentos políticos recentes que podem levar o “Safer” a bom porto. O acordo de normalização da relação diplomática entre a Arábia Saudita e o Irão, anunciado a 10 de março, potencia condições para a resolução do problema. Os dois países querem fechar frentes de batalha entre ambos e a guerra no Iémen é a mais urgente.

RELACIONADO: Possíveis efeitos de um derrame no “Safer”

Artigo publicado no “Expresso”, a 6 de abril de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Possíveis efeitos de um derrame no “Safer”

Além do dano ambiental, a fuga de crude destruiria o sector da pesca no Iémen e bloquearia o comércio pelo Mar Vermelho

Imagem de satélite do petroleiro “Safer” FOTO MAXAR TECHNOLOGIES

HUMANITÁRIAS

GUERRA Antes de estalar a guerra civil, o Iémen já era um dos países mais pobres do mundo. Hoje, 90% dos mais de 30 milhões de habitantes sobrevivem graças à ajuda humanitária internacional. Um derrame da dimensão da carga do “Safer” obrigaria a encerrar o porto de Hudaydah, o segundo maior do país, importante porta de entrada de assistência humanitária e de tudo o que o Iémen importa. Estima-se também que mais de 8 mil poços fossem contaminados, tornando o acesso à água ainda mais difícil e potenciando surtos de doenças.

AMBIENTAIS

BIODIVERSIDADE A fuga de 156 mil toneladas de crude para o mar exporia milhões de pessoas, no Iémen e na vizinhança, a altos níveis de poluição. Provocaria também uma grande destruição de fauna e flora, numa área que é um verdadeiro santuário de biodiversidade. Segundo a organização ambiental iemenita Holm Akhdar (sonho verde, em árabe), haveria também impacto direto no ecossistema do Mar Vermelho, onde há 416 espécies de peixes, 485 de algas, 625 de moluscos, 53 de crustáceos e 16 tipos de tubarões. Seria também uma sentença de morte para as mais de 300 espécies de recifes de coral.

ECONÓMICAS

PESCA Com cerca de 2500 quilómetros de costa, 186 ilhas e abundantes recursos marinhos, a indústria da pesca é, naturalmente, um esteio da economia iemenita. Um derrame atingiria não só o Mar Vermelho como o Golfo de Aden, acabando com o ganha-pão de 126 mil pescadores, num país onde as ofertas de trabalho não abundam. Entre os outros países potencialmente mais afetados por um desastre em torno do “Safer”, o Jibuti tem sido das vozes mais ansiosas. Nos últimos anos, o “Safer” merece menção constante nos discursos dos governantes do Jibuti na Assembleia-Geral da ONU.

COMERCIAIS

ROTA Se não fosse suficientemente grave o amplo impacto de um incidente no “Safer” para o Iémen e países vizinhos, uma tal catástrofe teria inevitavelmente consequências na Europa, já que provocaria a disrupção do trânsito pelo Mar Vermelho. Estima-se que 10% do comércio global sejam transportados por essa rota, em todo o tipo de embarcações.

RELACIONADO: Um ‘navio-fantasma’ a cair aos bocados e em risco de explodir

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de abril de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

As 150 mil pessoas que foram para um país em guerra à procura de uma vida melhor

Milhares de pessoas tentam todos os anos entrar no Iémen — um país em guerra em situação de pobreza persistente — em busca de oportunidades de trabalho. Em 2018, ali chegaram mais “migrantes irregulares” do que os que atravessaram o Mediterrâneo em direção à Europa

Imagine-se um país com quase 30 milhões de habitantes onde, em cada 100, 74 vive dependente de ajuda humanitária, 60 corre o risco de passar fome, 57 não tem acesso a água potável e 53 sobrevive sem serviços de saúde. Esse país está tomado por uma guerra civil e a sua população exposta ao pior surto de cólera em todo o mundo. Ainda assim, a cada ano que passa, milhares de pessoas arriscam a vida para entrarem nesse país em busca… ‘de uma vida melhor’.

É o que se passa no Iémen, um dos países mais pobres do mundo e, atualmente, palco de uma grande tragédia humana — a “maior crise de dimensão humanitária em todo o mundo”, nas palavras do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres. Em 2018, estima-se que tenham entrado naquele país à volta de 150 mil pessoas em situação irregular — uma média de mais de 400 pessoas por dia —, a esmagadora maioria das quais por razões económicas.

Esta realidade torna-se mais chocante quando se constata que esse número é superior à quantidade de “migrantes irregulares” que, no mesmo período, cruzaram o Mar Mediterrâneo para tentar entrar na rica Europa. Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM) — liderada desde 1 de outubro passado pelo português António Vitorino —, no ano passado (até 19 de dezembro) tinham entrado no Velho Continente, por mar, 113.145 pessoas.

No Iémen, “os migrantes citam uma miríade de razões para as suas deslocações, incluindo perspetivas económicas limitadas, instabilidade política e degradação ambiental nos países de origem”, explica ao Expresso Angela Wells, do gabinete de Informação Pública da OIM. “A grande maioria quer chegar à Arábia Saudita [contígua ao Iémen], onde espera encontrar oportunidades de trabalho.”

São oriundos da Etiópia, numa percentagem superior a 90%, sendo os restantes sobretudo somalis. Para chegar ao Iémen, percorrem a chamada Rota Oriental, que os leva, inicialmente, por percursos terrestres no Djibuti, muito usados por contrabandistas, e depois a bordo de embarcações através do Golfo de Aden. Em menor número, alguns lançam-se a partir da costa da Somália.

“Desde o início de 2014, o Projeto de Migrantes Desaparecidos da OIM registou mais de 700 mortes no Golfo de Aden”, diz Angela Wells.

Enquanto, em 2018, o número de “migrantes irregulares” a entrar na Europa diminuiu comparativamente ao ano anterior, no Iémen aumentou em 50%. “Esta é uma das rotas migratórias mais jovens do mundo”, acrescenta a responsável da OIM. “Estima-se que 20% dos migrantes sejam menores — muitos deles desacompanhados —, inconscientes ou incapazes de compreender a gravidade do conflito no Iémen.”

Quem se lança rumo ao desconhecido, correndo riscos de vida, age motivado por histórias de outros que partiram e ‘conseguiram’. Esses passaram a enviar dinheiro para as famílias, nos países de origem, que aproveitaram para construir uma casa nova, melhorar a educação das crianças ou regenerar as propriedades agrícolas degradadas por anos de seca.

Mas chegados ao Iémen, os perigos espreitam a cada esquina. “Os mais graves decorrem da violência do conflito, de uma drástica insegurança alimentar e de epidemias de doenças infecciosas”, refere Angela Wells. “O estatuto irregular dos migrantes também aumenta a sua vulnerabilidade à exploração laboral e ao tráfico de pessoas e expõem-nos a abusos por parte de contrabandistas e de traficantes nas rotas do Corno de África.” Longas caminhadas, dias a fio, em rotas áridas e desertas, originam também casos de desidratação e várias doenças.

No terreno — no Iémen e nos países de trânsito —, organizações humanitárias vão disponibilizando abrigos e prestando cuidados para atenuar o sofrimento. A OIM, em particular, ajuda migrantes que, face às adversidades, queiram regressar aos países de origem.

Em finais de novembro passado, a organização reiniciou o transporte aéreo de repatriamento voluntário, levando 418 etíopes (121 dos quais menores) para casa. Os voos estavam suspensos desde 2015, devido ao conflito, que se tornou uma “guerra por procuração” entre os pesos pesados do Médio Oriente: os rebeldes huthis são apoiados pelo Irão (xiita) e as forças leais ao Presidente deposto, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, beneficiam dos bombardeamentos aéreos efetuados pela vizinha Arábia Saudita (sunita).

A 13 de dezembro passado, na sequência do “caso Khashoggi”, o Senado dos Estados Unidos aprovou o fim do apoio militar à Arábia Saudita no Iémen. Mesmo assim, a aviação saudita continua a bombardear.

(Foto: Na cidade costeira de Obock, no Djibuti, migrantes aguardam, à sombra, que traficantes organizem a sua viagem até ao Iémen OLIVIA HEADON / IOM)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 17 de janeiro de 2019, e republicado no “Expresso Online”, a 19 de janeiro seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui

Uma vitória tardia que não acaba com a guerra

Dos quatro países da “primavera árabe” onde os protestos populares derrubaram ditadores, o Iémen foi o último, efetivamente, a punir o seu. O desaparecimento de Ali Abdullah Saleh, assassinado por quem se aliara até à véspera, não significa, porém, o fim da guerra

Já lá vão sete anos, cumprem-se exatamente este domingo. Num ato desesperado, Mohamed Bouazizi, um vendedor ambulante tunisino, auto-imolou-se pelo fogo em protesto contra a apreensão, pela polícia, da sua banca de fruta. A indignação popular tomou conta das ruas da Tunísia e motivou outros árabes a revoltarem-se contra quem os governava de forma quase absoluta.

Quatro ditadores sucumbiram à chamada “primavera árabe”: o tunisino Zine El Abidine Ben Ali (exilado na Arábia Saudita), o egípcio Hosni Mubarak (preso, julgado e, entretanto, libertado), o líbio Muammar Kadhafi e o iemenita Ali Abdullah Saleh. De todos, Kadhafi foi, à época, aquele que teve o fim mais inglório — capturado por uma milícia e executado como um vulgar criminoso, com as imagens do seu cadáver, captadas por telemóvel, a circularem pelas redes sociais.

Em sentido oposto, Saleh foi o único que conseguiu sair do poder pelo próprio pé. No âmbito de um acordo assinado a 23 de novembro de 2011, e mediado pelo Conselho de Cooperação do Golfo, transferiu o poder para o seu vice-presidente, Abdu-Rabbo Mansur al-Hadi, em troca de imunidade.

Mas Saleh — que fora Presidente do Iémen durante 33 anos — não resistiu à tentação do poder. A viver em Sana e com a sua influência intacta junto de sectores da sociedade iemenita, ajudou, em setembro de 2014, os rebeldes huthis a conquistar a capital e a depor o governo de Hadi. Mais de três anos depois, há precisamente 15 dias, seria assassinado por esses mesmos aliados. Como acontecera com Kadhafi, imagens do seu cadáver chegaram às redes sociais, num ato final de humilhação.

“As tensões entre Saleh e os huthis vinham a aumentar há algum tempo, não aconteceram de um dia para o outro”, comenta ao Expresso Noha Aboueldahab, investigadora do Brookings Institution (EUA) e autora do livro “Transitional Justice and the Prosecution of Political Leaders in the Arab Region: A comparative study of Egypt, Libya, Tunisia and Yemen” (2017).

A rutura final aconteceu a 2 de dezembro quando Saleh, na televisão, anunciou o fim da aliança com os huthis e mostrou-se aberto ao diálogo com a Arábia Saudita. Esta tem em curso uma operação militar no país visando derrotar os huthis (que são apoiados pelo arqui-inimigo Irão) e devolver o poder ao Presidente deposto, Hadi.

Saleh sobreviveria dois dias a essa cambalhota política. “Ele interpretou mal as tensões com os huthis e pensou que podia confiar no apoio dos sauditas para ficar à cabeça do jogo político no Iémen”, diz Noha Aboueldahab. “Errou ao não prever a reação dos huthis quando anunciou a sua aliança com os sauditas. E dado que estes não estão ‘no terreno’ no Iémen [apenas efetuam bombardeamentos aéreos], Saleh e quem lhe era leal ficaram à mercê no confronto com os huthis, e não foram bem sucedidos.”

“Governar o Iémen é como dançar sobre cabeças de serpentes”, disse, em 2009, Ali Abdullah Saleh, numa entrevista ao jornal “Al-Hayat”. “A mudança de alianças que Saleh promoveu é uma estratégia política que lhe permitiu a permanência no poder durante quase quatro décadas”, diz a investigadora. “Mas levou também à sua morte” — uma espécie de vitória tardia, para os partidários da “primavera iemenita”.

No Iémen, Saleh sempre foi um protagonista, mesmo quando não estava no poder. “Foi certamente um obstáculo a um acordo de paz no Iémen, mas não era o único. Infelizmente, atores internacionais — nomeadamente o Conselho de Cooperação do Golfo, os Estados Unidos, a União Europeia e as Nações Unidas — também foram obstáculos a um acordo de transição efetivo no Iémen”, defende Noha Aboueldahab, para quem o destino do país foi traçado em 2011.

“O acordo de transição assinado em Riade há seis anos e as conversações para a Conferência para o Diálogo Nacional que se seguiram tinham falhas graves. Foram estruturadas para manter Saleh — ou pelo menos o seu partido Congresso Geral do Povo — no poder dando a impressão de que partidos da oposição e outros atores também teriam uma palavra a dizer à mesa das conversações. Não foi o que aconteceu, e contribuiu para a carnificina que se seguiu no Iémen desde 2011.”

Mais derramamento de sangue

À semelhança do que aconteceu na Síria, a “primavera iemenita” evoluiu para uma guerra civil sangrenta de que resultou uma grande tragédia humana. Hoje, para além das balas e bombas, morre-se também de fome e de doenças há muito erradicadas na maioria do planeta, como a difteria e a cólera.

O desaparecimento de Saleh não ditará o fim dessa grande tragédia, prevê Noha Aboueldahab. “Agora que morreu, sauditas e emiratis ficam sem o seu poderoso jogador iemenita com quem contavam voltar a fazer uma aliança para acabar com a guerra, ditando os termos” da paz. “Enquanto Riade e Abu Dabi têm outras opções para onde se virarem, a morte de Saleh vai significar mais combates, mais derramamento de sangue.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de dezembro de 2017. Pode ser consultado aqui

Cólera infeta uma criança por minuto

O alerta foi dado esta quarta-feira pela organização Save the Children que fala num surto “fora de controlo” no Iémen. Para além da pobreza crónica, três anos de guerra destruíram centros de saúde e degradaram os sistemas de saneamento e de fornecimento de água potável. As crianças são as principais vítimas

A guerra não pára de abrir frentes no Iémen. Atualmente, a cada minuto que passa, pelo menos uma criança é infetada com cólera, denunciou esta quarta-feira a organização não governamental Save the Children.

A taxa de infeção triplicou nas últimas duas semanas, afetando especialmente menores de 15 anos — que correspondem a 46% dos cerca de 5470 novos casos diários de cólera e de diarreia líquida aguda. Até 13 de junho (terça-feira), em 20 das 22 províncias iemenitas, já tinham morrido 942 pessoas.

Na origem da escalada deste surto “fora de controlo” estão situações de penúria alimentar — mais de dois milhões de crianças sofrem de subnutrição grave — e a destruição provocada por quase três anos de conflito, sobretudo ao nível das infraestruturas de saúde, do fornecimento de água potável e do saneamento básico.

Nas palavras de Grant Pritchard, diretor da ONG no Iémen, o Iémen está “à beira do colapso total”. Palavras semelhantes foram usadas, no início do mês, pelo representante da UNICEF no Iémen. “A cólera surgiu numa altura em que o sistema está prestes a colapsar, a pobreza está a aumentar e a subnutrição está em alta”, disse Meritxell Relaño. “Imagine-se como fica uma criança que já é muito fraca, e cujo sistema imunitário está nos mínimos, quando tem diarreia. Crianças com seis meses pesam apenas 2,5 kg.”

O Iémen é o mais pobre dos países árabes — 168º lugar no último Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (188 países) — e tem uma guerra em curso que vai a caminho do seu terceiro ano. Segundo a ONU, 18,8 milhões de iemenitas (cerca de 70% da população total) necessitam de assistência humanitária — incluindo 10,3 milhões de crianças.

O conflito acentuou-se a partir de março de 2015, quando o país começou a ser alvo de bombardeamentos por parte de uma coligação de países da região.

Oficialmente, a ofensiva liderada pela Arábia Saudita, o gigante árabe sunita do Médio Oriente, visa devolver o poder ao Presidente Abd Rabbuh Mansur Hadi, deposto em setembro de 2014 pelos rebeldes huthis — xiitas e próximos do Irão (país persa), o grande rival dos sauditas.

Na semana passada, a Arábia Saudita expulsou o Qatar desta coligação militar, na sequência do corte de relações de quatro países árabes (Bahrain, Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos) em relação ao pequeno emirado.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de junho de 2017. Pode ser consultado aqui