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Uma guerra interminável que o mundo tenta ignorar

É um conflito esquecido que não poupa pessoas, bens e património. Um iemenita fala da vida sob bombas

Há um conflito em curso no mundo de que quase já não se fala e que transformou o quotidiano de pessoas como Mohammed al-Hindi num permanente desafio à sobrevivência. “O que se passa no Iémen não é um conflito”, corrige, “é uma agressão da Arábia Saudita”, diz ao “Expresso” este iemenita de 43 anos, residente em Sana’a, a capital. “Desde o primeiro dia de bombardeamentos [26 de março de 2015] que tudo é alvejado de forma indiscriminada: hospitais, escolas, fábricas, estádios, quintas, estradas, pontes, aeroportos, portos, armazéns, cidadelas, museus… Nada é poupado, nem mesmo casamentos, funerais, mercados e comunidades piscatórias.”

Junto ao Mar Vermelho, Al-Hudaydah é uma das localidades fustigadas pelos ataques de uma coligação de países da região, liderada pelos sauditas e que atua em socorro do ex-Presidente Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, internacionalmente reconhecido, mas deposto pelos rebeldes huthis (xiitas) em setembro de 2014. Suspeitando que os huthis usavam os pescadores de Al-Hudaydah para infiltrar armas fornecidas pelo Irão (xiita), a coligação atacou de forma cega, destruindo armazéns de peixe, mercados e barcos, ou seja, a principal fonte de rendimento local.

Crianças em pele e osso

Em outubro passado, uma reportagem do fotógrafo Abduljabbar Zeyad (agência Reuters) expôs o drama que se vive em Al-Hudaydah: num hospital local, crianças em pele e osso jaziam em macas, algumas sem força para se erguerem. A ONU estima que, nessa região, 100 mil crianças com menos de cinco anos corram riscos de subnutrição. Em todo o país, 10 mil já morreram de doenças há muito erradicadas noutras latitudes, como a cólera e o sarampo.

Casado e pai de quatro rapazes, Mohammed al-Hindi não se sente a salvo. “A vida tornou-se difícil e esgotante. Não há trabalho nem rendimentos, só medo e preocupações.” Quem trabalhava no sector privado perdeu o emprego. Os funcionários públicos, como ele, recebem de forma irregular e, às vezes, pela metade. “Atualmente, trabalho 10 dias por mês e recebo, no máximo, 30% do salário”, diz. “Os bombardeamentos são uma preocupação diária, tenho medo que atinjam a minha casa. Há mais de 670 noites que as crianças vão para a cama assustadas pelo som dos aviões.”

Paralelamente aos ataques aéreos — que já mataram mais de 10 mil pessoas, 4000 delas mulheres e crianças —, foi decretado um bloqueio por terra, mar e ar que reforça o isolamento do mais pobre dos países árabes, onde 90% do que se consome é importado. Os preços dos alimentos dispararam, falta eletricidade, combustível e água — o Iémen produz pouco petróleo e sofre dos maiores stresses hídricos do mundo. A ONU estima que 18,8 milhões dos seus 27,4 milhões de habitantes necessitem de ajuda humanitária.

O Iémen foi um dos países bafejados pela Primavera Árabe de 2011. Então, o Presidente Ali Abdullah Saleh abdicou do cargo no âmbito de um processo negocial que catapultou para o poder o seu vice, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, depois deposto pelos huthis. “Al-Hadi é 100% ilegítimo”, diz Mohammed. “Ele foi eleito [em 2012] para um mandato de apenas dois anos”, que expirou antes de os huthis tomarem Sana. Além disso, “ele abdicou antes de fugir para a Arábia Saudita. Um Presidente legítimo nunca apela à destruição do seu país nem à morte de compatriotas, como ele fez”.

Ganância geoestratégica

Para este iemenita, a coligação não atua em nome do regresso ao poder do ex-Presidente, nem da derrota dos huthis, nem mesmo da contenção do Irão. “São desculpas. Este é um plano da Arábia Saudita para pôr as mãos no nosso país com apoio internacional, mas isso nunca acontecerá enquanto houver um iemenita vivo.” Em agosto de 2015, os sauditas invadiram o arquipélago iemenita de Socotra, no Oceano Índico, património da UNESCO e famoso pelos seus dragoeiros, e iniciou a construção de uma grande base naval.

No Oceano Índico, o arquipélago de Socotra é famoso pelos seus dragoeiros ROD WADDINGTON, DE KERGUNYAH, AUSTRÁLIA / WIKIMEDIA COMMONS

Estrategicamente localizado, o Iémen controla o Estreito de Bab al-Mandab, o que lhe confere “grande importância regional e internacional e o torna alvo de vizinhos gananciosos”, diz Mohammed. A seu ver, a presença da Al-Qaida no país é uma prova da interferência da Arábia Saudita — ambas fervorosamente sunitas —, já que nas áreas controladas pelos jiadistas apoia-se Al-Hadi e a ofensiva militar. “A Arábia Saudita e a Al-Qaida são faces da mesma moeda”, acusa.

Mohammed recusa olhar para os huthis como os maus da fita. “Independentemente do que aconteceu, eles são iemenitas. E uma disputa entre iemenitas resolve-se localmente, através de negociações. Não há necessidade de uma interferência saudita nos nossos assuntos internos ao estilo de um herói que vem salvar os iemenitas dos huthis.”

Património sob fogo

Enquanto funcionário do Ministério do Turismo, ele sofre duplamente: pelo impacto que os bombardeamentos têm no povo e no vasto património histórico, arqueológico e religioso, único no mundo. Entre os 75 sítios de grande importância que já foram atingidos — alguns totalmente destruídos —, está a emblemática Cidade Velha de Sana’a, património da UNESCO.

“O mundo sabe o que se passa no Iémen, mas o dinheiro saudita é o preço pelo seu silêncio. É uma pena”, lamenta. “Mas quando a fonte de tanto dinheiro secar, tudo mudará. E isso está prestes a acontecer.”

(Foto principal: Al-Hajjarah, no topo das montanhas de Haraz YEOWATZUP, DE KATLENBURG-LINDAU, ALEMANHA / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 28 de janeiro de 2017. Pode ser consultado aqui

A guerra esquecida

Liderados pela Arábia Saudita, os ataques aéreos começaram há meio ano. Já mataram mais civis do que os combates em terra

Há uma guerra em curso que já não comove nem capta atenções. No Iémen, e à semelhança do que se passa na orla mediterrânica, muitos lançam-se ao mar para fugir a um futuro incerto — e mesmo à morte. Para esses, a Europa é um sonho impossível. “A maioria dos iemenitas que deixou o país foi [por mar] para o Djibouti e para a Somália”, explica ao Expresso” Philippe Dam, vice-diretor da organização humanitária Human Rights Watch.

“Normalmente, as duas fronteiras terrestres estão encerradas: junto à Arábia Saudita há uma frente de guerra; e a fronteira com Omã foi fechada quando a guerra começou.” Abrem ocasionalmente para deixar passar poucas pessoas.

Se querem deixar o país, “os iemenitas têm de apanhar barcos e ir para os únicos países onde podem chegar, Djibouti e Somália”, continua Philippe Dam. “Depois, uns ficam, outros seguem para a Etiópia ou para o Sudão”, igualmente pobres e instáveis.

Fugir para países instáveis

Muitos dos que fogem são refugiados que chegaram ao Iémen fugindo de conflitos nos seus países. Segundo o Alto-Comissariado da ONU para os Refugiados, o Iémen tem registados cerca de 246 mil refugiados, 95% dos quais somalis. Há ainda etíopes, iraquianos, sírios e eritreus. Um relatório de 3 de setembro da Organização Internacional para as Migrações diz que pelo menos 59.230 pessoas já fugiram para o Djibouti, Somália, Sudão e Etiópia.

“Compreendo perfeitamente que muita gente fuja”, diz ao “Expresso” Sameh Salah ad-Din, 33 anos, desde Sana’a. “Por tudo o que se está a passar aqui e pensando na segurança da minha família, também eu devia partir… Não esqueçamos que as pessoas que fugiram têm condições económicas ou, pelo menos, têm dinheiro para viver fora uns dois ou três meses, à espera de que tudo acalme. A maioria não pode fazer tal coisa…”

Sameh é o segundo de quatro filhos de um casal de professores sudaneses que chegou ao Iémen no início da década de 80. Após anos de guerra, o país precisava de mão de obra especializada, sobretudo para formar os jovens. O pai de Sameh foi à frente. Chegou a Sana’a integrado numa missão educativa. “Foi uma grande oportunidade para ele poder sair do Sudão e começar uma nova vida. Ainda só tinha um filho. Decidiu ficar por cá, a família cresceu e nunca mais saímos.”

Brincar ao som dos F16

Sameh é contabilista numa empresa de importação de bens, sobretudo alimentares. Continua a trabalhar, ainda que em horário reduzido, das oito da manhã à uma da tarde. “Perdi metade do salário por causa da guerra. Mas o maior problema é que vivo na zona de Hadda, perto das montanhas Al-Nahdayn, onde fica o palácio presidencial, um grande alvo dos bombardeamentos aéreos, e o meu trabalho fica na baixa de Sana’a. Todas as manhãs, tenho de passar por um posto das forças especiais, que também é um alvo. Mas tem de ser. As nossas vidas e as da nossa família estão em risco a cada segundo, as nossas casas também. Às vezes, há mais de 30 raides por dia. Um amigo dizia-me há dias: ‘Sempre que vou trabalhar, penso que posso não voltar a ver a minha família.’ É assim que nos sentimos.”

O “Expresso” recolheu o testemunho de Sameh na quarta-feira. “Esta manhã, numa rua ao lado do meu trabalho, uns miúdos brincavam. Subitamente, ouviu-se o som de um F16. As crianças começaram a gritar: ‘O avião! O avião!’ E lançaram-se a correr. Algumas choravam. Esta guerra afeta-nos a todos os níveis.”

A situação no Iémen agravou-se desde que, no fim de março, uma coligação de países da região liderada pela Arábia Saudita começou a bombardear o país, com o objetivo de arredar a minoria huthi do poder e de reinstalar o Presidente Abd Rabbuh Mansur al-Hadi.

“É muito preocupante. O meu gabinete concluiu que já foram mortos mais de 2000 civis”, alertou, segunda-feira, Zeid Ra’ad Al Hussein, alto-comissário da ONU para os Direitos Humanos, na abertura da 30ª sessão do Conselho de Direitos Humanos, em Genebra. A maioria foi atingida pelos bombardeamentos aéreos da coligação. “Estima-se que cerca de 21 milhões de iemenitas — 80% da população — precisem de ajuda. Relatos credíveis de violações dos direitos humanos por parte de todas as partes em conflito deviam ser amplamente investigados por um órgão independente e abrangente.”

No Iémen, um país fortemente tribal com 24 milhões de habitantes, além de haver bombardeamentos aéreos da coligação árabe, combatem tropas leais ao Governo, forças huthis, grupos leais ao ex-Presidente Ali Abdullah Saleh (deposto no contexto da Primavera Árabe) e a Al-Qaida na Península Arábica (que reivindicou o ataque ao “Charlie Hebdo”). Desde 2002, os EUA têm em curso uma operação de ataques com drones (aviões não tripulados) que, segundo o Alto-Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, terá morto mais de 40 civis, entre 1 de julho de 2014 e 30 de junho deste ano. Para complicar, na província de Al-Bayda (sul), tem-se registado um aumento da presença do autodenominado Estado Islâmico (Daesh).

Violência não poupa civis

A violência não tem poupado mercados, escolas, hospitais e fábricas. Na costa oeste, o porto de Al-Hudaydah, por onde entra a maioria da ajuda humanitária, deixou de estar operacional após ser alvejado pelos aviões da coligação. No sul, o de Aden continua a funcionar, embora o transporte de carga por terra para o resto do país esteja muito limitado.

Para os que sobrevivem — à guerra e ao bloqueio por terra, mar e ar imposto pela coligação —, as condições de vida são cada vez mais insuportáveis.

“Não temos eletricidade há cinco meses”, diz Sameh. “Só há combustível para os carros no mercado negro, que por estes dias está muito dinâmico. Grande parte dos geradores foram transformados para poderem trabalhar com bilhas de gás doméstico. Há água para beber, mas não nas casas, para lavarmos roupas ou tomarmos banho.” Sameh diz que o tempo que antes era passado fora de casa, a conviver, é agora gasto na fila para aceder a produtos básicos. “Os preços dos alimentos aumentaram como um foguete, uns 200-300%. Mas o pior de tudo é a falta de emprego.”

Para Philippe Dam, a indiferença internacional em relação a esta guerra tem uma explicação: Este conflito “tem pouca importância política para muitos atores mundiais, que, por isso, o ignoram. Quem beneficia com isto são aqueles países que não estão diretamente envolvidos, mas que contribuem para o aumento do número de mortos, como EUA e Reino Unido. Ambos fornecem ajuda militar à Arábia Saudita, aos Emirados Árabes Unidos e a outros membros da coligação. E ainda não foram condenados por esse papel”.

BALANÇO

21
das 22 províncias do Iémen são afetadas pela guerra. Só o arquipélago de Socotra, a 240 km do Corno de África e 380 km da Península Arábica, escapa à violência. Socotra já foi apontado como o local que receberá os 65 iemenitas presos em Guantánamo

90%
dos alimentos e do combustível consumido no país são importados. A Human Rights Watch defende que o bloqueio imposto pela coligação pode ser considerado crime de guerra

(Foto: Captura de ecrã do “site” da Amnistia Internacional, onde é publicado um artigo intitulado “Iémen: A Guerra Esquecida” AMNISTIA INTERNACIONAL)

Artigo publicado no Expresso, a 19 de setembro de 2015

Voando sobre um ninho de serpentes

Sete semanas de bombardeamentos não trouxeram ganhos à coligação liderada pelos sauditas nem enfraqueceram o poder dos huthis

Governar o Iémen é como dançar sobre cabeças de serpentes.” A frase pertence a Ali Abdullah Saleh e foi dita em 2009, durante uma entrevista do então Presidente iemenita ao jornal “Al-Hayat”, de Londres. Saleh levava 31 anos no poder e, atendendo ao facto de dois antecessores terem sido assassinados, ninguém diria que se aguentasse tanto tempo.

Saleh seria deposto dois anos depois, no contexto da Primavera Árabe. Fugiu para a Arábia Saudita e voltou ao Iémen. Hoje, continua a lutar pelo poder (para lá colocar um filho, diz-se) e conta, para essa missão, com o apoio de um aliado improvável — os huthis, contra quem Saleh travou várias guerras durante a sua longa presidência.

Saleh-huthis é apenas um dos exemplos das ‘danças’ arriscadas a que o ex-Presidente se referia. Outras combinações possíveis envolvem outras “serpentes” à solta no território iemenita — tribos problemáticas, grupos jiadistas, os separatistas do sul e todos aqueles que Saleh considerar uma ameaça à sua influência.

Guardas abrem alas aos rebeldes

Desde 26 de março que huthis e forças leais ao ex-Presidente são o alvo prioritário dos bombardeamentos da coligação liderada pela Arábia Saudita. No domingo, a residência de Saleh, em Sana’a, foi destruída pelas bombas. “Continuem a levantar as armas, preparem-se para sacrificar as vossas vidas na defesa contra estes ataques”, disse Saleh aos huthis, num vídeo gravado em frente aos escombros.

“Esta agressão é um ato de cobardia. Se são assim tão valentes, venham e enfrentem-nos no campo de batalha, venham e cá vos esperaremos. Bombardear com foguetes e caças não chega para conseguirem os vossos objetivos.”

Saleh não o disse mas com estas palavras formalizou a aliança com a milícia xiita, que já era percetível desde o início da crise. Um relatório do Conselho de Segurança da ONU de 20 de fevereiro refere que em setembro de 2014, quando, vindos do Norte, avançaram sobre a capital, “os huthis receberam ajuda explícita de Guardas Republicanos, organizada por membros da família de Saleh”, que assim escancararam as portas de Sana’a (que estava guardada por 100 mil guardas e reservistas) aos rebeldes.

Amanhã termina uma trégua de cinco dias aceite pelas partes em confronto e declarada com o intuito de ser prestada assistência humanitárias às populações. No Twitter, David Miliband, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros de Gordon Brown, anunciava, na quarta-feira, que a organização humanitária que dirige (International Rescue Committe) conseguiu entregar um carregamento de medicamentos a um hospital de Aden, no sul.

“Os bombardeamentos de caças sauditas e os ataques huthis e tribais contra o território da Arábia Saudita pararam. Mas combates difusos continuam por todo o país”, escreve o advogado Haykal Bafana, que vive em Sana’a, na mesma rede social.

Bombardeamentos inconclusivos

Sete semanas de ataques aéreos não alteraram — nem clarificaram — a relação de forças no terreno. A ONU já confirmou a morte de 828 civis, mas o número peca por defeito; a Freedom House Foundation avançou ontem com quase 4000 mortos. A tragédia humana não se fica, porém, por aqui. No início da semana, a Human Rights Watch (HRW) alertou para o aumento do recrutamento, treino e destacamento de crianças por parte dos huthis. Os menores são pagos com comida e folhas de qat, uma planta que, mascada, funciona como um estimulante suave, e que é uma instituição cultural no Iémen.

No comunicado, a HRW conta o caso de Ibrahim, de 16 anos, incentivado a juntar-se aos huthis pela família, que lhe ofereceu uma Kalashnikov (as munições ficam por conta dos rebeldes). No Iémen, o uso de crianças nos combates não é exclusivo dos huthis: tribos e jiadistas também o fazem.

Tudo conflui para um conflito de contornos únicos e solução complexa. “A política iemenita é complicada e exótica, com mudanças de alianças em que antigos inimigos se abraçam e velhos amigos envidam esforços para se matarem uns aos outros”, escreveu o prestigiado jornalista Patrick Cockburn no jornal “The Independent”. “O colapso de um país num estado de guerra permanente originará vagas de boat-people na direção da Europa Ocidental e de outros sítios em busca de refúgio. É absurdo que os líderes europeus finjam que estão a fazer alguma coisa em matéria de ‘terrorismo’ ou do afogamento de refugiados no Mediterrâneo quando ignoram as guerras que são as causas profundas destes fenómenos.” Para Cockburn, o ataque saudita ao Iémen aumentará o terrorismo e o número de barcos a transbordar de gente desesperada.

PAÍS EM GUERRA

828
civis mortos foram confirmados pela ONU no Iémen, 182 dos quais eram crianças. A OMS aponta para um total de quase 1500 e a Freedom House Foundation refere quase 4000

40
a 60 milhões de armas estão distribuídas por todo o território iemenita, estima a ONU. O país tem cerca de 26 milhões de habitantes

90%
dos cereais consumidos no Iémen são importados. Por estes dias, não há navios comerciais a atracar nos portos iemenitas — os sauditas impuseram um bloqueio naval

20%
da área de cultivo irrigada está plantada com qat. O abastecimento hídrico do Iémen depende quase exclusivamente dos lençóis freáticos, mas os peritos receiam que o país fique sem água dentro de uma década

QUATRO ANOS AGITADOS
NO SUL DA PENÍNSULA ARÁBICA

27 de fevereiro de 2011
Na sequência da Primavera Árabe o Presidente Ali Abdullah Saleh é posto em causa após 32 anos no poder. Ferido em junho, abandona o país.

27 de fevereiro de 2012
Mansour Hadi que fora vicepresidente de Saleh e era candidato único, é eleito Presidente do Iémen.

14 de janeiro de 2014
Al-Qaida da Península Arábica tenta explorar atentado do “Charlie Hebdo”, em Paris, dizendo que os irmãos Kouachi agiram por ordem sua.

Setembro 2014
Rebeldes huthis conquistam a capital, Sana’a, e o Presidente Mansour Hadi abandona a cidade. A Al-Qaida na Península Arábica (AQPA), inimiga dos huthis, faz uma declaração demarcando-se das “barbaridades do Daesh na Síria e Iraque” mas exortando ao combate contra os EUA que têm levado a cabo ataques com drones no país.

17 de outubro de 2014
Carro-bomba de suicidas da AQPA explode num posto de controlo numa estrada entre a cidade de Rada’a (Al Bayda) e a província de Zemar, matando dezenas de milicianos huthis e crianças de um autocarro escolar que passava na altura.

11 de fevereiro de 2015
EUA, Reino Unido e França fecham embaixadas no Iémen.

25 de março de 2015
Coligação liderada pela Arábia Saudita inicia campanha aérea em apoio do Presidente em exercício, forçado a fugir da cidade portuária de Aden, prestes a ser tomada pelas milícias dos huthis e seus aliados.

17 de abril de 2015
AQPA aproveita a luta entre rebeldes e forças governamentais para conquistar a base de Mukalla, no sudeste do país, assenhoreando-se de artilharia e carros de combate.

10 de maio de 2015
Caça F16 marroquino ao serviço da coligação internacional cai no Iémen, provavelmente abatido pelos rebeldes.

12 de maio de 2015
Negociada trégua de cinco dias entre os huthis e a coligação saudita que, em geral, é respeitada e permite o envio de alguma ajuda humanitária.

13 e 14 de maio de 2015
Realiza-se em Camp David, EUA, uma reunião do Conselho de Cooperação do Golfo, onde a Arábia Saudita opta por estar ausente, e durante a qual o Presidente Obama tentou sensibilizar os seus interlocutores para as vantagens regionais de um desanuviamento.

(Foto: Vista aérea de Sana’a, a capital do Iémen YEOWATZUP, DE KATLENBURG-LINDAU, ALEMANHA / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso, a 16 de maio de 2015

Bombardeamentos dificultam ajuda humanitária

UNICEF e Cruz Vermelha alertam para uma “situação muito crítica”, doze dias após o início dos bombardeamentos aéreos que visam conter o avanço dos houthis

Mais de 100 mil pessoas, na sua maioria mulheres e crianças, tiveram de fugir de casa na sequência dos bombardeamentos aéreos ao Iémen, denunciou esta terça-feira a UNICEF. A agência das Nações Unidas informou ainda que já foram mortas 74 crianças e que 44 foram mutiladas.

“São números por baixo. A UNICEF acredita que o número total de crianças mortas é muito maior”, lê-se no comunicado. 

O Comité Internacional da Cruz Vermelha informou que um avião comercial que transportava pessoal da organização de assistência humanitária aterrou em Sanaa, a capital do Iémen. Porém, não conseguiu ainda encontrar um operador que faça voar um avião de carga para transportar provisões para o país. 

“A situação no Iémen continua muito crítica. O conflito intensificou-se, sobretudo em Aden”, afirmou à Al-Jazeera Sitara Jabeen, porta-voz da Cruz Vermelha Internacional. “Ainda estamos à procura de um avião de carga para transportar abastecimentos para Sanaa.” 

Estes alertas surgem quase duas semanas após o início dos bombardeamentos aéreos, liderados pela Arábia Saudita (iniciados a 26 de março), e numa altura em que rebeldes houthis e forças leais ao Presidente Abd-Rabbu Mansour Hadi estão envolvidas em confrontos violentos no sul do país.  

Só na segunda-feira, esses combates terão provocado a morte de mais de 140 pessoas. 

Os combates mais intensos estão concentrados na zona de Aden, um bastião do Presidente Hadi, que refugiou-se na Arábia Saudita às primeiras horas dos bombardeamentos. Estes visam conter o avanço dos houthis (minoria xiita) — que, em setembro, tomaram a capital e, no mês passado, iniciaram um avanço para sul — e repôr a autoridade do Presidente Hadi.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de abril de 2015. Pode ser consultado aqui

À beira da desagregação


Norte-sul, sunitas-xiitas, Estado-tribos. O Iémen é uma manta de retalhos étnico-religiosos prestes a explodir

O início dos bombardeamentos ao Iémen, na madrugada de quinta-feira, apanhou a ativista iemenita Elham Manea de cama — duplamente febril, por questões de saúde e pela situação do seu país (Elham vive na Suíça). O “Expresso” perguntou-lhe se teme a divisão do país. “Sim, tenho esse receio. Há muitas causas a contribuir, desde logo a perceção de que o sul é controlado pelo norte. Temo que uma separação conduza a outra guerra civil.”

Até 1990, o Iémen correspondia, na verdade, a dois países: o Iémen do Norte, com capital em Sanaa, herdeiro da colonização otomana; e o Iémen do Sul, com capital em Aden, uma antiga colónia britânica a que se sucedeu um regime marxista, que depauperou o território (sobretudo após o fim da URSS).

A questão da unidade do Iémen foi agora relançada após a tomada do palácio presidencial de Sanaa pelos huthis (minoria xiita), em janeiro passado, e a fuga do Presidente, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, para Aden (sul). “Penso que a desintegração não é inevitável, mas é uma possibilidade não necessariamente ao longo das linhas pré-1990”, diz ao “Expresso” Manuel Castro e Almeida, ex-editor do importante jornal árabe “Asharq Al-Awsat”.

“Várias províncias importantes, como Marib, recusam-se a fazer parte de um norte controlado pelos huthis. Hadramaut não quer ser parte de um sul independente. Isto acrescenta muita complexidade a uma possível fragmentação. O que é inevitável no futuro — e isto num cenário de uma solução negociada — é uma descentralização e federalização.”

Geografia do caos

Paralelamente ao poder central, coexistem no Iémen atores não estatais, nomeadamente tribos, que dificultam a emergência de um sentimento nacional. Por exemplo, as tribos de Marib — região rica em recursos (nomeadamente petróleo) — são um desafio constante ao Estado, e agora também aos huthis. Em Hadramaut, a Confederação Tribal Hadrami, que agupa várias tribos, partilha um sentimento secessionista, mas prefere a independência a unir-se ao sul, como acontecia antes de 1990. Outro exemplo é o Movimento Separatista do Sul.

A complexidade do Iémen não acaba aqui. A Al-Qaida na Península Arábica (que reivindicou o ataque ao “Charlie Hebdo” e é o ramo mais ativo da organização terrorista) está ali sediada e tem alianças estratégicas com várias tribos — umas para combater o poder central, outras os huthis.

Suspeita-se que tenha sido a Al-Qaida a responsável pelos quatro atentados suicidas de 20 de março, em Sanaa, contra duas mesquitas frequentadas pelos huthis (mais de 140 mortos), ainda que o ataque tenha sido reivindicado pelo autodenominado Estado Islâmico.

“A presença da Al-Qaida e do Estado Islâmico (por muito limitada que seja de momento) juntamente com o caos provocado pela guerra civil representam uma mistura explosiva com potenciais repercussões globais”, diz Manuel Castro e Almeida, atual colunista do sítio “Al-Arabiya News”.

“O descontentamento gerado pela deterioração da situação económica e social bem como o ressentimento da população maioritariamente sunita em relação ao avanço dos huthis (xiitas), que são vistos como um braço do Irão, torna-se uma ferramenta de recrutamento poderosa para os dois grupos.”

À conquista do sul

Os bombardeamentos ao Iémen, realizados por dez países muçulmanos, são o culminar de uma situação efervescente que se arrasta desde setembro, quando os huthis invadiram a capital. “Faremos tudo o que for possível para proteger o Governo legítimo do Iémen, impedir que se desmorone e fique sujeito aos perigos das milícias”, afirmou Adel al-Jubeir, embaixador da Arábia Saudita nos Estados Unidos, após anunciar em Washington o início da ofensiva. “A situação no Iémen é perigosa. Uma milícia com poder aéreo, armamento pesado e mísseis balísticos é algo sem precedentes.”

Conflito por procuração

A avançada huthi para sul, na direção de Aden, para onde o Governo se tinha mudado, seguiu-se aos atentados de dia 20, contra as mesquitas e ao assassínio, dois dias antes, do jornalista e ativista dos direitos humanos Abdulkarim al-Khaiwani, apoiante do movimento huthi.

Pelo caminho, tomaram Taiz, a terceira cidade, e reprimiram quem se lhes opôs: precisamente em Taiz, oito civis foram mortos quando participavam numa manifestação anti-huthi.

Ameaçado pela aproximação dos huthis, o Presidente Hadi fugiu de Aden. Com os bombardeamentos já em curso, surgiam imagens da sua chegada a Riade. A Arábia Saudita — o grande poder sunita da região, guardiã das mesquitas sagradas de Meca e Medina — não tolera protagonismos xiitas junto às suas fronteiras. Em 2011, no contexto da Primavera Árabe, enviou tanques para o Bahrain em defesa da família reinante dos Al-Khalifa (sunitas), contestados nas ruas pela população de maioria xiita.

Segundo a empresa norte-americana de análises IHS, desde a Primavera Árabe — e a queda dos ditadores na Tunísia, Egito, Líbia e Iémen —, a Arábia Saudita tornou-se o maior importador mundial de armamento. Em 2015, Riade prevê gastar 9800 milhões de dólares (8900 milhões de euros), mais 52% do que no ano passado.

Quatro anos após a intervenção saudita no Bahrain, o conflito no Iémen assemelha-se a uma nova guerra por procuração entre os dois rivais do Médio Oriente: Arábia Saudita (país árabe, muçulmano e sunita) e Irão (país persa, muçulmano e xiita). “Este conflito tem assumido, cada vez mais, essa forma, principalmente após a criação do movimento huthi, em meados dos anos 90, por influência ideológica do Irão”, diz Manuel Castro e Almeida.

“Os sauditas e outros países árabes já estão bastante preocupados com os avanços iranianos no Líbano (através do Hizbullah) e no Iraque (a maioria xiita subiu ao poder após o fim de Saddam Hussein), e ainda com o decisivo apoio que Teerão tem dado ao brutal regime de Bashar al-Assad (Síria). Não estão dispostos a aceitar outro cenário em que forças leais ao Irão controlem militarmente um país árabe.” Sem surpresa, Teerão condenou o ataque: “É um passo perigoso”.

P&R

Quem são os huthis?
Originalmente, são os zaydis do norte, grupo religioso xiita, mas doutrinariamente próximo dos sunitas. Desde os anos 70, protestavam contra a discriminação do Governo e contra o avanço do salafismo (doutrina sunita ultraconvervadora e, por vezes, radical) que ameaçava a identidade zaydi. “Eram um movimento local, com reivindicações razoáveis e legítimas”, diz Manuel Castro e Almeida. O ponto de viragem deu-se após o líder, Hussein Badreddin al-Houthi, passar um longo período no Irão. Regressou em meados dos anos 90 e criou um grupo armado — os huthis — com uma agenda ativista e radical, baseada no revivalismo zaydi. (O atual líder é Abdul-Malik al-Huthi, irmão de Hussein, morto em 2004.) Sucederam-se grandes protestos antigoverno marcados pelo slogan “Morte à América, Morte a Israel, Que os judeus sejam amaldiçoados, Vitória para o Islão”, inspirado na revolução iraniana (1979). “Hoje, são um grupo fortemente influenciado pelo Irão”, diz Almeida. “Sem esta ligação, a crise nunca teria esta dimensão.” O Irão dá armas e dinheiro aos huthis. Estes, após entrarem na capital, estabeleceram uma ligação aérea Sanaa-Teerão.

Haverá invasão terrestre?
Paralelamente ao ataque aéreo, Riade impôs um bloqueio no estreito do Mar Vermelho. A coligação controla todo o espaço aéreo do Iémen e vários membros estão dispostos a entrar por terra, para proteger Aden. “Comparativamente aos países do Golfo, o Iémen tem pouquíssimo petróleo. Mas tem uma posição geoestratégica crucial, junto ao estreito Bab al-Mandab, que liga o Mar Vermelho ao Golfo de Aden e por onde transitam 3800 milhões de barris de petróleo por dia”, explica Almeida. Iniciado o ataque, o petróleo subia 6%.

Onde anda Saleh?
Deposto em 2012, durante a Primavera Árabe, o ditador Ali Abdullah Saleh é um dos protagonistas desta crise. Influente junto de muitos sectores iemenitas, Saleh está ao lado… dos huthis, que reprimiu e contra quem, desde 2004, travou seis guerras no norte. O investigador Brian Whitaker (autor do blogue “Al-Bab”) diz ao “Expresso”: “Parece que Saleh quer colocar o filho na presidência”. O milionário iemenita Hamid al-Ahmar anunciou uma recompensa de 50 milhões de riais iemenitas (212 mil euros) pela sua captura. Convém lembrar que antes de sair do poder, Saleh garantiu imunidade judicial…

O que resta da ‘Primavera’?
O Iémen foi um dos países tocados pela Primavera Árabe e aquele que, juntamente com Tunísia, Egito e Líbia, viu a vontade popular sobrepor-se e determinar a saída do poder de um ditador. Mas quatro anos depois, não há consequências positivas desse movimento. “Não há sequer a satisfação de ver um ditador ilegítimo como Saleh afastado do poder”, conclui o analista Manuel Castro e Almeida.

COLIGAÇÃO

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países participam na operação “Tempestade Decisiva”: Arábia Saudita (líder), Egito, Jordânia, Qatar, Kuwait, Bahrain, Emirados, Marrocos, Sudão e Paquistão

Artigo publicado no Expresso, a 28 de março de 2015