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Nowruz Mubarak! O novo ano persa começou esta quinta-feira: seguem-se 13 dias de fogueiras, piqueniques e mesas com ‘sete ésses’

Para milhões de pessoas de cultura persa, a chegada da primavera coincide com a entrada num novo ano. É altura de celebrar o Nowruz, festividade de 13 dias que celebra a natureza e o que dela cada um pode extrair para viver o novo ano com otimismo e positividade. Sete curiosidades sobre o Nowruz

Um iraniano participa na festa do fogo, em Teerão, um dos rituais do Nowruz ABEDIN TAHERKENAREH / EPA

Em várias regiões do globo, centenas de milhões de pessoas de cultura persa aperaltam-se, esta quinta-feira, para entrar num novo ano. Pelo calendário persa (solar), começa hoje o ano 1404.

O início das festividades — a que chamam Nowruz (“novo dia”, em língua farsi) — coincide com o equinócio da primavera. Durante 13 dias, famílias e comunidades celebrarão o recomeço (representado pela entrada num novo ano) e o renascimento (simbolizado pelo ciclo de renovação da natureza que a primavera representa).

A cada pessoa, individualmente, o Nowruz convida à reflexão e proporciona uma oportunidade para recarregar energias.

ASSIM FALOU ZARATUSTRA

As raízes do Nowruz remontam ao Zoroastrismo, religião muito antiga que o Império Persa (550 a.C.-651 d.C.) — de que a República Islâmica do Irão é herdeira — tornou religião oficial. Esse credo foi fundado por Zoroastro, profeta também conhecido como Zaratustra, que terá vivido ainda antes de o império se afirmar.

No Zoroastrismo, o Nowruz tem um significado profundamente espiritual e cósmico. Segundo a tradição, a festividade significa o regresso a um espírito que esteve ausente durante os meses do inverno e simboliza o triunfo do bem sobre o mal, da alegria sobre a tristeza, da luz sobre a escuridão.

DA TURQUIA AO AFEGANISTÃO

Nowruz é celebrado por grupos étnicos que habitam territórios ao longo da antiga Rota da Seda. É o caso de iranianos, paquistaneses, afegãos, turcos, tajiques, curdos e também os tártaros da Crimeia, território ucraniano que a Rússia invadiu e anexou em 2014.

Nalguns países da Ásia Central, Médio Oriente, Cáucaso e Balcãs, é feriado nacional. Naturalmente, o Nowruz é também assinalado um pouco por todo o mundo no seio das comunidades de origem persa na diáspora.

Quando esteve na Casa Branca, Barack Obama assinalou a data, anualmente, com uma mensagem dirigida ao povo e às autoridades do Irão. Nesta, em 2013, mostrou-se esperançoso de que Estados Unidos e Irão pudessem “ir além das tensões” e “ultrapassar décadas de desconfiança”.

‘ABANAR A CASA’

Apesar de o tiro de partida para os 13 dias de festa ser dado apenas pelo equinócio, os preparativos começam com semanas de antecedência.

Para entrar no novo ano com o pé direito, há que ter a consciência limpa e a casa num brinco, pelo que uma das tarefas prioritárias é uma limpeza a fundo — um ritual chamado Khane-takani, que significa “abanar a casa”.

Na prática, são feitas intervenções não tão quotidianas como lavar os tapetes, limpar o quintal, arrumar o sótão, livrar-se de tralha e até pintar a casa.

Tudo contribui para criar a sensação de um recomeço limpo e fresco. E as casas ficam asseadas para receber familiares, como também é tradição no Nowruz.

A MESA DOS SETE ‘S’

Nas casas, o convívio familiar faz-se à volta de mesas fartas e decoradas a preceito. Uma das principais tradições do Nowruz passa por compor uma mesa com sete objetos, todos com nomes começados pela letra S — os haft sin (sete ésses, em farsi). Cada um deles representa desejos para o novo ano.

  • Sabzeh (rebentos de trigo, cevada ou lentilhas cultivados num prato uma ou duas semanas antes do Nowruz) simboliza o renascimento e o crescimento.
  • Samanu (pudim doce feito de trigo) representa a doçura e a fertilidade.
  • Senjed (fruta seca de oleastro) visa despertar o amor.
  • Seer (alho) simboliza a medicina e a saúde.
  • Seeb (maçã) invoca a beleza.
  • Somagh (sumagre) simboliza o nascer do sol e o recomeço.
  • Serkeh (vinagre) simboliza a idade e a paciência.

A composição da mesa pode diferir de região para região e, frequentemente, há outros objetos: espelho (autoconhecimento e reflexão), moedas (riqueza), relógio (tempo), ovos pintados (fertilidade, criação e renovação da vida), peixes dourados (vida e movimento), velas (luz, sabedoria e esperança), jacintos (chegada da primavera) e um livro de sabedoria, geralmente o Alcorão, mas também pode ser um livro de poesia.

Este ano, o Nowruz coincide com o mês sagrado do Ramadão, pelo que as refeições têm de esperar pelo pôr do sol.

NOITE DAS FOGUEIRAS

Na última quarta-feira do ano que finda, realiza-se o Charshanbeh Suri ou noite da fogueira. Trata-se de uma celebração comunitária em que as pessoas saltam por cima de fogueiras acesas em praças públicas para purgar as negatividades do ano que fica para trás.

À volta das fogueiras, interpretam-se canções tradicionais e realizam-se danças. No ar, há fogo de artifício. Há também quem vá de porta em porta pedir iguarias, recebendo geralmente frutos secos.

O fogo é um elemento importante no Zoroastrismo, que considera que o deus do bem é adorado mediante o fogo sagrado mantido aceso pelos sacerdotes nos templos. Por essa razão, a cremação não é permitida para que esse elemento natural não seja contaminado.

Neste dia, há famílias que aproveitam para reabastecer o seu domicílio de água, num gesto associado à ideia de purificação e à saúde.

FIROUZ, O ENTERNAINER

Na época do Nowruz, sai à rua Haji Firouz, uma personagem imaginária do folclore iraniano. Veste-se com roupas vermelhas brilhantes e um chapéu de feltro e tem o rosto coberto de fuligem. Entretém os transeuntes com cânticos tradicionais, danças e a tocar pandeiretas, em troca de algumas moedas.

PIQUENIQUES NA NATUREZA

O 13.º e último dia do Nowruz é dedicado à natureza (Sizdah Bedar). Tradicionalmente, as pessoas passam o dia fora de casa, em parques, nas margens de rios ou em campos, para desfrutar do meio ambiente, ouvir música, jogar ou simplesmente passar o tempo à conversa com familiares e amigos.

Este dia é também aproveitado para atirar aos cursos de água o sabzeh, os rebentos plantados num prato e colocados na ‘mesa dos sete ésses’. Acredita-se que estas plantações absorveram as agruras do ano que termina pelo que, com este gesto simbólico de as atirar à água corrente, afastam a má fortuna do novo ano.

No Irão, em alturas de manifestações populares e tensões com as autoridades, estes momentos relaxados ao ar livre são aproveitados para atitudes de desafio às regras conservadoras impostas pelos ayatollahs. Não raras vezes, homens e mulheres dançam uns com os outros. E os lenços (hijabs) de muitas mulheres, de uso obrigatório no país, descaem da cabeça para os ombros e deixam os cabelos à mostra.

No Irão, o Nowruz é uma celebração secular que resiste ao espartilho social e cultural que decorre da Revolução Islâmica de 1979. Os seus rituais estão firmemente enraizados na cultura iraniana e são cumpridos por cidadãos de todas as religiões e origens étnicas. Trata-se de uma celebração nacional e não religiosa, que o regime teocrático aceita como feriado oficial.

A Organização das Nações Unidas reconheceu o poder do Nowruz como cimento cultural da resiliência e sustentabilidade das sociedades e inscreveu-o na Lista de Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO.

“Nestes tempos de grandes desafios, o Nowruz promove o diálogo, a boa vizinhança e a reconciliação”, defendeu o secretário-geral da ONU, António Guterres.

A 21 de março de cada ano, é celebrado o Dia Internacional do NowruzNowruz Mubarak!

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de março de 2025. Pode ser consultado aqui

Eleições: não está em causa quem ganha, antes a legitimidade da República Islâmica

O regime iraniano enfrenta uma crise de legitimidade e os ayatollahs já não o conseguem esconder. Num apelo desesperado, Ali Khamenei instou, há dias, os seus conterrâneos a votarem nas eleições desta sexta-feira, 1 de março, para o Parlamento e para a Assembleia de Peritos, o órgão que escolhe o Líder Supremo. Os opositores, por seu lado, apelam ao boicote. Após as últimas eleições terem registado um mínimo histórico de afluência às urnas, a República Islâmica está pressionada mais do que nunca pela urgência em inverter a tendência, para se mostrar relevante

Da última vez que o Irão realizou eleições legislativas, em fevereiro de 2020, o país estava ainda sob o signo do choque. A 4 de janeiro, uma das figuras mais prestigiadas da República Islâmica, o general Qasem Soleimani, tinha sido assassinado por um drone disparado pelos Estados Unidos, estava ele no aeroporto de Bagdade, no Iraque. No dia do voto, o sentimento anti-ocidental estava ao rubro entre os mais entusiastas do regime religioso.

Esta sexta-feira, dia 1 de março, os iranianos regressam às urnas para escolher os seus representantes no Parlamento (Majlis) e também os membros da Assembleia de Peritos, o órgão encarregue de escolher o Líder Supremo. O escrutínio acontece num contexto em que, seja pela inimizade de décadas com os Estados Unidos, ou pela aliança com a Rússia, seja pelo apoio de Teerão a grupos armados na região, como o palestiniano Hamas ou o libanês Hezbollah, ambos protagonistas na guerra em curso na Faixa de Gaza, o país sente-se na mira dos grandes poderes ocidentais.

Esta perceção não estará ausente destas eleições, que constituirão um dilema para os eleitores: “Se os candidatos da linha dura e anti-Israel vencerem as eleições para o Parlamento, então poderão legislar no sentido de empurrar o governo e as forças armadas para uma abordagem mais conflituosa em relação aos conflitos na região”, comenta ao Expresso Mohammad Eslami, investigador iraniano na Universidade do Minho.

“Na mesma linha, se a prioridade do Parlamento for a economia e a subsistência das pessoas, [os novos deputados] poderão reorientar o regime para uma abordagem mais pacífica.”

Estas serão também as primeiras eleições desde a morte da iraniana Mahsa Amini, na sequência de ferimentos infligidos pela “polícia da moralidade” após ser detida por não usar o véu islâmico segundo a etiqueta da República Islâmica. O assassínio da jovem de 22 anos desencadeou uma vaga de protestos populares antirregime que duraram meses e só terminaram quando o regime começou a deter e a enforcar manifestantes, na sequência de julgamentos considerados fraudulentos.

Na crença de que votar é validar a República Islâmica e contribuir para a sua perpetuação, os opositores ao regime dos ayatollahs têm-se multiplicado em apelos ao boicote como forma de acentuar o divórcio entre uma parte significativa da sociedade e a hierarquia religiosa no poder.

“Estas eleições têm uma importância significativa uma vez que as anteriores registaram uma taxa de participação inferior a 50% [exatamente 42,57%], um mínimo histórico desde a Revolução Islâmica”, em 1979, diz Eslami. Para se mostrar relevante e com saúde, o regime iraniano — que tem sido desafiado por sucessivas vagas de contestação popular (por razões políticas, sociais e económicas) — está pressionado pela necessidade de inverter a tendência.

“Outro aspeto importante é o surgimento de vários movimentos sociais envolvidos ativamente no processo eleitoral” continua o iraniano. “Entre eles estão a oposição iraniana e antigos grupos reformistas que se recusam a apoiar as eleições, defendendo uma posição de ‘Não às eleições manipuladas’ e expressando relutância em conceder legitimidade ao atual regime através do voto. Já os apoiantes do regime defendem a participação eleitoral sob a bandeira ‘Desta vez, tudo vai mudar’”, fazendo fé que os próximos representantes parlamentares estarão comprometidos com “uma conduta transparente nas suas funções”.

No Índice de Perceção da Corrupção de 2023, o Irão surge na posição 149, numa lista de 180 países.

A 18 de fevereiro, o Líder Supremo do Irão, o ayatollah Ali Khamenei, de 84 anos, fez um apelo ao voto com laivos de desespero, colocando a ênfase mais na participação do que no sentido do voto. Disse então:

Todos devem participar nas eleições. As eleições são o principal pilar da República Islâmica. As eleições são a forma de reformar o país. Aqueles que querem resolver os problemas e repará-los devem recorrer às eleições. O caminho certo são as eleições. A principal prioridade é a participação do povo. A escolha das pessoas certas é secundária.”

Mas enquanto o líder religioso suplica para que os iranianos votem, por todo o país há ações de boicote ao ato eleitoral como, por exemplo, cartazes de campanha queimados. Em declarações ao Expresso, fontes da oposição iraniana no exílio dizem-se cientes que “estas eleições são vitais para que o regime recupere legitimidade”. Mas “a verdade é que o povo iraniano como um todo não acredita mais nas eleições fraudulentas deste regime”.

Conscientes que a legitimidade que o sistema político iraniano procura depende em muito da taxa de afluência às urnas, esta semana, 275 personalidades iranianas das áreas política, social e cultural uniram-se num apelo público ao boicote a este escrutínio que consideram ser “encenado”.

Na mira destes notáveis — um deles Morteza Alviri, um antigo presidente da Câmara Municipal de Teerão e embaixador em Espanha — está, designadamente, a quantidade de candidaturas desqualificadas pelo Conselho dos Guardiães.

Ainda assim, após três meses de análise às qualificações dos candidatos, este órgão composto por seis teólogos e seis juristas (que exercem mandatos de oito anos) viabilizou mais de 15.200 nomes para disputar as eleições legislativas. Entre os candidatos, há 1713 mulheres, mais do dobro das 819 que se apresentaram a votos em 2020.

Uma complexa pirâmide de poder

A estrutura de poder da República Islâmica é constituída por um emaranhado de órgãos eleitos por sufrágio direto universal e outros nomeados que têm no topo dessa cadeia de decisão o Líder Supremo. Para além do Parlamento e da Assembleia de Peritos, também o Presidente é escolhido por voto popular.

Esta sexta-feira, serão escolhidos os 290 deputados e deputadas do Parlamento (formalmente designado Assembleia consultiva Islâmica), com idades entre os 30 e os 75 anos de idade, para mandatos de quatro anos. Cinco assentos estão reservados a representantes de minorias.

Concorrem dezenas de partidos políticos, mas na dinâmica política quotidiana, o sistema movimenta-se em função de outras sensibilidades: conservadores versus reformistas.

“Apesar da multiplicidade de partidos, o sistema político no Irão funciona ao estilo de coligações, com os partidos a alinharem-se sob as bandeiras abrangentes dos reformistas, moderados ou conservadores, a fim de garantir uma maioria no Parlamento”, explica Eslami.

“Estes três principais movimentos políticos no Irão representam diferentes ideologias e crenças: os reformistas pressionam por reformas sociais e políticas, os moderados defendem uma abordagem mais pragmática da governação e os conservadores os valores e princípios tradicionais. Este processo de construção de coligações destaca a importância da cooperação e do compromisso no sistema político iraniano.”

Também a eleição para a Assembleia de Peritos encerra um alto grau de complexidade. “Para serem elegíveis, os candidatos devem possuir qualificações específicas a nível religioso, político e da jurisprudência. Devem ter uma compreensão profunda dos ensinamentos e princípios islâmicos, bem como experiência em jurisprudência islâmica. Devem também ter uma sólida experiência política e ser capazes de navegar pelas complexidades do sistema político iraniano. O número de candidatos que conseguem reunir estas qualificações e, portanto, inscrever-se como candidatos é muito baixo”, conclui Eslami.

“Durante este processo de seleção, mais de metade dos candidatos são normalmente desqualificados, limitando ainda mais o número de indivíduos que podem concorrer a um lugar na Assembleia de Peritos. Como resultado, é comum que haja apenas dois ou três candidatos a competir por cada vaga, tornando o processo eleitoral altamente competitivo e exclusivo.”

Um nome que, este ano, não passou no crivo do Conselho dos Guardiães, suscitando indignação entre os reformistas, foi Hassan Rohani, que foi Presidente do Irão entre 2013 e 2021 e que era membro da Assembleia de Peritos desde o ano 2000.

Rohani exerceu a presidência com o rótulo de moderado tendo sido responsável pela assinatura do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano, a 14 de julho de 2015, que contribuiu para retirar a República Islâmica do isolamento internacional e aliviar as dificuldades económicas do povo ao garantir o levantamento de sanções internacionais.

Rohani foi sucedido na presidência pelo conservador Ebrahim Raisi, que virou o Irão para oriente, designadamente na direção da Rússia.

(IMAGEM PARLIAMENTARY UNION OF THE OIC MEMBER STATES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de fevereiro de 2024 e no “Expresso”, a 1 de março de 2024. Pode ser consultado aqui

Iranianas preparam nova revolta contra o regime dos ‘ayatollahs’: “Vejo as mulheres mais motivadas do que assustadas”

A um mês do primeiro aniversário da morte da jovem iraniana Mahsa Amini às mãos da polícia da moralidade, por usar o lenço islâmico de forma “imprópria”, há cada vez mais iranianas a sair à rua sem o hijab na cabeça. Ao Expresso, uma jovem envolvida em ações clandestinas de resistência ao regime religioso partilha as motivações das mulheres e levanta o véu sobre a jornada de contestação que se projeta para o próximo mês. “De certeza que o regime vai aumentar a repressão, mas até a repressão tem limites”, desafia

O Irão está em contagem decrescente para aquilo que se perfila como uma nova vaga de protestos contra as autoridades teocráticas. Dentro de exatamente um mês, passará um ano desde a violenta morte da iraniana Mahsa Amini, de 22 anos, num hospital de Teerão, na sequência de ferimentos infligidos por agentes da polícia da moralidade. A jovem fora detida por levar o lenço islâmico na cabeça (hijab) de forma “imprópria”.

Nas ruas do país, uma presença crescentemente indiscreta é reveladora do nervosismo do regime quanto a esse cenário. Dez meses após os grandes protestos antirregime que se seguiram à morte da jovem curda, a polícia da moralidade regressou em força, com “patrulhas de orientação” a percorrer os espaços públicos com o foco nas mulheres.

“Eles colocaram a polícia da moralidade em todas as ruas principais. Há carros grandes com agentes do sexo feminino que mandam parar as mulheres e meninas que não usam o véu e levam-nas para as esquadras. Recentemente, o município de Teerão contratou 400 agentes para controlar as estações de metro e impedir que mulheres sem véu usem esse transporte”, diz ao Expresso Niloufar (nome fictício), uma iraniana de 26 anos, residente na cidade de Shiraz, no sul do país.

No Irão, a quantidade de mulheres que recusa cobrir a cabeça quando sai de casa aumentou muitíssimo, num claro gesto de desafio ao regime dos ayatollahs. “Apesar das patrulhas, muitas mulheres não colocam o véu nas ruas”, continua a jovem. “É uma forma de protesto. As mulheres falam sobre a próxima revolta que será ainda maior e mais forte” do que a do ano passado.

Para além do boicote ao hijab, cujo uso é obrigatório pela lei da República Islâmica, as mulheres têm recorrido a “formas mais profundas de mostrar oposição”, diz Niloufar. “Apesar da repressão, há cada vez mais palavras de ordem contra o regime escritas nas paredes. Os grandes cartazes com fotos dos líderes do regime, em particular [o Líder Supremo, o ayatollah] Ali Khamenei, são destruídos e às vezes queimados. Isto é muito percetível.”

Também nas redes sociais, as mulheres desdobram-se em incentivos à mobilização no primeiro aniversário da morte de Mahsa Amini. “É hora de nos erguemos”, “não há outra forma”, “vamo-nos vingar”, lê-se nos cartazes em farsi, exibidos por iranianas que ocultam a identidade, mas não os cabelos sem véu.

“Eu vejo as mulheres mais motivadas do que assustadas. Estão unidas, querem liberdade e direitos básicos. Sabem que podem ser presas, mas estão determinadas”, diz Niloufar. “Os mullahs têm todas as razões para temer uma nova revolta no aniversário da morte de Mahsa Amini. De certeza que o regime vai aumentar a repressão, mas até a repressão tem limites. Tenho a certeza que as jovens e as mulheres não enjeitarão nenhuma possibilidade de ir para as ruas e o regime sabe disso.”

“Este é o preço pela nossa liberdade. Algo mudou para sempre no Irão desde o ano passado.”

Muitas já o fazem, arriscando serem enxovalhadas e agredidas na via pública, como aconteceu à mulher que seguia sem véu, no vídeo abaixo, registado na cidade de Amol, no norte do país.

Niloufar leva uma autêntica vida dupla na região onde vive. Sem que a família tenha conhecimento, ela põe a sua segurança em risco e colabora ativamente, na clandestinidade, com a Organização dos Mujahidin [Combatentes] do Povo do Irão [MEK, na sigla persa], um grupo opositor ao regime dos ayatollahs, formado por dissidentes no exílio.

“Todos os dias, vemos cada vez mais ações realizadas em várias cidades por células de resistência ligadas ao MEK. Muitas destas unidades são compostas por mulheres valentes, cientes dos riscos de vida que correm quando escrevem slogans nas paredes contra o regime, distribuem folhetos do MEK ou colocam fotografias da líder do grupo, Maryam Rajavi” na via pública, penduradas em pontes e viadutos. “Há alguns protocolos como, por exemplo, vigiar que não há polícia por perto. Parece uma operação de uma guerra.”

A organização é um alvo especial do regime. Durante os protestos após o caso Mahsa Amini, 3626 apoiantes e simpatizantes do MEK foram presos. No mês passado, um dos seus membros, Javad Vafaei, de 27 anos, natural de Mashhad, a segunda maior cidade do Irão, foi condenado à morte pelas suas atividades ao serviço do MEK, designadamente participação em protestos.

A execução por enforcamento de manifestantes tem sido uma das armas do regime para calar a contestação. Niloufar descreve mais brutalidade das forças governamentais. “Muitos manifestantes ficaram cegos após serem usadas espingardas contra eles. Quando prendem pessoas, pulverizam-lhes os olhos para não verem quem os está a prender ou para onde são levados. É uma espécie de tortura branca, não atacam o corpo, mas a alma.

“Impor medo e terror ao povo é a maneira dos mullahs manterem o seu poder.”

Hoje, como sempre desde a Revolução Islâmica no Irão (1979), a polícia da moralidade e a imposição do hijab são as estratégias favoritas do regime para controlar as mulheres. Mas diante de cada vez mais atos de desobediência na via pública, o Governo tem intensificado e diversificado medidas para as intimidar.

Nas últimas semanas, um projeto de lei destinado a endurecer as penalizações para as iranianas que recusem usar o hijab começou a produzir resultados ainda antes de ser aprovado pelos legisladores. O novo diploma visa introduzir formas de obrigar ao uso do hijab sem passar por confrontos entre polícia e cidadãos.

Reservado a mulheres com hijab

Isso passa por penalizar as mulheres nos empregos, universidades, espaços comerciais, aeroportos, restaurantes, no interior de carros ou nas redes sociais. E também punir quem quer que o regime entenda ser cúmplice dos atos de rebeldia femininos.

Em nome da decência da República Islâmica, um restaurante que abra as portas a uma cliente sem hijab, por exemplo, pode ser multado. Um caso recente exposto nas redes sociais tem no centro a startup iraniana Digikala que, no mês passado, viu a sua sede ser fechada pelas autoridades até que fosse feito um pedido de desculpas público pelo “comportamento não islâmico” de funcionárias que não usavam o hijab. E também que a empresa adotasse um código de vestuário.

Muita da controvérsia em torno deste projeto de lei prende-se com o facto de estar a ser discutido à margem das sessões regulares do Parlamento, mas antes numa comissão parlamentar e à porta fechada, para não suscitar debate público.

Niloufar, que à semelhança de muitas conterrâneas arrisca sair à rua sem o hijab, diz que as forças de segurança “temem” as mulheres iranianas, uma vez que elas, especialmente as jovens, “estão na linha da frente da revolta e motivam outras pessoas a protestar”, diz. “Os mullahs pensam que, visando as mulheres, podem controlar as ruas e manter a população descontente dentro de casa. Mas como é possível assustar metade da população do Irão dessa maneira?”

O véu islâmico é um poderoso símbolo político no Irão. A seguir à morte de Mahsa Amini, muitas mulheres queimaram os seus lenços em fogueiras na via pública. No atual contexto, não usá-lo de todo ou de forma relaxada, deixando à mostra fartas mechas de cabelo, é uma forma inequívoca de rejeitar o regime.

“Este regime é misógino, quer limitar as mulheres. Eles não contemplam direitos para as mulheres, pensam que são cidadãos de segunda. Os mullahs são muito antiquados e agressivos. Dizem que são muçulmanos, mas não são. Mostram o Islão como uma religião agressiva no mundo. E executam pessoas”, conclui Niloufar, que não se considera uma pessoa religiosa, mas diz observar algumas regras.

“Os fundamentalistas são contra as mulheres em qualquer lado, e os mullahs que mandam no Irão são o regime mais fundamentalista de todos. Por isso, por definição, eles são contra as mulheres. Mas a repressão sobre as mulheres é apenas uma parte da repressão sobre toda a sociedade que se virou contra eles.”

(FOTO A imagem de Mahsa Amini, numa manifestação solidária com os protestos anti-regime no Irão, na cidade australiana de Melbourne MATT HRKAC / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de agosto de 2023, e no “Expresso”, a 18 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Os lenços que destaparam a frustração

Grandes protestos dinamizados por mulheres visam o uso obrigatório do hijab, mas também o regime

Às primeiras notícias de protestos nas ruas do Irão, Gil Pinheiro começou a disparar perguntas para quem, à sua volta, tinha algum conhecimento do país. “Que me aconselhas? Vou ou cancelo a viagem?” Este engenheiro de 28 anos, natural de São João da Madeira, estava a cerca de um mês de umas férias de 20 dias no Irão. “Parece ser um país incrível, com montanha, deserto, mar, ilhas, cidades, aldeias, e uma cultura muito diferente da nossa”, enumera ao Expresso. “E tenho a impressão de que as pessoas são muito acolhedoras.”

Nos preparativos para a viagem, obtido o visto, um assunto preocupava-o: dado que não poderia usar Visa ou Mastercard, devido às sanções internacionais, teria de levar numerário para toda a viagem. Os ecos dos protestos resolveram o problema. “Houve quem me dissesse que não teria problemas se insistisse em ir e quem me aconselhasse a cancelar a viagem. Dada a rápida escalada da situação, decidi não ir.”

Seja por haver agitação nas ruas ou ameaças de guerra devido ao programa nuclear iraniano, muitos turistas acabam por adiar planos para visitar o país. Para os iranianos, imersos num oceano de privações, estadas como a do jovem português seriam gotas de alívio.

Panela de pressão social

Além das dificuldades inerentes a conjunturas críticas pontuais — como a pandemia ou a guerra na Ucrânia —, o Irão enfrenta três crises endémicas: precariedade socioeconómica marcada por muito desemprego, sobretudo entre jovens e mulheres; degradação ambiental, com a população afetada ora pela desertificação e escassez de água ora por cheias potenciadas pela intervenção humana e por gestão negligente; e ortodoxia política que torna a teocracia imune a reformas.

O Irão enfrenta três crises endémicas: precariedade socioeconómica, degradação ambiental e ortodoxia política

Tudo contribui para um quotidiano de grande frustração que, diante de um pretexto sólido e mobilizador, explode qual panela de pressão. É o que se passa atualmente, com protestos de rua dinamizados por mulheres contra o uso obrigatório do hijab (lenço).

O crime da ‘rapariga azul’

“Os protestos contra o hijab não são assunto recente. É algo que existe desde a criação da República Islâmica [em 1979]”, explica ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na Universidade do Minho. Porém, as manifestações de descontentamento aumentaram face a pontos de viragem como a proibição de as mulheres entrarem nos estádios, a morte da ‘rapariga azul’ e agora a de Mahsa Amini.”

A “rapariga azul” era Sahar Khodayari, adepta do Esteghlal F.C. de Teerão, que se imolou pelo fogo a 9 de setembro de 2019, aos 29 anos. Respondia em tribunal por ter tentado entrar no Estádio Azadi, disfarçada de rapaz, para ver um jogo da sua equipa do coração.

Mahsa Amini é o gatilho que fez disparar os protestos iniciados a 16 de setembro, dia em que foi noticiada a morte desta iraniana de 22 anos. Pertencente à minoria curda, morreu num hospital na sequência de ferimentos atribuídos a agentes da “polícia da moralidade”, que a intercetaram na rua e a detiveram por andar com o hijab “de forma imprópria”.

Numa tentativa de reter dentro de portas as imagens da repressão aos protestos, que já contagiaram mais de 150 cidades, as autoridades tiraram velocidade à internet e restringiram o acesso às redes Instagram e WhatsApp. Ainda assim, muitos vídeos ultrapassaram fronteiras, mostrando mulheres a queimarem lenços, a enfrentarem polícias nas ruas de cabelo solto ou a cortarem os próprios cabelos à tesourada. Ao Expresso, uma iraniana que vive em Lisboa interpreta este último gesto: “Se é o meu cabelo que incomoda, então eu corto-o e deixam-me livre.”

Liberdade só às escondidas

Há oito anos, a dissidente Masih Alinejad, dona de farta cabeleira, tornou-se uma voz amplificadora da sede de liberdade das mulheres do seu país. Inundada por mensagens de compatriotas frustradas por não poderem andar sem lenço, como Masih fazia no Ocidente (onde vivia), criou a página #MyStealthyFreedoms (Minhas Liberdades Furtivas), no Facebook, onde partilhava fotos de iranianas sem hijab, tiradas às escondidas no Irão.

Hoje nos Estados Unidos, a ativista já não disfarça as olheiras ganhas a seguir o que se passa no Irão e a responder a órgãos de informação. Ao Expresso, destaca um aspeto dos protestos. “Os homens estão nas ruas e em grande número. Isto não é só sobre o hijab, símbolo mais forte da República Islâmica e ferramenta de controlo das mulheres. Tanto homens como mulheres estão fartos de um regime que os governou com terror e controlo. Exigem a sua queda. Os cânticos nas ruas são: ‘Morte ao ditador’, ‘Morte a [Ali] Khamenei [o Líder Supremo]’ e ‘O nosso inimigo está aqui, eles mentem quando dizem que são os Estados Unidos’.”

Dois grupos participam nos protestos. Um deles luta por direitos civis, o outro vai mais longe e quer uma mudança de regime

Ainda que à distância, Eslami identifica dois grupos a participar nos protestos. “O primeiro luta pelos seus ‘direitos civis’, incluindo as liberdades de escolha e de expressão. Diz que a Constituição [adotada em 1979 e revista dez anos depois] não atende às necessidades da sociedade e devia ser alvo de uma grande revisão nas dimensões política e social. O segundo grupo vai mais longe e quer uma mudança de regime e uma revolução contra os mullahs’. Considera o hijab e os direitos civis assunto secundário, que só será importante quando o povo iraniano se libertar da corrupção sistémica, do isolamento internacional, das sanções económicas e da frustração social e política.”

Revolta ou revolução?

Nos últimos 15 anos, esta é a terceira grande vaga de manifestações antigovernamentais no Irão. A primeira foi em 2009, contra a reeleição do candidato conservador Mahmud Ahmadinejad nas presidenciais. A segunda, dez anos depois, seguiu-se à triplicação do preço dos combustíveis. “Esta revolta [de 2022] não tem as características de uma revolução”, diz Eslami. “Apesar da adesão de celebridades, os protestos carecem de capital social e de um líder legítimo”, como os de 2009, organizados em torno de dois reformistas derrotados nas eleições.

Os órgãos de informação oficiais já admitiram a morte de mais de 40 pessoas; a resistência no exílio fala em mais de 240. “A reação da República Islâmica aos protestos não é nova: repressão brutal e sangrenta, com forte presença de forças de segurança nas ruas, equipadas com gás lacrimogéneo, bastões e armas”, descreve Masih Alinejad. Em paralelo, Teerão tenta neutralizar a contestação com contramanifestações pró-regime.

Sempre que os iranianos saem às ruas, há expectativas de uma “primavera iraniana”. Mas, como realça o investigador iraniano, “nunca ninguém avançou com uma alternativa ao regime dos ayatollahs. Dessa forma, derrubar o regime não ajudará o povo e levará à destruição do país, algo muito semelhante ao atual estado da Síria. Estes protestos não têm potencial para mudar o regime ou pelo menos coagi-lo a aceitar as exigências.”

(ILUSTRAÇÃO Cartoon de homenagem a Mahsa Amini e à luta das iranianas contra o regime religioso EMAD HAJJAJ / CARTOON MOVEMENT. No seu site, o Cartoon Movement dedica uma página a cartoons sobre Mahsa Amini, que pode ser consultada aqui)

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Porque há contestação nas ruas aos “ayatollahs”?

A morte de uma jovem sob custódia da polícia, detida por andar na via pública com “trajes inadequados”, desencadeou manifestações contra o uso obrigatório do véu islâmico. E, por arrasto, contra o regime religioso que governa o Irão há 43 anos

Engarrafamento na direção do cemitério de Saqqez, onde está enterrada Mahsa Amini TWITTER / BBC

1. Porque há protestos em várias cidades iranianas?

Aagitação está nas ruas desde sábado, dia do funeral de uma mulher de 22 anos que morreu fruto de ferimentos graves infligidos dentro de uma carrinha da polícia. Mahsa Amini fora detida em Teerão, pela polícia de costumes, por levar “trajes inadequados”.

Imagens nas redes sociais mostram iranianas a queimar os véus, de uso obrigatório. Os protestos já fizeram pelo menos sete mortos e concentram-se em Teerão, Mashhad, Tabriz e na região curda. Mahsa pertencia a esta minoria, que resistiu a tentativas de assimilação.

2. Que é e para que serve a polícia de costumes?

Também chamada polícia da moralidade, foi criada após a Revolução Islâmica. Tem como missão fazer cumprir, na via pública, os códigos de vestuário impostos pelos ayatollahs, desde logo o uso obrigatório do véu islâmico para as mulheres e roupa larga para ocultar a silhueta.

Transeuntes vestidos de forma que considerem “não islâmica” — por exemplo, com o véu descaído ou, no caso dos homens, calções e camisas de manga curta — são admoestados, multados ou presos por agentes desta força de segurança.

3. Que potencial político têm os protestos?

Este episódio traz à memória a morte do vendedor ambulante tunisino Mohamed Bouazizi, que se imolou pelo fogo, em 2010, depois de a polícia apreender a sua banca.

Este ato desesperado desencadeou protestos no país e originou um efeito dominó no Norte de África e Médio Oriente (Primavera Árabe), que depôs ditadores na Tunísia, Egito, Líbia e Iémen.

No Irão, o descontentamento apoia-se também em slogans políticos, como “Morte ao ditador”, referência velada ao Líder Supremo, Ali Khamenei.

4. Esta contestação nas ruas é inédita no país?

Nos últimos 15 anos, eclodiram grandes manifestações antigovernamentais por duas vezes, que criaram expectativas de uma “primavera iraniana”.

A primeira foi em 2009, contra a vitória do candidato conservador Mahmud Ahmadinejad nas presidenciais (Movimento Verde).

Dez anos depois, nova vaga de protestos, que começou a propósito do forte aumento do preço dos combustíveis, evoluiu para um movimento pró-democracia.

Ambas as jornadas foram violentamente reprimidas pelas forças do regime.

5. Como reagem agora as autoridades de Teerão?

Restringindo o acesso a WhatsApp e Instagram e remetendo-se ao silêncio. Quarta-feira, Khamenei falou 55 minutos na televisão sobre a guerra Irão-Iraque.

Na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, o Presidente Ebrahim Raisi também foi omisso.

Já o homólogo americano não perdeu a ocasião de expor Teerão: “Estamos com os corajosos cidadãos e as bravas mulheres do Irão que se manifestam para garantir os direitos básicos”, disse Joe Biden, nas Nações Unidas.

Artigo publicado no “Expresso”, a 23 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui