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Dossiê nuclear estava à beira de novo acordo, mas acabou refém da guerra na Ucrânia

Há mais de um ano que sete países negoceiam, em Viena, uma segunda vida para o acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano. Quando parecia iminente um entendimento, a guerra na Ucrânia e as pesadas sanções a Moscovo condicionaram a posição da Rússia. Esta segunda-feira, a Agência Internacional de Energia Atómica debruça-se sobre relatórios internos que identificam vários incumprimentos por parte do Irão

A ambição do Irão em dotar-se de um programa nuclear tem um potencial incendiário tal que, de tempos a tempos, coloca o mundo à beira de um ataque de nervos. Esta segunda-feira, o Conselho de Governadores da Agência Internacional de Energia Atómica avalia a resposta que a República Islâmica tem dado aos compromissos assumidos no âmbito do acordo internacional de 2015.

Este balanço acontece numa altura em que mais de um ano de negociações em Viena, envolvendo os mesmos sete países que patrocinaram o acordo de há sete anos, não conseguiu ainda dar nova vida a esse entendimento, ferido em 2018 pela saída dos Estados Unidos. E coincide com a guerra na Ucrânia, que motivou uma alteração do posicionamento da Rússia no dossiê iraniano.

Enquanto não se percebe em que sentido evolui este dossiê, o Expresso apresenta quatro perguntas e respostas para melhor compreender o que está em causa e o contexto geopolítico que rodeia um dos maiores desafios políticos da atualidade.

Como olha a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) para o Irão?

Presentemente, com alguma desconfiança. Esta segunda-feira, o Conselho de Governadores da organização discute o cumprimento pelo Irão dos compromissos assumidos no acordo de 2015, com base em relatórios recentes — penalizadores para Teerão — do diretor-geral da AIEA.

Entre as várias falhas apontadas pela Agência, estão:

  • a falta de resposta das autoridades iranianas a perguntas da Agência relativamente à origem de partículas de urânio encontradas numa instalação nuclear antiga, mas não declarada;
  • o aumento das reservas de urânio enriquecido para 3809,3 kg, um número mais de 18 vezes superior ao limite fixado pelo acordo de 2015, que era de 202,8 kg;
  • a dificuldade de acesso às gravações das câmaras de vigilância colocadas pela Agência em centrais iranianas.

“Suponho que deva abster-me de tirar uma conclusão final, pois ainda não finalizámos o processo, mas permitam-me que diga que estamos numa conjuntura muito difícil”, admitiu recentemente o diretor-geral da AIEA, o argentino Rafael Mariano Grossi, num discurso no Fórum Económico Mundial, em Davos.

As dúvidas AIEA constituem fonte de tensão acrescida entre o Irão e os países ocidentais, envolvidos em negociações que visam a revitalização do acordo de 2015.

Que resta desse histórico compromisso internacional?

O acordo que colocou o arsenal nuclear do Irão sob supervisão internacional, em troca do levantamento de sanções, sobreviveu à saída unilateral dos Estados Unidos, ordenada pelo então Presidente Donald Trump. Contudo, foi perdendo eficácia, já que, após a reintrodução das sanções norte-americanas suspensas pelo acordo, o Irão não se achou mais obrigado em cumpri-lo no desenvolvimento das suas atividades nucleares.

Com a mudança de inquilino na Casa Branca, voltou a haver vontade política em Washington no sentido de um regresso ao acordo, mas tal não pode ser feito de forma automática. Os iranianos, sentindo-se traídos pela deserção dos norte-americanos, não abdicam de impor condições a esse regresso. Até porque não têm garantias de que as eleições presidenciais de 2024 não coloquem um republicano na Casa Branca, o que aumentaria a possibilidade de um compromisso com o Irão voltar a ser rasgado.

Desde abril de 2021 que decorrem negociações, em dois hotéis de luxo da capital da Áustria — o Grand Hotel Wien e o Palais Coburg —, com vista à reativação do acordo de 2015 (também conhecido pelo acrónimo inglês JCPOA, de Joint Comprehensive Plan of Action). Na prática, isso passa por reintegrar os Estados Unidos e levar o Irão a reafirmar os compromissos assumidos.

Participam neste diálogo os mesmos sete países que assinaram o acordo de 2015: além do Irão, os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido e França) e ainda a Alemanha. Washington e Teerão — que não têm relações diplomáticas formais — não dialogam olhos nos olhos, mas de forma indireta.

Um diplomata espanhol, Enrique Mora, é o negociador-mor deste diálogo, em nome do Alto representante da União Europeia para a Política Externa e de Segurança, Josep Borrell.

Em meados de fevereiro, um compromisso parecia bem encaminhado. A 22, Mora escrevia no Twitter: “As conversações de Viena sobre o JCPOA estão num momento crucial. Estamos a aproximar-nos do fim após dez meses de negociações. O resultado ainda é incerto. Assuntos importantes precisam de ser resolvidos. Mas todas as delegações estão totalmente comprometidas. Trabalho intenso no Coburg”.

A sua publicação post seguinte, dois dias depois, seria de condenação à agressão da Rússia à Ucrânia, que contaminaria o processo iraniano.

De que forma a guerra na Ucrânia interfere nesta questão?

Se, em 2018, foram os Estados Unidos de Trump a abalar os alicerces do acordo sobre o nuclear iraniano (com a retirada unilateral), em 2022 é a Rússia de Vladimir Putin que torna o dossiê refém do conflito na Ucrânia.

Confrontado com um isolamento internacional em amplos domínios, justificado com a agressão à Ucrânia, o regime de Moscovo mudou a sua posição nas negociações internacionais com o Irão. No início de março, de forma inesperada, a Rússia exigiu aos Estados Unidos “garantias escritas” de que a sua relação comercial com o Irão, bem como a cooperação militar e os investimentos não seriam afetados pelas sanções à Rússia.

A possibilidade do colapso nas negociações chegou a Viena e as negociações pararam por tempo indeterminado. A 11 de março, o chefe da diplomacia da UE, Borrell confirmava: “É necessária uma pausa nas conversações de Viena, devido a fatores externos. Um texto final está essencialmente pronto e sobre a mesa”.

Para os países que tiraram lições da guerra na Ucrânia e querem acabar com a sua dependência energética em relação à Rússia, o levantamento das sanções ao petróleo e gás do Irão criaria mais abundância nos mercados internacionais e previsivelmente estabilizaria os preços da energia, inflacionados pela guerra na Ucrânia. Algo em que a pressionada Rússia não está interessada.

Como se posiciona o Irão perante tudo isto?

Para os iranianos, o impasse negocial significa a continuidade das sanções internacionais. Pelo acordo de 2015, Teerão obteve garantias de que as sanções seriam levantadas. Com isso não só conseguiria alívio ao nível das contas públicas como capitalizaria com a alta do preço do petróleo.

Só em bancos da Coreia do Sul, um dos maiores clientes do crude iraniano, o Irão tem congelados 7000 milhões de dólares (€6500 milhões) em fundos.

Outro braço de ferro é a exigência do Irão para que os Estados Unidos retirem da lista de organizações terroristas os Guardas da Revolução, força de elite iraniana criada após a Revolução Islâmica de 1979, assim rotulada à época da Administração Trump.

Desde que há novo Presidente em Teerão — Ebrahim Raisi tomou posse em agosto de 2021 — e face às dificuldades num entendimento com o Ocidente, a Rússia tem surgido como parceiro preferencial e de futuro para o Irão. Raisi já visitou Putin no Kremlin e Hossein Amir-Abdollahian, o ministro iraniano dos Negócios estrangeiros, foi a Moscovo pelo menos sete vezes.

Ao quarto dia da invasão russa da Ucrânia, 300 empresários russos, de sectores como as indústrias química, farmacêutica e alimentar, chegaram a Teerão para desenvolver relações comerciais e, previsivelmente, trocar opiniões e experiências sobre como contornar o cerco internacional. Além das sanções, ambos os países estão excluídos do sistema internacional de pagamentos SWIFT.

Para os iranianos, o colapso destas negociações significará rédea livre para desenvolverem o seu programa nuclear na direção que entenderem — para fins civis, militares ou ambos.

Sexta-feira passada, a convite do primeiro-ministro de Israel, o diretor-geral da AIEA realizou uma curta visita ao país. Naftali Bennett deixou claro a Grossi que “embora Israel prefira a diplomacia para privar o Irão da possibilidade de desenvolver armas nucleares, reserva-se o direito de autodefesa e de ação contra o Irão para travar o seu programa nuclear”. O Médio Oriente arrisca-se a ter mais um capítulo na sua longa história de conflitualidade.

(IMAGEM O acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano foi negociado pelo Irão e mais seis países BRUSSELS MORNING)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de junho de 2022. Pode ser consultado aqui

Novo acordo nuclear à vista

Viena acolhe há 10 meses negociações sobre o nuclear iraniano. O negociador-mor garante: “Aproximamo-nos do fim”

A bandeira do Irão numa bomba FREE*SVG

Que é feito do acordo sobre o programa nuclear iraniano?

Há negociações em curso com vista à sua reativação e um novo compromisso pode estar a dias de ser anunciado. “As conversações sobre o [acordo] nuclear em Viena estão a chegar a um ponto sensível e importante”, alertou, quarta-feira, o ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros, Hossein Amirabdollahian. “Questionamo-nos se o lado ocidental pode adotar uma abordagem realista para avançarmos para os restantes pontos das conversações.” Enrique Mora, o coordenador dos trabalhos em nome do chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, confirmou no Twitter a aproximação à meta. As conversações “estão num momento crucial. Aproximamo-nos do fim após 10 meses de negociações. O resultado é ainda incerto”.

O que se conhece do novo compromisso?

O objetivo é o mesmo de sempre — colocar o programa nuclear do Irão sob supervisão internacional —, mas as negociações estão a contemplar a associação de aspetos inéditos, como a libertação de ocidentais detidos no Irão. O levantamento das sanções é a principal contrapartida de Teerão, designadamente o descongelamento de sete mil milhões de dólares (€6200 milhões) em fundos que o Irão tem em bancos da Coreia do Sul, um dos maiores clientes do crude iraniano.

Que dizem os detratores de um entendimento?

“Podemos ver um acordo em breve”, mas será “mais curto e mais fraco do que o anterior” e permitirá que Teerão construa uma enorme quantidade “de centrifugadoras avançadas sem restrições” quando o acordo expirar, profetizou esta semana Naftali Bennett, primeiro-ministro de Israel. Este país sempre disse que não permitiria que o Irão tivesse armas nucleares.

Os EUA participam no diálogo em Viena?

Participam indiretamente. Há representantes norte-americanos na capital austríaca, mas as reuniões com os iranianos estão restritas à Rússia, China, França, Reino Unido e Alemanha. As negociações decorrem em quatro hotéis (Palais Coburg, Vienna Marriott, Ritz-Carlton e Hotel Imperial), onde estão hospedadas as sete delegações. O regresso dos EUA ao acordo, do qual saíram em 2018, por iniciativa de
Donald Trump, é um objetivo de Joe Biden.

A crise na Ucrânia está a afetar as negociações?

Pode ser surpreendente, mas não, apesar de o diálogo envolver a Rússia e países que já anunciaram sanções a Moscovo após a decisão de reconhecer a independência de Donetsk e Luhansk. A perspetiva da guerra avolumou preocupações sobre disrupções no fornecimento energético, o que está a atirar o preço do barril do petróleo para perto dos 100 dólares (€88). A perspetiva de, por força de um novo acordo, o Irão retomar as exportações de crude seria uma boa notícia.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui

Perfil de Ebrahim Raisi. Intolerante à corrupção, o novo Presidente do Irão inicia funções com o nome na lista de sanções dos Estados Unidos

O oitavo Presidente da República Islâmica toma posse, esta quinta-feira, diante do Parlamento. Após uma carreira de 40 anos ao serviço da justiça, Ebrahim Raisi é apontado como futuro sucessor de Ali Khamenei na liderança espiritual do país. Sem experiência política, tem a complicar a nova tarefa o facto de enfrentar pessoalmente sanções decretadas pelos Estados Unidos

Ebrahim Raisi ascendeu à presidência do Irão aos 60 anos. O turbante negro revela descendência direta do Profeta Maomé MEGHDAD MADADI / WIKIMEDIA COMMONS

Os calendários eleitorais e a vontade popular determinaram que, em 2021, tanto Estados Unidos como Irão renovassem as suas presidências com outros rostos. Mas mesmo com Joe Biden em Washington e Ebrahim Raisi em Teerão, não está garantida qualquer melhoria no contacto entre os dois países, sem relações diplomáticas desde 1979.

Três dias após ser eleito, o novo chefe de Estado iraniano deu uma concorrida conferência de imprensa em Teerão, onde foi inquirido sobre se planeava encontrar-se com o homólogo norte-americano. “Não”, respondeu secamente.

Nesse encontro com a imprensa, Raisi — que, esta quinta-feira, toma posse diante do Parlamento — defendeu a continuação das conversações indiretas que decorrem, em Viena, sobre o futuro do acordo nuclear (do qual os EUA se retiraram por decisão do anterior Presidente, Donald Trup), instou Washington a levantar as sanções e definiu o programa de mísseis balísticos iraniano como “inegociável”.

Raisi respondeu aos jornalistas com o manto de estadista colocado. De um prisma pessoal, a perspetiva de diálogo com os EUA é algo que também se lhe afigura impossível. Desde finais de 2019 que o novo Presidente do Irão é alvo de sanções dos Estados Unidos.

A 4 de novembro desse ano, dia em que se assinalou o 40.º aniversário do início da crise dos reféns na embaixada dos EUA em Teerão — 52 pessoas foram mantidas em cativeiro durante 444 dias —, a Administração Trump decretou sanções financeiras contra o Estado-Maior das Forças Armadas iranianas e nove outros indivíduos próximos do ayatollah Ali Khamenei. Raisi era um dos visados.

“Esta ação visa impedir que os fundos fluam para uma rede secreta de assessores militares e de relações exteriores de Ali Khamenei que há décadas oprimem o povo iraniano, exportam o terrorismo e avançam com políticas desestabilizadoras em todo o mundo”, lê-se no decreto.

À época da imposição das sanções, Raisi levava meses na liderança do sistema judicial do Irão. Fora nomeado para o cargo pelo Líder Supremo, após décadas de experiência na área. Começou em 1981, aos 20 anos, como promotor de justiça na cidade de Karaj, perto de Teerão.

Essa longa experiência contribuiria para uma mancha negativa na sua reputação, profusamente recordada no momento da sua eleição. O seu nome surge associado à sinistra “comissão da morte”, que, em 1988 — era Raisi vice-procurador-geral de Teerão —, supervisionou a execução extrajudicial de presos políticos nas prisões de Evin e Gohardasht, nos arredores da capital.

Crimes contra a humanidade

No dia seguinte à vitória de Raisi nas presidenciais de 18 de junho, a Amnistia Internacional divulgou um comunicado intitulado “Ebrahim Raisi tem de ser investigado por crimes contra a Humanidade”. “Como chefe do sistema judicial iraniano, presidiu a uma violenta repressão aos direitos humanos em que centenas de dissidentes pacíficos, defensores dos direitos humanos e membros de grupos minoritários foram perseguidos e detidos arbitrariamente.”

“Sob a sua supervisão”, continua a organização de defesa dos direitos humanos, “foi concedida impunidade total a funcionários do Governo e forças de segurança responsáveis ​​por matar ilegalmente centenas de homens, mulheres e crianças e sujeitar milhares de manifestantes a prisões em massa e pelo menos centenas a desaparecimentos forçados, tortura e outros maus tratos durante e após os protestos em todo o país em novembro de 2019.”

Neste período, duas execuções tiveram grande repercussão internacional: a do lutador Navid Afkari e a do jornalista Ruhollah Zam, ambas em 2020.

À frente do sistema judicial, Raisi promoveu um conjunto de reformas penais que resultaram na libertação de presos e na comutação de sentenças de pena de morte, o que lhe angariou popularidade.

Ganhou as eleições à primeira volta, com expressivos 61,95%, naquele que foi o escrutínio menos participado de sempre (51,2% de abstenção). Votaram no vencedor cerca de 18 milhões dos quase 29 milhões de eleitores que foram às urnas. Raisi teve a vida facilitada pelo chumbo aplicado pelo Conselho de Guardiães — órgão que valida as candidaturas à presidência — a alguns perfis moderados e reformistas que poderiam fazer-lhe frente.

Raisi assentou a sua campanha em slogans como “honra nacional”, “dignidade humana” e “igualdade social”, surgindo aos olhos dos eleitores como um homem humilde, intolerante à corrupção. A experiência na 40 anos na área da justiça levou muitos iranianos a acreditarem que será ativo no combate à corrupção, uma das principais queixas do povo.

Ebrahim Raisi nasceu a 14 de dezembro de 1960, em Mashhad, a mesma cidade no nordeste do país onde, 21 anos antes, nasceu Ali Khamenei, atual Líder Supremo do Irão. Mashhad é a segunda cidade do Irão e um importante centro religioso xiita, já que alberga o túmulo de Reza, o oitavo dos doze imãs infalíveis que compõem a linhagem xiita.

Nascido no seio de uma família religiosa, perdeu o pai aos cinco anos e aos 15 começou a estudar no seminário de Qom, a principal cidade santa para os xiitas. Dali assistiu ao avolumar do descontentamento popular em relação ao monarca Mohammad Reza Shah Pahlavi, que haveria de o derrubar e levar os ayatollahs ao poder.

Aos 23 anos, Raisi casou com a professora universitária Jamileh Alamolhoda, de quem teve duas filhas. Pelo casamento, tornou-se genro de Ahmad Alamolhoda, conhecido pregador ultraconservador nas orações de sexta-feira, em Mashhad, que chegou a proibir música ao vivo e mulheres ciclistas na cidade.

Sayyid de turbante negro

Além da visão ideológica conservadora, partilha com o Líder Supremo o título de sayyid. Segundo o Islão xiita, esmagadoramente maioritário no Irão, um sayyid descende diretamente de Fatima, filha do profeta Maomé, e simbolicamente usa um turbante negro para evidenciar esse estatuto.

Nos últimos anos, Raisi tem sido apontado como potencial sucessor de Khamenei, como líder espiritual do Irão. O próprio Khamenei foi Presidente (1981-89), imediatamente antes de assumir a liderança religiosa da República (sucedendo ao pai fundador, o ayatollah Ruhollah Khomeini). Apesar da sua longa carreira na justiça, só muito recentemente se deu a conhecer ao grande público.

Em 2016, foi nomeado por Ali Khamenei guardião da multimilionária fundação caritativa Astan-e Qods-e Razavi, sedeada em Mashhad, com negócios em múltiplas áreas e que supervisiona o santuário do imã Reza.

No ano seguinte, subiu mais um degrau no reconhecimento público e ascendeu ao primeiro plano da política, desafiando nas urnas Hassan Rohani, o Presidente a quem agora sucede. Durante a campanha, Rohani referiu-se a Raisi como um “daqueles que não conhecem nada além de execuções e prisões”. Raisi perdeu aquelas eleições de 2017, com apenas 38% dos votos, num escrutínio que teve uma taxa de afluência de 73%. Mas os iranianos ficaram a conhecê-lo.

Se a presidência do país é, como muitos suspeitam, um trampolim para se tornar o próximo líder espiritual do Irão, os próximos tempos serão vitais. Raisi terá de mostrar capacidade na governação e conquistar o coração de um povo de mais de 80 milhões em grandes dificuldades económicas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de agosto de 2021. Pode ser consultado aqui

Um novo Presidente sem vontade de falar com o Ocidente

Apontado como sucessor do Líder Supremo, o conservador Ebrahim Raisi herda um país em crise económica. A saída está para leste

Ebrahim Raisi é o oitavo Presidente da história da República Islâmica do Irão HAMED MALEKPOUR / WIKIMEDIA COMMONS

Aos 42 anos de vida, a República Islâmica do Irão parece necessitada de soluções que o pensamento do seu fundador não contemplou. Nos anos que se seguiram à Revolução de 1979, uma frase de Ruhollah Khomeini desiludiu, em especial, os trabalhadores do complexo petroquímico de Azmayesh, cujas greves tinham sido cruciais para o desgaste do xá e subsequente ascensão ao poder dos ayatollahs. “Não fizemos uma revolução para termos melões baratos, fizemo-la pelo Islão”, disse Khomeini.

Hoje, é o preço dos bens de primeira necessidade — seja melão, pão ou gasolina — que mais preocupa os iranianos. Protestos recentes contra a escassez de água potável em cidades da província de Khuzestan (a oeste, junto ao Iraque) foram reprimidos com violência. O petróleo é abundante na região, mas essa riqueza não beneficia quem ali vive.

Sanções não explicam tudo

A política de “máxima pressão” de Donald Trump, que levou à retoma de sanções, colocou o Irão — e mais de 80 milhões de habitantes — à beira do colapso económico. “Com as sanções, que impedem o comércio, as exportações de hidrocarbonetos e o acesso aos mercados financeiros, a economia do país caminha a passos largos para uma situação preocupante, com sinais de grande inquietação no seio da população”, vaticina ao Expresso João Henriques, investigador da Universidade Autónoma de Lisboa e membro do Observatório do Mundo Islâmico. A forte desvalorização da moeda iraniana, o rial, deixou a fasquia da classe média abaixo de 50% da população. Mas as sanções não explicam tudo…

“Há um novo discurso revolucionário que atribui as principais causas da crise no país à corrupção e à má gestão”, diz ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na área dos estudos do Médio Oriente na Universidade do Minho. “Ao considerar uma raiz interna para a maioria dos problemas económicos, uma campanha anticorrupção abrangente requer uma cooperação forte e consistente entre os poderes legislativo, judicial e executivo. Isso será possível, mais do que nunca, com Ebrahim Raisi”. O novo Presidente toma posse quinta-feira.

Há um novo discurso revolucionário que atribui
as principais causas da crise à má gestão e à corrupção

Raisi, de 60 anos, trabalhou no sistema judicial durante 40 e partilha uma visão conservadora com as principais instituições de poder. “É um clérigo há muito apontado como potencial sucessor do Líder Supremo, Ali Khamenei [82 anos]”, diz João Henriques.

Aliança entre sancionados

“Embora o principal foco do futuro Governo sejam as políticas internas — reforma do regime tributário, renascimento de indústrias falidas, investimento na construção e na agricultura industrial e desenvolvimento de zonas industriais para evitar a exportação de matérias-primas —, os planos de Raisi relativos à política externa têm tendência para se voltar para leste”, diz Eslami.

“Será uma mudança significativa em relação à era de Hassan Rohani.” O Presidente cessante, moderado e reformista, defendeu o diálogo com o Ocidente. “Embora a relação com Estados Unidos e União Europeia seja importante, com Raisi será secundária. China e Rússia serão as prioridades.”

Raisi “já deixou patente não ver nas relações com o Ocidente uma prioridade do seu consulado presidencial”, acrescenta Henriques. Desde janeiro de 2016, quando o Presidente chinês, Xi Jinping, visitou Teerão, o Irão tornou-se grande beneficiário da Nova Rota da Seda. Igualmente, é um corredor fundamental para os países da Ásia Central — que abrigam um dos maiores reservatórios energéticos do mundo — acederem a águas internacionais.

Os planos de Raisi relativos à política externa têm tendência para se voltar para leste

Com os Estados Unidos a ameaçarem penalizar qualquer país que faça negócios com o Irão, este tenderá a voltar-se também para outras nações visadas por Washington, como Cuba, Bielorrússia ou Síria. Nos últimos anos, esta estratégia tem acontecido com maior visibilidade com a Venezuela, onde aportaram vários petroleiros com crude iraniano. A relação pode evoluir para “um plano mais ambicioso, que pode ter lugar a longo prazo e que passa pelo estabelecimento de uma base militar ou pelo início de um grupo paramilitar nas Caraíbas”, refere Eslami.

Princípios intocáveis

Ebrahim Raisi foi eleito a 18 de junho, com quase 18 milhões de votos (62%), num escrutínio em que participaram apenas 49% dos eleitores. No Irão, a eleição de um Presidente não acarreta mudanças na política externa. É o Líder Supremo quem define as linhas estratégicas do país; ao Presidente, a margem que resta é escolher que caminho seguir para concretizá-las.

“A política externa do Irão é baseada em princípios revolucionários, que incluem a preservação da integridade territorial, a autossuficiência, o antissionismo, o anti-imperialismo e a defesa do Islão”, enumera o professor iraniano. O apoio a milícias no Iraque, Afeganistão, Palestina, Líbano, Síria e Iémen insere-se num imperativo estratégico de neutralização de ameaças estrangeiras, incluindo militares.

Acordo nuclear: que futuro?

Assim sendo, que empenho colocará Raisi no diálogo internacional sobre o programa nuclear? “Na sua primeira declaração pública após ser eleito, Raisi instou a Administração Biden a voltar ao acordo nuclear, de 2015”, recorda o investigador português.

“O Irão não vai parar com as conversações sobre o nuclear”, acrescenta Eslami, mas não aceitará “participar numa negociação longa e erosiva”. Teerão diz que foi Washington a abandonar o acordo, logo terá de dar provas de boa-fé e levantar as sanções. “Embora o diálogo continue, uma nova ronda de negociações sobre o programa iraniano não parece possível”, conclui. “O programa de mísseis balísticos, que é a base da ‘legítima defesa’ e da ‘dissuasão convencional’, é a ‘linha vermelha’ do Irão” — qualquer que seja o Presidente em funções.

PERFIL DE EBRAHIM RAISI

O oitavo Presidente da história da República Islâmica do Irão partilha com o Líder Supremo a origem (ambos nasceram na cidade religiosa de Mashhad) e o estatuto (ambos reclamam serem descendentes diretos do profeta Maomé, daí usarem o turbante negro de sayyed). Nascido em 1960, Ebrahim Raisi é um clérigo conservador que começou a trabalhar no sistema judicial aos 20 anos, como promotor de justiça em Karaj. O seu nome ficou ligado ao chamado “comité da morte”, composto por funcionários judiciais e agentes secretos, responsável pela execução de milhares de presos políticos, em 1988. Liderou o sistema judicial desde 2019, período em que ocorreram duas execuções que geraram protestos internacionais: a do lutador Navid Afkari e a do jornalista Ruhollah Zam. Em 2017, Raisi debutou no primeiro plano da política: obteve 38% nas presidenciais, que perdeu para o Hassan Rohani, a quem agora sucede.

(FOTO Ebrahim Raisi é o oitavo Presidente da história da República Islâmica do Irão HAMED MALEKPOUR / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de julho de 2021

Iranianos elegem novo Presidente. Quem são os candidatos?

Os iranianos escolhem, esta sexta-feira, um novo Presidente. Apesar de não ser dos cargos mais influentes na complexa estrutura política iraniana, o chefe de Estado é o rosto que representa e defende o país fora de portas. Há quatro candidatos nos boletins de voto, nenhum assumidamente reformista

Ebrahim Raisi, um dos candidatos às presidenciais iranianas HAMED MALEKPOUR / WIKIMEDIA COMMONS

Desde o início do ano que tanto os Estados Unidos como Israel renovaram as respetivas lideranças. Joe Biden está na Casa Branca desde 20 de janeiro e Naftali Bennett chefia o Governo de Israel desde domingo passado. Esta sexta-feira, é o Irão que elege um novo Presidente. Só a prazo, combinadas todas as novas sensibilidades, se perceberá como vai evoluir um dos dossiês que mais tensão geram a nível internacional — o programa nuclear iraniano.

“O Presidente é considerado o representante da nação em reuniões oficiais, e fala em seu nome”, explica ao Expresso o iraniano Mohammad Eslami, investigador na Universidade do Minho, que se dedica aos estudos do Médio Oriente. “A diplomacia do país está nas mãos do Presidente. Assim, presidentes diferentes podem seguir abordagens diferentes em relação às políticas externa e interna.”

Biden quer revitalizar o acordo internacional assinado em 2015 (do qual Donald Trump retirou os EUA, três anos depois), que sujeitava o programa nuclear do Irão a supervisão internacional. O israelita Bennett não desafina da posição do seu antecessor, Benjamin Netanyahu, e já afirmou que reativar o acordo seria “um erro”.

Quanto ao Irão, nos últimos anos, tem tido um Presidente defensor do diálogo com o Ocidente, Hassan Rouhani. Acontece que este está de saída e quem lhe sucede pode não pensar de igual forma.

Esta sexta-feira, mais de 59 milhões de eleitores dirão em quem confiam para governar nos próximos quatro anos. Dos 592 iranianos que tentaram candidatar-se — com idades entre os 40 e os 75 anos —, apenas sete passaram no crivo do Conselho dos Guardiães (ver infografia abaixo). Sestes, três desistiram a dois dias do escrutínio. Nos boletins de voto haverá, pois, quatro nomes, nenhum deles assumidamente reformista:

EBRAHIM RAISI

É o candidato do establishment político, apoiado pelos sectores conservadores e da linha dura. É apontado como potencial sucessor do Líder Supremo, o ayatollah Ali Khamenei e, tal como este, usa um turbante preto, indicativo de que é um sayyid, isto é descendente do Profeta Maomé. Tem 60 anos e lidera, desde 2019, o aparelho judicial, onde trabalhou durante décadas e ganhou fama de ser implacável no combate à corrupção. Em 1988, integrou uma comissão que condenou à morte milhares de prisioneiros políticos, após a guerra Irão-Iraque. Integra a Assembleia de Peritos, órgão responsável pela nomeação e exoneração do Líder Supremo. Em 2017, perdeu as presidenciais para Rohani, com 38% dos votos. E em 2019, foi alvo de sanções por parte dos Estados Unidos.

ABDOLNASER HEMMATI

Formado em Economia, tem 66 anos e é um tecnocrata moderado que ocupou o cargo de governador do banco central iraniano desde 2018. Durante este período, este antigo jornalista teve de lidar com uma forte desvalorização do rial e com as sanções norte-americanas ao sector bancário, incluindo ao próprio banco, que deprimiram o país. Serviu em posições destacadas durante as presidências do conservador Mahmud Ahmadinejad e do reformista Hassan Rouhani, o que revela capacidade para trabalhar com fações opostas. É o único não conservador a ir a votos. Poderá concentrar os votos reformistas, que, porém, estão em perda devido ao desencanto com a atual administração Rohani e aos problemas económicos agravados pela reintrodução de sanções ao país.

MOHSEN REZAEI

Candidata-se à presidência pela quarta vez — concorreu em 2005, 2009 e 2013, e perdeu sempre. Em 2000 candidatou-se a um lugar no Parlamento e também não conseguiu ser eleito. Tem 66 anos e uma carreira militar de décadas. Entre 1981 e 1997, foi comandante-chefe dos Guardas da Revolução. Liderou estas forças durante a guerra Irão-Iraque. Desde 1997, é secretário do Conselho de Discernimento, que arbitra disputas legislativas entre o Parlamento e o Conselho de Guardiães. É formado em Economia, pela Universidade de Teerão.

AMIR-HOSSEIN GHAZIZADEH HASHEMI

É médico de profissão, na especialidade de otorrinolaringologia. É deputado desde 2008, de linha ultraconservadora. É primeiro vice-presidente do Parlamento. Tem posições extremadas em relação ao dossiê nuclear, tendo já defendido a saída do Irão do Tratado de Não Proliferação Nuclear. Aos 50 anos, é o mais novo dos quatro candidatos. Prometeu formar um Governo jovem para guiar a Revolução numa nova fase.

Um dos quatro homens passará a ser o rosto o Irão fora de portas, ainda que a presidência esteja longe de ser a instituição mais influente na estrutura política da República Islâmica.

“O Presidente é o braço executivo da liderança e o representante do povo a nível executivo”, diz o professor Eslami. “Conforme os princípios religiosos, o governo da sociedade islâmica é da responsabilidade do jurista (Velayat-e Faqih) que foi nomeado governante da sociedade islâmica”, ou seja, o Líder Supremo ayatollah Ali Khamenei.

“Mas isso não contradiz o facto de o jurista também ter assistentes e conselheiros para fazer avançar a sociedade segundo as regras e leis religiosas. A Constituição prevê três ramos, um dos quais o executivo, e uma vez que o seu chefe é eleito diretamente pelo povo e muitos assuntos executivos são-lhe confiados, o cargo também é considerado liderança. Pode dizer-se que o Presidente é o primeiro vice do líder, responsável pelos assuntos executivos. Ele responde perante o líder.”

No topo da pirâmide do poder está o Líder Supremo. Dele emanam múltiplos centros de poder, compostos por instituições ora nomeadas ora eleitas por sufrágio universal.

Enquanto chefe de Governo, o Presidente tem poderes limitados. Entre as suas obrigações está o dever de nomear os membros do gabinete e fazer uma proposta de orçamento, que depois devem ser aprovados no Parlamento. É eleito para um máximo de dois mandatos de quatro anos.

“Enfatizar a importância da presidência não significa subestimar outras instituições, como os poderes judiciário e legislativo”, conclui o professor Eslami. “Mas como o Presidente é eleito por voto popular direto, também tem um lugar especial na Constituição.” Ainda que quem defina os parâmetros das políticas a seguir seja o Líder Supremo.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui