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Estes cinco países podem ganhar com o degelo entre Riade e Teerão

Usados como peças de xadrez no tabuleiro geopolítico regional, cinco Estados podem ser os primeiros a beneficiar com a reaproximação saudita-iraniana

Arábia Saudita e Irão têm uma rivalidade antiga que moldou o Médio Oriente. Mais do que um acordo, o recente entendimento é, acima de tudo, uma medida de criação de confiança entre ambos. Apesar de não contemplar um roteiro para a resolução dos diferendos que os opõem, há potencial para acreditar que possa gerar estabilidade. Também há, contudo, especificidades que transcendem a vontade dos dois gigantes.

IÉMEN

Acordo é bom, mas falta ouvir os locais

Em guerra há quase dez anos, o Iémen tem sido uma peça no xadrez das rivalidades regionais, pelo que é o país onde o impacto do acordo pode ser maior. O Irão é aliado dos rebeldes huthis (xiitas) e a Arábia Saudita lidera uma operação militar regional de bombardeamentos ao país, visando o fim da era huthi e o regresso do Governo deposto, refugiado na cidade de Aden. Mas é ingénuo pensar que basta a vontade dos dois países para ditar a paz naquele território tribal, cuja governação o antigo ditador Ali Abdullah Saleh comparou a “uma dança sobre cabeças de serpentes”.

“Há um consenso de que o acordo diplomático entre a Arábia Saudita e o Irão é bom para o Iémen. Ao mesmo tempo, existe um entendimento de que a dimensão regional é só uma parte do conflito, que também tem uma dimensão local”, explica ao Expresso Veena Ali-Khan, investigadora do International Crisis Group para o Iémen. “Um acordo regional é um passo em frente, mas não é tudo; ainda é preciso um diálogo entre iemenitas.”

No terreno o país vive um cessar-fogo que sobreviveu ao seu término oficial, em outubro passado. Apesar de não ter sido renovado, as principais linhas da frente mantêm-se congeladas, havendo registo de ataques e combates aleatórios. Oficialmente, a trégua continua em vigor e os principais grupos em contenda têm-se privado de lançar ofensivas, o que indicia uma vontade de voltar a página do conflito e seguir em frente.

“Há um ambiente de reconciliação. Os huthis estão a falar com os sauditas, mas há sempre a possibilidade de o conflito se reacender. Os huthis saudaram o pacto, mas deixaram muito claro que um acordo entre Irão e Arábia Saudita não complementa um acordo entre huthis e sauditas.”

Recentemente, num posto de fronteira entre os dois países, as partes devolveram cadáveres de combatentes, num gesto interpretado como sinal de progresso entre ambos. Os sauditas receberam seis corpos e os huthis 58, naquele que foi o terceiro acordo do género.

Enquanto algumas feridas não saram e a política continua a marcar passo, acentua-se a grande catástrofe humanitária em que se transformou o Iémen. Terça-feira, o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas anunciou a suspensão do seu programa de prevenção da desnutrição. Tudo acontece num dos países mais pobres do mundo, altamente dependente da ajuda internacional e onde, segundo a UNICEF, uma criança morre a cada dez minutos.

Síria

Guerra não acabou, mas Assad manda

A guerra na Síria foi outro braço de ferro entre os dois rivais. O Irão foi um esteio para Bashar al-Assad, fazendo deslocar, desde o vizinho Líbano, combatentes do aliado xiita Hezbollah para defender o ditador. A Arábia Saudita, por seu lado, apoiou grupos da oposição. No entanto, 12 anos após o início do conflito, e ainda que não tenha formalmente terminado, Riade e Teerão deixaram de olhar para a Síria como uma guerra por procuração.

Com a ajuda dos bombardeamentos da Rússia, as forças de Assad recuperaram muito território. Hoje, mesmo países que, de início, estiveram do lado da oposição aceitam que reconhecer que Assad voltou a mandar no país é um atalho para limitar mais instabilidade na região. Três países árabes resistem nessa aproximação: Marrocos, Catar e Kuwait.

Em maio passado, esse consenso crescente de que o diálogo com a Síria é necessário foi coroado com a reintegração da Síria na Liga Árabe, de onde tinha sido suspensa no primeiro ano da guerra. Essa reabilitação regional de Assad aconteceu numa cimeira realizada na cidade saudita de Jeddah.

“O Irão não faz parte da Liga Árabe [é um país persa], mas esse regresso da Síria à organização faz parte da normalização entre os dois países”, diz ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “Há uma aceitação de que Bashar al-Assad venceu a guerra, e essa normalização do líder é consequência direta da normalização das relações entre Riade e Teerão.”

Na cimeira árabe de Jeddah, Assad comentou o regresso da Síria ao concerto árabe: “Espero que marque o início de uma nova fase de ação árabe pela solidariedade entre nós, pela paz na nossa região, por desenvolvimento e prosperidade em vez de guerra e destruição”. Para trás ficaram mais de 300 mil civis mortos, quase 340 ataques com armas químicas, 82 mil bombas de barril lançadas sobre zonas residenciais e dezenas de cercos a localidades ao estilo medieval. Mais de 13 milhões de pessoas tornaram-se deslocados ou refugiados.

Líbano

Polarização e crise não são prioridades

O anúncio do acordo entre sauditas e iranianos criou uma ilusão no Líbano. Com o país fortemente polarizado, a nível político, entre o movimento xiita Hezbollah e seus aliados (que representam a influência do Irão no país) e, no campo oposto, algumas fações apoiadas pela Arábia Saudita, “quando o acordo foi inicialmente tornado público, ambos os lados tiveram a expectativa de que ajudasse a resolver o impasse político no país… a seu favor”, explica ao Expresso David Wood, analista do International Crisis Group para o Líbano.

Organizado mediante um sistema confessional, que determina que o Presidente do país seja sempre cristão maronita, o primeiro-ministro muçulmano sunita e o presidente do Parlamento muçulmano xiita, o Líbano está há dez meses sem conseguir eleger o chefe de Estado. A escolha cabe ao Parlamento, que já falhou 12 tentativas.

Este impasse político, num país que reconhece, oficialmente, 18 grupos religiosos, expõe uma classe política que age em função de agendas sectárias e não de um interesse nacional. Para agravar, o país atravessa uma grave crise económica — em abril, a taxa de inflação estava nos 269% — e vive na iminência de colapso financeiro, alimentado por altos índices de corrupção, incompetência e desvios de dinheiro público.

A recuperação económica está dependente de um empréstimo de 785 milhões de euros concedido pelo Fundo Monetário Internacional, que não avança devido às múltiplas crises que o país enfrenta. À semelhança do que se passa em relação ao Presidente, os políticos também não se entendem sobre o governador do Banco Central.

“O Líbano ainda não sentiu qualquer impacto tangível da reaproximação iraniano-saudita”, assegura Wood. “Na realidade, o país é uma prioridade muito menor para Riade e Teerão, em comparação com vários outros vizinhos. Por isso, é improvável que a reaproximação faça grande diferença no Líbano até que a Arábia Saudita e o Irão resolvam outros conflitos que consideram mais urgentes, a começar pela situação no Iémen.”

Esta falta de urgência em estabilizar o Líbano prende-se também com o peso desigual que o país tem para Riade e Teerão. Para esta, é uma das pontas do chamado arco xiita, com o qual a República Islâmica projeta influência no Médio Oriente.

Iraque

Arena de diálogo para amaciar

Antes da assinatura do acordo entre Riade e Teerão, em Pequim, foi em Bagdade que, durante dois anos, as partes partiram pedra para desbravar um caminho comum. Pela sua complexidade étnica e religiosa, o Iraque tem fações naturalmente próximas de ambos os países. Essa circunstância contribuiu para transformar este país num campo de batalhas por procuração após a queda do ditador Saddam Hussein e, mais recentemente, numa arena de diálogo. Entre 2020 e 2022, realizaram-se cinco rondas de conversações que serviram para clarificar pontos de vista e criar uma prática regular de comunicação.

Com o Irão, o Iraque partilha 1600 quilómetros de fronteira e uma população de maioria xiita, que foi reprimida nos tempos do sunita Saddam e chegou ao poder nos anos da guerra iniciada em 2003. Mais ainda, é um país atravessado pelo arco xiita de influência iraniana na região. Muitos grupos armados recebem apoio direto da Guarda Revolucionária Iraniana, algo que ficou exposto quando, a 3 de janeiro de 2020, o general Qasem Soleimani — herói nacional no Irão, tido como cérebro da estratégia militar do país para o Médio Oriente — foi assassinado no aeroporto de Bagdade por drones dos Estados Unidos. Em retaliação, Teerão bombardeou uma base americana no Iraque.

Já a Arábia Saudita, que nunca teve um grau de envolvimento militar no Iraque semelhante ao do Irão, partilha uma fronteira de 800 quilómetros, onde chega a sentir vulnerabilidade. Riade tem maior afinidade com a comunidade sunita, profundamente tribal, e representa um potencial de grandes investimentos que Teerão não consegue acompanhar. Para os sauditas, o acordo com o Irão funciona também como salvaguarda, na eventualidade de escalada na sempre tensa relação entre Teerão e Washington.

Bahrain

A curta distância dos dois gigantes

Este arquipélago do Golfo Pérsico é o único reino da Península Arábica que tem uma monarquia reinante sunita e uma população de maioria xiita, por vezes apontada como potencial quinta-coluna do Irão. Esta circunstância tornou o país vulnerável a interferências do gigante xiita, como sucedeu durante a Primavera Árabe (2011) — Riade interveio em defesa da dinastia Al-Khalifa e Teerão dos manifestantes —, e condena-o a ser um permanente palco de competição ideológica e geopolítica entre os dois gigantes.

Em 2016, o Bahrain foi lesto a solidarizar-se com a Arábia Saudita e a cortar relações com o Irão no dia seguinte a Riade tê-lo feito. Desde então, acentuou as suas divergências em relação a Teerão e reconheceu o Estado de Israel, tornando-se um dos protagonistas dos Acordos de Abraão, promovidos pelo então Presidente americano Donald Trump.

Ao estilo de um efeito dominó, Bahrain, Jordânia e Egito são apontados como os países árabes que estão na calha para normalizar relações diplomáticas com o Irão. “As autoridades egípcias já afirmaram que a melhoria do relacionamento entre o Cairo e Teerão depende de como progredir a relação entre o Irão e a Arábia Saudita”, explica o académico iraniano Javad Heiran-Nia. Da relação Riade-Teerão parece depender o degelo do Médio Oriente.

Quem fica a perder?

ISRAEL

O Irão é o elemento central da política externa de Israel, que o vê como ameaça existencial (devido ao programa nuclear) e circunstancial (pelo apoio a grupos palestinianos). Os Acordos de Abraão, com que o Estado hebraico iniciou uma aproximação ao mundo árabe, visaram também isolar o Irão. Com quatro países a bordo, a Arábia Saudita era candidata. “A pressão está sobre Riade”, diz Tiago Lopes. “Terá de escolher se dá prioridade ao Irão, para reconstruir o grande espaço islâmico, se a Israel, numa lógica de estabilização da região.”

TURQUIA

“A Turquia perde espaço político no Médio Oriente com a aproximação entre Irão e Arábia Saudita”, comenta o docente da Universidade Portucalense. “No mundo sunita, sempre foi vista como poder mediador e moderado. Com a normalização, deixa de poder fazer a ponte, porque não há nada para moderar.” Tiago Lopes recorda a recente cimeira da NATO, em Vílnius, onde após colocar entraves à adesão da Suécia, Ancara acabou por ceder. “A Turquia decidiu voltar à sua política de ambiguidade, que é ter relações com o Ocidente, mas também não estragar o relacionamento que tem com a Rússia.”

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Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui

Acordo de conveniência entre sauditas e iranianos

A normalização da relação diplomática entre Riade e Teerão é uma derrota para os Estados Unidos e Israel

Não haverá muitas rivalidades no mundo tão amplas e antigas como a que opõe Arábia Saudita e Irão. Frente a frente estão um reino árabe que professa uma matriz sunita fundamentalista do islão e uma república islâmica, assente numa interpretação xiita radical, herdeira da civilização persa. A força destas identidades contamina países vizinhos, origina guerras por procuração e torna a estabilidade no Médio Oriente uma quimera.

Ora, dois territórios declaradamente inimigos há quase 1400 anos — quando se deu o cisma entre sunitas e xiitas — não se tornam amigos da noite para o dia. Anunciada a normalização da relação diplomática entre Riade e Teerão, dia 10, sobram interrogações acerca do que a motivou.

“Arábia Saudita e Irão estão a sair da esfera de influência ocidental e, no que toca à Arábia Saudita, da esfera dos Estados Unidos”, diz ao Expresso o investigador Tiago André Lopes, do Instituto do Oriente. “E estão a posicionar-se, por dependência energética, mais próximos da China”, mediadora deste diálogo.

Estes países tinham as relações congeladas desde 2016, na sequência da decapitação de um clérigo xiita saudita, crítico do regime de Riade. No Irão houve protestos, invasão da embaixada saudita e promessas de “vingança divina” por parte do líder supremo, ayatollah Ali Khamenei. Há algum tempo, contudo, que ambos queriam voltar a página das hostilidades, sufocados por problemas económicos e despesas extra decorrentes da guerra no Iémen — onde Teerão apoia os houthis (grupo xiita que tomou o poder pela força) e Riade lançou uma ofensiva com o intuito de os depor.

Dois anos a negociar

“As negociações começaram há dois anos, com mediação do Iraque. Enquanto isso, Omã acolheu conversações entre os houthis e uma delegação saudita. O diálogo começou porque as partes precisavam de chegar a acordo. O aumento da tensão não correspondia aos seus interesses”, diz ao Expresso Javad Heirannia, do Centro do Médio Oriente, de Teerão.

O acordo está muito longe de ser uma parceria estratégica ou tratado de amizade e cooperação. Tem um período de carência de dois meses e prevê apenas a reativação dos canais diplomáticos. “As grandes questões de fundo, as diferenças ideológicas, não vão ficar resolvidas. O que se resolve é a abertura das embaixadas”, explica Tiago André Lopes.

“Não interessa à Arábia Saudita nem ao Irão terem demasiadas frentes abertas. Interessa-lhes fechar esta frente, porque o que os separa continuará a separá-los”, continua o professor da Universidade Portucalense, para quem é claro que ambos buscam “um consenso no que toca aos teatros que estão abertos por causa desta confrontação: Iémen e Líbano”.

Irresolúvel do ponto de vista militar, a guerra no Iémen está num impasse há anos. Em abril de 2022, as partes comprometeram-se com um cessar-fogo, que expirou em outubro. Desde então, mesmo sem renovação formal, a trégua não colapsou, indiciando a vontade de pôr ponto final ao conflito.

Já o Líbano, sem viver em clima de guerra aberta, parece muitas vezes à beira desse precipício, com um sistema político retalhado por 18 grupos confessionais — entre os quais os xiitas do poderoso Hezbollah, apoiado pelo Irão —, uma economia falida e uma sociedade fragilizada pela corrupção. “As diferenças entre Irão e Arábia Saudita criaram um impasse político no Líbano, que não produziu resultados para os dois países e respetivas forças aliadas”, comenta Heirannia.

ARÁBIA SAUDITA E IRÃO BUSCAM CONSENSONOS TEATROS ABERTOS PELO CONFRONTO ENTRE AMBOS: IÉMEN E LÍBANO

O potencial estabilizador desta aproximação consagra a mediadora China. Para lá dessa demonstração de poder, duas circunstâncias precipitaram a convergência entre os dois gigantes geopolíticos do Médio Oriente: o programa nuclear iraniano e o aperto económico saudita.

Recentemente, a Agência Internacional de Energia Atómica revelou que inspetores encontraram, na central iraniana de Fordow, “partículas” de urânio enriquecido a 83,7%, muito próximo dos 90% necessários para a produção da bomba atómica. De nada serviu mais de um ano de negociações em Viena com vista à reativação do acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão (JCPOA), de 2015, ferido com gravidade pela retirada dos EUA ordenada por Donald Trump. E as sanções com que Washington tentou vergar Teerão não impediram o desenvolvimento do acordo.

Estados Unidos são descartáveis

Separada do Irão pelo Golfo Pérsico, a Arábia Saudita percebeu que a melhor garantia de segurança perante o vizinho nuclear é minimizar os riscos de conflito. Por outro lado, Riade luta com dificuldade para concretizar o plano de reformas “Visão 2030”, que visa diversificar a economia do país e dotá-la de novas fontes de receitas. “A Arábia Saudita está a braços com uma grave crise económica, continua muito dependente de recursos petrolíferos e com muita dificuldade em adaptar-se às economias sustentáveis. Tirando o turismo religioso, não tem alternativas. Não pode continuar a ter orçamentos de defesa e a apoiar uma série de movimentos” fora do país, refere Tiago André Lopes.

Acresce a dimensão de segurança e ausências do amigo americano. “Mesmo durante a era Trump, a Arábia Saudita não conseguiu convencer Washington a lançar um ataque contra o Irão a seguir ao atentado dos houthis contra duas refinarias da Aramco”, diz Heirannia. Essa investida, em setembro de 2019, reduziu para metade a produção da empresa estatal saudita e provocou uma subida global dos preços do petróleo.

Por outro lado, continua o iraniano, “a pressão de Riade sobre Washington para incluir a política regional do Irão nas negociações com vista à reativação do JCPOA deu em nada. Os sauditas concluíram que, para evitarem mais gastos, deveriam resolver as diferenças com o Irão.” Acrescenta o português: “A Arábia Saudita percebeu que, no jogo das superpotências, os Estados Unidos são, hoje, descartáveis.”

A necessidade de fechar frentes de conflito é partilhada pelo Irão, castigado há anos por sanções que penalizam a exportação de petróleo e a braços com protestos antirregime que só conseguiu conter após começar a enforcar manifestantes. Para os EUA, a atuação de Teerão foi fácil de encaixar, já que os dois países não têm relações diplomáticas desde a Revolução Islâmica de 1979. Já o ímpeto saudita surpreendeu em toda a linha. “A Administração Biden está a colher os erros da Administração Obama”, e da sua estratégia relativa à primavera árabe, diz Tiago André Lopes. “Nos últimos dois anos, assistimos [na Tunísia] ao colapso do pouco que a primavera árabe trouxe.”

Doze anos depois, está à vista que “o grande vencedor da primavera árabe é a Rússia. Conseguiu entrar de novo no Médio Oriente, foi o único Estado que fez apostas — na Síria — e, grosso modo, venceu-as”, prossegue, frisando que “quem a Rússia apoiou não caiu”. Simbolicamente, Bashar al-Assad visitou Vladimir Putin, no Kremlin, quarta-feira, 12º aniversário do início da guerra na Síria.

O derrotado na aproximação entre sauditas e iranianos, além dos EUA, é Israel, para quem o Irão é uma ameaça existencial e a Arábia Saudita era um possível futuro signatário dos Acordos de Abraão. Este compromisso, com o qual o Estado judeu vinha abrindo brechas no seu isolamento regional, em nada se diferenciava de uma coligação anti-Irão. Resta saber que réplicas se farão sentir após o abalo que foi o acordo Riade-Teerão.

(IMAGEM Mapa do Médio Oriente, publicado em 1950 BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA / PICRYL)

Artigo publicado no “Expresso”, a 17 de março de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Drones, mísseis, navios e sanções: as ‘armas de arremesso’ que colocam iranianos e sauditas em tensão permanente

08.05.2018 — Os Estados Unidos retiram-se do acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão, assinado três anos antes. Um acordo “horrível”, diz Trump

24.06.2018 — Com uma ofensiva em curso no Iémen desde março de 2015, contra os rebeldes huthis, apoiados pelo Irão, a Arábia Saudita diz ter intercetado dois mísseis balísticos nos céus de Riade lançados a partir do Iémen

25.07.2018 — Um petroleiro saudita é atacado e danificado ao largo do Iémen

07.08.2018 — Entra em vigor o primeiro pacote de sanções suspensas pela assinatura do acordo nuclear de 2015

09.08.2018 — Riade anuncia a interceção de dois mísseis disparados desde o Iémen

10.01.2019 — A explosão de um drone de fabrico iraniano mata seis membros das forças iemenitas apoiadas pela Arábia Saudita, durante uma parada militar, junto à base aérea de Al-Anad, perto de Aden

03.04.2019 — A coligação liderada por Riade que bombardeia o Iémen diz ter abatido dois drones que se dirigiam para a cidade de Khamis Mushait, onde a força aérea saudita tem uma das suas principais bases

14.05.2019 — Drones armados atingem duas estações de bombagem de petróleo a oeste de Riade

20.05.2019 — Dois mísseis balísticos são abatidos nos arredores de Jeddah e Taif, após sobrevoarem mais de 200 quilómetros de espaço aéreo saudita

02.05.2019 — Os EUA acabam com isenções que permitiam a países terceiros comprar petróleo ao Irão sem penalizações

12.05.2019 — Quatro navios, incluindo dois petroleiros, são danificados ao largo dos Emirados Árabes Unidos. A investigação conclui tratar-se de sabotagem. Os EUA implicam o Irão

12.06.2019 — Um míssil lançado do Iémen atinge o aeroporto de Abha, no sul da Arábia Saudita, ferindo 26 pessoas

13.06.2019 — Dois petroleiros são atacados no Golfo de Omã. Washington acusa Teerão de ter sabotado os cascos com explosivos

17.06.2019 — Os rebeldes huthis reivindicam novo ataque contra o aeroporto de Abha, desta vez com um drone

20.06.2019 — A Arábia Saudita confirma um ataque a uma planta de dessalinização na cidade de Shuqaiq

20.06.2019 — Teerão abate um drone americano sobre o estreito de Ormuz por violação do seu espaço aéreo. Trump aborta um ataque ao Irão a dez minutos do seu início

22.06.2019 — Trump autoriza medidas de retaliação que incluem ataques cibernéticos contra sistemas de defesa antiaérea iranianos

02.07.2019 — Novo ataque com drones contra o aeroporto de Abha causa nove feridos

04.07.2019 — Forças britânicas capturam o petroleiro iraniano Grace 1 ao largo de Gibraltar, acusando-o de contrabando de petróleo para a Síria

19.07.2019 — O Irão captura o petroleiro britânico “Stena Impero” no estreito de Ormuz

01.08.2019 — Os rebeldes iemenitas lançam míssil contra o porto saudita de Dammam

05.08.2019 — Ataque de drones contra os aeroportos de Abha e Najran e a base Rei Khalid

17.08.2019 — Ataque com drones incendeia o campo petrolífero Shaybah

25.08.2019 — Os huthis lançam dez foguetes Badr-1 sobre o aeroporto de Jizan

14.09.2019 — Ataque às centrais de Abqaiq e Khurais

19.09.2019 — A coligação saudita interceta um barco com explosivos ao largo do Iémen

(IMAGEM Bandeiras da Arábia Saudita e do Irão PORT TECHNOLOGY)

Artigo publicado no “Expresso”, a 21 de setembro de 2019

“Guerra fria” aquece no Médio Oriente

Arábia Saudita e Irão protagonizam, há mais de 30 anos, uma espécie de “guerra fria” na região, exibindo toda a sua histórica rivalidade através de guerras por procuração. A execução de um clérigo xiita na Arábia Saudita azedou a já de si tensa relação entre os dois gigantes. Riade cortou relações e já arrastou consigo o Bahrain

A fasquia da conflitualidade no Médio Oriente subiu consideravelmente após, no domingo, a Arábia Saudita ter cortado relações diplomáticas com o Irão. Os dois países personificam as grandes rivalidades políticas, religiosas e culturais que caracterizam — e dividem — a região: a Arábia Saudita (31,5 milhões de habitantes) é uma monarquia árabe sunita, que abriga os principais lugares santos do Islão (Meca e Medina); o Irão (79,1 milhões) é uma república islâmica xiita de cultura persa.

A mais recente crise entre os dois gigantes geopolíticos estalou na sequência da execução, na Arábia Saudita, de um importante clérigo xiita, o xeque Nimr Baqir al-Nimr que, em 2011, no contexto da Primavera Árabe, apelou à realização de eleições no país e apoiou os protestos contra a Casa de Saud (a monarquia reinante).

O xeque pertencia à minoria xiita no país (estima-se que entre 10 e 15% da população, concentrados nos oásis de Al-Ahsa e Qatif, na Província Oriental, onde se encontram as zonas agrícolas mais produtivas e as maiores jazidas de petróleo do reino). Os xiitas dizem-se marginalizados e perseguidos por Riade.

Juntamente com Nimr, foram executados três ativistas xiitas (incluindo um sobrinho) e 43 sunitas condenados por envolvimento em ataques terroristas no reino, em 2003 e 2004, atribuídos à Al-Qaeda — fundada pelo saudita Osama bin Laden.

Com estas execuções — realizadas através de pelotões de fuzilamento e decapitações —, Riade mostra mão firme em matéria de segurança interna e aproveita para calar vozes críticas e reivindicativas de direitos e liberdades para os xiitas, que partilham com o inimigo iraniano a mesma interpretação do Islão.

Conhecida a morte do xeque Nimr, no sábado, violentos protestos visaram a embaixada saudita em Teerão (que foi incendiada) e o consulado em Mashhad (nordeste do Irão), levando à detenção de dezenas de pessoas.

No Twitter, o Presidente do Irão, Hassan Rouhani, criticou os distúrbios junto àquelas representações diplomáticas, levados a cabo por “indivíduos extremistas”, escreveu. Esta posição não foi suficiente para impedir a retaliação saudita que, no domingo, anunciou o corte de relações diplomáticas com o Irão.

O agravamento da relação Riade-Teerão é um cenário que não agrada a ninguém, sobretudo nos Estados Unidos. Os sauditas têm sido fortes aliados e essa relação tem sobrevivido intacta ao facto de serem sauditas 15 dos 19 terroristas do 11 de Setembro serem sauditas e também ao facto dos sauditas serem, a seguir aos afegãos, a nacionalidade mais representada entre os 779 detidos em Guantánamo, desde 2002.

Quanto aos iranianos — inscritos pelo Presidente norte-americano George W. Bush no “eixo do mal” que apoia o terrorismo internacional —, estão em rota de aproximação com o Ocidente, após o histórico acordo de 14 de julho sobre o seu programa nuclear. Irão e EUA continuam, oficialmente, de relações cortadas, mas o acordo de Genebra abriu perspetivas de uma maior colaboração do Irão em várias crises na região.

Guerras por procuração

Em sentido figurado, quando a relação entre Arábia Saudita e Irão apanha um resfriado, é toda a região que se constipa. À semelhança da Guerra Fria que opôs EUA e URSS durante mais de 40 anos, Riade e Teerão travam, hoje, no Médio Oriente várias guerras por procuração, acicatando divisões sectárias para expandir a sua influência — o que acontece, com maior intensidade na Síria e no Iémen.

Na Síria, os iranianos são, juntamente com a Rússia, o mais sólido apoio internacional do Presidente Bashar al-Assad, enquanto os sauditas apoiam e financiam grupos rebeldes.

No Iémen, os papéis invertem-se: os sauditas têm em curso uma intervenção militar em defesa do Presidente Abd Rabbuh Mansur Hadi e os iranianos apoiam a milícia huthi (xiita) que tomou o poder pelas armas.

O potencial de conflito não se resume, porém, a esses dois teatros. Desde a Revolução Islâmica de 1979 que um dos pilares do regime dos ayatollahs tem sido a exportação desse modelo político-religioso que, hoje, passa pela preservação do chamado ‘arco xiita’: o Iraque (onde a derrota de Saddam Hussein catapultou a maioria xiita para o poder), a Síria (os alauitas de Bashar al-Assad são xiitas) e o Hezbollah (o movimento xiita que, para além de ser uma milícia armada, também está representado no Parlamento e no Governo do Líbano).

A estratégia internacionalista consta igualmente da agenda da Arábia Saudita, empenhada em divulgar a doutrina waabita, para o que afeta quantias milionárias de petrodólares, seja para apoiar fações políticas ou armadas seja para financiar mesquitas um pouco por todo o mundo.

Pesos pesados do petróleo

Esta disputa geopolítica coloca frente a frente os dois maiores e mais ricos países do Médio Oriente, situados nas margens do Golfo — Pérsico para os iranianos, Arábico para os sauditas —, por onde é transportado um quinto do petróleo consumido em todo o mundo. (Esta segunda-feira, os preços do petróleo e do ouro aumentaram.)

Na margem ocidental do Golfo, os sauditas controlam a Península Arábica com rédea curta, exercendo uma influência quase absoluta sobre as outras petromonarquias (Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Bahrain, Qatar e Omã).

Quando a Primavera Árabe atingiu o Bahrain — onde o regime é sunita e a população maioritariamente xiita —, tropas sauditas cruzaram a fronteira em socorro dos Al-Khalifa. Nos países onde os xiitas são minoritários, como na Arábia Saudita, Riade vê-os como uma ‘quinta coluna’ ao serviço de Teerão.

Precisamente o Bahrain, esta segunda-feira, seguiu o exemplo da Arábia Saudita e cortou relações diplomáticas com o Irão. Os Emirados e o Sudão também anunciaram uma revisão da sua relação diplomática com o Irão.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 4 de janeiro de 2016. Pode ser consultado aqui