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Quem substitui Merkel? A Escócia pede independência? Trump, o que faz? (20 perguntas sobre o mundo em 2021)

Seleção de perguntas e respostas elaboradas pela secção Internacional do Expresso

A crise económica vai dar azo a demagogos e extremistas?

Em abril o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, afirmou ao Conselho de Segurança da ONU que a pandemia “poderia ameaçar a paz e a segurança no mundo”. Entrámos nesta década com uma crise económica que atingiu grande parte do mundo, saímos no meio de uma crise económica, social e sanitária como não se tinha vivido desde a II Guerra Mundial. As perspetivas não são animadoras, apesar de sinais de potencial crescimento das economias do sudoeste asiático. O extremismo de direita é real. Em outubro, dados do weforum.org alertam para um aumento de “320% no terrorismo de extrema-direita a nível global”. Este tipo de ações é considerada uma das maiores ameaças à segurança mundial, a par das alterações climáticas e dos ciberataques.

A vacina para a covid-19 vai chegar a todo o mundo?

Há organizações não-governamentais que muito têm batalhado para que a resposta a esta pergunta seja um claro “sim”, sem “mas”, e até foi criado um organismo internacional para garantir o acesso universal à vacina — o Covax. Mas o calendário de entrega dessas vacinas será muito diferente de país para país. O epidemiologista do Instituto Champalimaud Henrique Veiga-Fernandes já avisou que 53% das vacinas disponíveis estão nas mãos de 14% da população mundial, com alguns países a comprarem mais de cinco doses para cada cidadão.

Vão acabar as restrições à circulação entre países e continentes?

Enquanto a vacinação não for estendida a boa parte da população e surgirem novas mutações do coronavírus, vamos continuar a viver com restrições à circulação, como prova a suspensão de voos provenientes do Reino Unido decretada por muitos países europeus no último fim de semana. A Organização Mundial da Saúde tem feito alertas para uma provável terceira vaga nos primeiros meses de 2021. Governos de todo o mundo procuram equilíbrios entre retomar a circulação para garantir a sobrevivência de companhias aéreas, atividades turísticas e respetivos postos de trabalho, e evitar novas escaladas de contágio. O desafio é difícil e o verão pode ser um problema. Previsões a mais do que alguns meses são impossíveis. Há um ano nunca imaginaríamos estar a viver neste cenário.

Quem vai substituir Angela Merkel na liderança da Alemanha?

Dos 71 anos de existência da República Federal da Alemanha, o partido democrata-cristão da chanceler governou 50. Quando Merkel chegar ao fim do presente mandato soma 16 anos na liderança do Governo alemão, tantos quantos Helmut Kohl, cognominado “chanceler eterno”. Pressupõe-se que o próximo chefe de Governo saia da CDU/CSU, que continua a ser o mais votado, mas está longe de ter emergido uma figura capaz de galvanizar as hostes democratas-cristãs, que se reúnem em janeiro com o objetivo principal de eleger novo líder. Ninguém encabeça a corrida a três: Armin Laschet, ministro-presidente da Renânia do Norte-Vestefália, Friedrich Merz, afastado por Merkel há 20 anos, e Norbert Rottgen, líder do Comité de Negócios Estrangeiros do Parlamento federal. Um duro caminho até ao fumo branco.

Polónia e Hungria vão ser castigadas pelos desvios ao Estado de direito?

Poderão vir a ser, mas não já. Após ameaçarem vetar o orçamento europeu (2021-2027) e, com isso, comprometerem a chamada ‘bazuca’ financeira, os dois países do leste europeu aceitaram uma proposta da presidência alemã da UE que lhes garante um adiamento da possibilidade de virem a ser castigados. Caso vejam o acesso aos fundos comunitários em perigo por desvios aos princípios do Estado de direito, Polónia e Hungria poderão solicitar ao Tribunal de Justiça da UE que delibere sobre a legalidade das sanções. Até haver decisão judicial — o que poderá demorar mais de um ano —, continuarão a receber as verbas normalmente.

O fim da transição do ‘Brexit’ lançará o Reino Unido no caos?

O receio é legítimo. A dias do final o período de transição (as regras comunitárias mantiveram-se 11 meses após a saída da UE, a 31 de janeiro último) não há acordo sobre a relação futura entre o Reino Unido e os 27. Após sucessivos prazos e linhas vermelhas cruzadas, os últimos óbices são as pescas, já que as partes discordam do prazo e proporção em que os pescadores europeus perderão ter acesso às águas britânicas; e a concorrência, pois Bruxelas quer que Londres a acompanhe em todas as normas ambientais, laborais e sociais, para não obter vantagem indevida, e Boris Johnson vê nisso um atentado à soberania. A isto acresce nova estirpe do coronavírus, a ditar restrições às viagens entre os dois lados do Canal da Mancha.

A Escócia convoca novo referendo?

Os mais de 50% que as sondagens atribuem ao Partido Nacional Escocês (independentista) para as eleições regionais de 6 de maio obrigam a admitir essa hipótese. A primeira-ministra, Nicola Sturgeon, defende nova consulta popular de autodeterminação, mais de seis anos depois de os escoceses terem decidido (55%-45%) ficar no Reino Unido. O Governo britânico (cuja autorização é legalmente necessária) argumenta que em 2014 os independentistas prometeram que a resposta das urnas valia “por uma geração”, mas Sturgeon responde que o ‘Brexit’ justifica reabrir a questão, já que 62% dos escoceses votaram a favor de ficar na UE. As condições excecionais aprovadas para a Irlanda do Norte agravam o descontentamento escocês.

Os separatistas vão vencer as eleições na Catalunha?

Vão. Todos os estudos de opinião indicam que a 14 de fevereiro haverá maioria de deputados separatistas, que podem mesmo somar uma inédita maioria de votos. Tal dará asas aos que continuam a exigir um referendo de autodeterminação, impossível à luz da Constituição. O Governo central, de esquerda, tem-se mostrado dialogante com os independentistas, de cujos votos precisou para ser investido e viabilizar orçamentos. Mas há claras divisões entre as forças separatistas catalãs, quer políticas (vão da extrema-esquerda ao liberalismo conservador) quer táticas (o fugitivo Puigdemont defende uma colisão frontal com Madrid, ao passo que a Esquerda Republicana se mostra hoje mais pragmática e realista).

Biden vai fazer regressar os EUA aos acordos denunciados por Trump?

Se não a todos, pelo menos a alguns dos mais importantes, como o Acordo de Paris sobre as alterações climáticas, como Joe Biden já anunciou. Fazer regressar os EUA aos acordos internacionais denunciados por Donald Trump será a forma mais visível de o novo Presidente se distanciar do legado isolacionista do antecessor e reintegrar os EUA na dinâmica internacional do multilateralismo.

O que fará Donald Trump fora da Casa Branca?

Quieto não ficará. Não sabemos se o ainda Presidente assistirá à posse do seu sucessor, Joe Biden, ou se marcará o dia 20 de janeiro com um comício ou até lançando uma candidatura às presidenciais de 2024. Trump, que repete sem fundamento que as eleições foram manipuladas, quer fazer dessa suspeita e do poder que tem sobre o Partido Republicano (o seu resultado foi expressivo, apesar da derrota) a alavanca de um regresso. Manter-se-á no palco mediático por vontade própria, possivelmente na TV, decerto no Twitter; e também pode ter protagonismo como alvo de investigações e processos judiciais.

Jair Bolsonaro será alvo de destituição?

A vitória de Joe Biden nos Estados Unidos e os números da pandemia são um mau sinal para o Presidente brasileiro, prestes a completar dois anos de mandato. O país é o terceiro no mundo com mais casos de covid-19: 7,2 milhões de contágios e mais de 185 mil mortos. Apesar disso, como disse ao Expresso o politólogo Octávio Amorim Neto, o “fator-chave para o enfraquecimento do bolsonarismo será o mau encaminhamento da questão fiscal subjacente aos apoios estatais. Se o mercado consolidar a expectativa de que a economia está numa rota insustentável, 2021 poderá testemunhar um círculo vicioso, em que o mau desempenho económico e o enfraquecimento político do Governo de Bolsonaro se retroalimentam aceleradamente”. A hipótese de o descalabro económico originar descontentamento que dê origem à destituição é possível, mas pouco provável.

O regime de Nicolás Maduro aguenta-se na Venezuela?

O controlo do coronavírus parece ser o único fator que corre bem ao que resta do regime chavista, segundo números oficiais: a Venezuela declarou menos de mil óbitos, apesar de ter quase 30 milhões de habitantes e de constantes alertas sobre carências no sistema de saúde. Maduro venceu as legislativas de dia 6 num sufrágio boicotado pela oposição, em que a abstenção ultrapassou os 65%. Treze dias depois, questionado pela CNN sobre a permanência dos valores do socialismo, respondeu: “Às vezes avançamos, outras recuamos. Talvez hoje tenhamos recuado no que diz respeito aos nossos valores socialistas. Reconheço isso.” A sua permanência no poder num país onde vivem muitos portugueses e lusodescendentes depende da capacidade de resposta da oposição e dos apoios internacionais que esta conseguir.

As tensões em Caxemira vão continuar?

Tudo indica que sim, se olharmos para as últimas notícias das duas potências nucleares que lutam pela posse da região — Índia e Paquistão. No dia 1 de novembro, tropas indianas mataram um dos principais comandantes das milícias paquistanesas em Caxemira. No dia 2, o primeiro-ministro do Paquistão, Imran Khan, disse que ia dar estatuto de província a esta região disputada e, no fim desse mês, o Governo indiano entregou ao Conselho de Segurança da ONU uma pasta com o que considera serem provas de que milícias paquistanesas estavam a planear um grande ataque terrorista na região.

O sistema vigente em Hong Kong cai de vez?

Mesmo que não seja para já, será muito mais cedo do que os defensores do modelo democrático poderiam prever. Ao abrigo do acordo de devolução de 1997, assinado entre a China e o Reino Unido, faltam mais de 20 anos para o fim do regime “um país, dois sistemas”, mas os garrotes a várias das liberdades especiais de que a ex-colónia britânica gozava estão em contínua e acelerada erosão. A imposição da lei da segurança nacional por Pequim silenciou os protestos que se faziam ouvir desde março de 2019. Mais recentemente, o abandono em massa de todos os deputados da oposição no Parlamento de Hong Kong foi mais uma prova de que a luta está, se não perdida, gravemente ferida.

O equilíbrio no Mar da China vai mudar com o crescente domínio de Pequim?

Vai pelo menos contribuir para aumentar a tensão naquelas águas. O Mar do Sul da China é apetecível não só pelo controlo que permite do intenso fluxo comercial como pelas suas reservas naturais, em especial petróleo e gás. Vários países disputam a soberania sobre ilhas, recifes e outros pontos estratégicos, como Vietname, Malásia, Filipinas, Brunei, Indonésia e Taiwan, além da China. O que causa mais preocupação é a crescente presença de embarcações militares chinesas e norte-americanas (e forças aliadas), envolvidas em exercícios ao estilo de marcação cerrada em que a mais pequena distração pode originar uma verdadeira batalha naval.

O Irão vai voltar ao acordo nuclear com o ocidente?

Há esperança, agora que já não é Donald Trump a gerir a política externa da Casa Branca, mas as probabilidades são poucas. O Presidente eleito, Joe Biden, disse em campanha que quer reativar o acordo nuclear de 2015, que previa o fim das sanções económicas ao Irão em troca do fim do seu programa de enriquecimento de urânio. A República Islâmica já tem 12 vezes mais urânio do que o estipulado neste acordo (diz a Agência Internacional de Energia Atómica) e garante que vai exigir indemnizações pelos três anos de pesadas sanções que Trump repôs. Justificar politicamente uma compensação monetária de milhões ao maior rival dos Estados Unidos no Médio Oriente pode revelar-se impossível até para o Partido Democrata.

Benjamin Netanyahu perderá por fim o poder?

É possível, mas não garantido. Em 2021 Israel realizará novas eleições legislativas, as quartas em dois anos, e Netanyahu volta a ser opção. Os resultados obtidos pelo seu partido (Likud, de direita) nos últimos escrutínios têm-no obrigado a uma engenharia negocial, mas sempre tem conseguido manter o cargo de primeiro-ministro. A mais recente crise política penaliza-o mas, dizem as sondagens, prejudica muito mais as forças à esquerda que se lhe opõem. Netanyahu terá a vida dificultada pelo início do julgamento por corrupção, em fevereiro, mas já deu mostras de ser um mestre da política.

A guerra civil na Etiópia vai transbordar para a região?

Mês e meio após o início das hostilidades, diz-se da região do Tigray, no norte, que é a última fronteira para a definição do carácter do Governo etíope. Um conflito político e ideológico que crescia em lume brando transformou-se numa guerra civil sangrenta e ameaça desestabilizar a região já instável e vulnerável em que se insere. O primeiro-ministro Abiy Ahmed fez-se eleger em 2018 como paladino da paz, ganhou o Nobel em 2019 e, passado um ano, não hesitou em resolver a disputa avançando com as tropas federais sobre a capital do Tigray, cujo governo regional é chefiado pelo partido que mandou no país 30 anos e que Ahmed desalojou. Para trás ficaram três décadas de guerra com a Eritreia, que pode agora estalar de novo, e ficam, para já, centenas de milhares de deslocados internos e refugiados no vizinho Sudão.

Moçambique vai receber ajuda internacional para combater o terrorismo?

Depois de três anos de secretismo sobre a resposta (ou ausência dela) aos ataques terroristas que assolam a província de Cabo Delgado e já obrigaram meio milhão de pessoas a abandonar as suas casas, o Governo moçambicano apelou à ajuda internacional. O Presidente Filipe Nyusi foi inicialmente vago, mas desde 15 de dezembro o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros de Portugal, Augusto Santos Silva, foi mandatado pela União Europeia para preparar a ajuda europeia a Moçambique. O chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, pediu ao ministro português que se desloque a Moçambique como seu enviado para abordar a a situação com as autoridades locais. A juntar aos mercenários esparsos que se sabe estarem a operar no terreno, não se percebe sequer se em articulação com o exército moçambicano, parece ser o primeiro passo para futuras ações concretas.

A Líbia vai finalmente ter governo?

É uma tarefa difícil, já que um governo nacional terá de conciliar interesses conflituantes por parte de atores nacionais, mas também internacionais, que participam na guerra em curso em apoio dos dois lados: Turquia e Qatar estão ao lado do Governo de Trípoli, reconhecido pelas Nações Unidas; Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos apoiam a ofensiva do general Khalifa Haftar, a partir do leste do país. Para complicar, há posições dúbias, como a da França, que oficialmente está ao lado de Trípoli e na prática apoia a rebelião.

Textos escritos por Ana França, Cristina Peres, Manuela Goucha Soares, Margarida Mota, Pedro Cordeiro.

(IMAGEM PXHERE)

Artigo publicado no “Expresso”, a 24 de dezembro de 2020. Pode ser consultado aqui