Quase onze meses depois das legislativas, o Iraque continua sem Governo. Um dos principais protagonistas políticos defendia, até agora, a dissolução do Parlamento e a convocação de novas eleições. Esta segunda-feira, anunciou que sai da política. Já há apoiantes revoltados e multiplicam-se receios do regresso aos dias da violência
Vencedor das últimas eleições legislativas no Iraque, mas sem apoios parlamentares suficientes para fazer passar a sua solução de Governo, o poderoso líder xiita Muqtada al-Sadr anunciou, esta segunda-feira, que vai abandonar a política.
“Decidi não me intrometer nos assuntos políticos. Portanto, anuncio agora a minha reforma definitiva”, escreveu, no Twitter, o clérigo que chefia uma poderosa fação xiita, a sensibilidade islâmica maioritária entre a população do Iraque.
De Bagdade, a agência Reuters escreveu que a decisão “provocou protestos dos seus seguidores”, muitos deles envolvidos, desde há semanas, num protesto permanente (sit-in) nos jardins do Parlamento, e que “levantou receios de mais instabilidade”.
Também presente na capital iraquiana, a cadeia televisiva Al-Jazeera testemunhou, esta segunda-feira, que “mais apoiantes de Al-Sadr juntaram-se aos que têm participado no sit-in junto ao Parlamento, originando receios de uma escalada que possa desestabilizar o país ainda mais”.
Um grupo de sadristas invadiu mesmo o Palácio Republicano e afirmou o seu poder lançando-se à piscina. À semelhança do Parlamento, este edifício cerimonial situa-se na chamada Zona Verde, a área com mais segurança de Bagdade.
Respondendo à agitação e aos alertas de violência iminente, o Exército iraquiano declarou um recolher obrigatório a partir das 15h30 desta segunda-feira.
A decisão de Muqtada al-Sadr tem como cenário uma grave crise política que tem paralisado o Iraque há quase um ano. O país realizou eleições legislativas a 10 de outubro de 2021. O Movimento Sadrista (de Muqtada) foi a formação mais votada, mas no Parlamento os diferentes partidos políticos não conseguiram acordar a formação de um novo Executivo.
Após ordenar aos seus deputados que se demitissem e incitar os seus seguidores a invadirem o Parlamento — a 30 de julho ocuparam-no e posteriormente montaram tendas nos jardins —, Al-Sadr apelou à dissolução do Parlamento e à convocação de eleições antecipadas.
Sábado passado, refez a estratégia. Defendeu que, para se resolver a crise, “mais importante” do que dissolver o Parlamento e ir de novo a votos é que “todos os partidos e personalidades que têm integrado o processo político” desde a invasão norte-americana do Iraque e a queda de Saddam Hussein, em 2003, “deixem de participar”. E esclareceu, para que não restassem dúvidas: “Isso inclui o Movimento Sadrista”.
Esta segunda-feira, paralelamente à sua retirada da política, o clérigo anunciou que “todas as instituições” ligadas ao Movimento Sadrista serão encerradas. Haverá uma exceção: o mausoléu do pai, o Grande Ayatollah Muhammad Sadiq al-Sadr, importante líder religioso xiita, assassinado a tiro em 1999, mandava ainda no país o sunita Saddam Hussein.
Muqtada al-Sadr integra uma linhagem política importante no Iraque. Aos 48 anos de vida, é já um líder experiente, com provas dadas à frente de uma milícia numerosa na luta contra as tropas dos Estados Unidos e as forças iraquianas que pactuaram com a ocupação estrangeira.
Nos corredores políticos, o clérigo é tido como figura camaleónica, que toma decisões e depois reverte-as. Os próximos dias permitirão perceber se o tweet de Al-Sadr é para valer ou se é uma forma de fazer pressão sobre as formações políticas rivais.
(FOTO Muqtada al-Sadr e o Líder Supremo do Irão, ayatollah Ali Khamenei WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui
O Irão consumou a prometida vingança à morte do general Qasem Soleimani bombardeando duas bases militares dos Estados Unidos no Iraque. O ataque tem implícitas mensagens importantes para dentro e, sobretudo, para fora do país
As ruas iranianas clamaram por vingança e ela foi servida exatamente cinco dias após os Estados Unidos terem assassinado o general iraniano Qasem Soleimani, que comoveu toda a nação persa.
Duas rajadas de mísseis atingiram esta madrugada outras tantas bases norte-americanas no Iraque. “Uma chapada na cara” dos EUA, disse o Líder Supremo do Irão, o “ayatollah” Ali Khamenei. A bola está agora do lado dos Estados Unidos. Até se perceber se haverá resposta, é importante atentar nos recados que o Irão quis enviar com este ataque, para dentro e fora de portas.
O ataque vingou o assassínio do general
A operação “Vingança Dura”, como Teerão batizou o ataque, foi desencadeada sensivelmente à mesma hora a que, na sexta-feira passada, Qasem Soleimani foi atingido mortalmente por um drone dos EUA no aeroporto internacional de Bagdade. “Entre a 1h45 e as 2h45 [mais três horas do que em Portugal Continental], o Iraque foi atacado por 22 mísseis”, anunciaram os militares iraquianos em comunicado. “Todos os mísseis atingiram bases da coligação [internacional].”
Se na sexta-feira, Donald Trump reagiu no Twitter publicando apenas uma imagem da bandeira norte-americana, desta vez foi Saeed Jalili, representante do Líder Supremo no Conselho Supremo de Segurança Nacional, a responder-lhe à letra, ‘postando’ a bandeira do Irão. Uma brincadeira na rede social favorita de Trump reveladora da predisposição das partes para seguirem com a tática de “olho por olho”.
O Irão atacou por si e não através de terceiros
Uma das (enormes) vantagens estratégicas do Irão no Médio Oriente é o chamado “arco de influência” que construiu no mundo árabe (o Irão não é árabe, mas sim persa). São atores importantes ao serviço dessa estratégia o Hezbollah no Líbano, forças paramilitares na Síria, milícias armadas no Iraque e os huthis no Iémen, que em setembro reivindicaram um espetacular ataque contra refinarias na Arábia Saudita que afetou fortemente a produção de petróleo do reino.
Qasem Soleimani era o grande arquiteto das intervenções militares iranianas e um comandante muito presente no terreno, junto desses atores. Na hora de retaliar a sua morte, Teerão quis faze-lo por mãos próprias — e não recorrendo a um ou vários dos seus próximos (“proxies”). Não há dúvidas de que o ataque foi lançado a partir do seu território.
O programa balístico iraniano funciona
Nos dois bombardeamentos, o Irão utilizou mísseis balísticos, projéteis sofisticados com capacidade para transportar ogivas nucleares que seguem trajetórias pré-determinadas.
Uma das críticas mais fortes ao acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano — co-assinado pelos EUA de Obama em 2015 e do qual Trump retirou o país em 2018 — é o facto de excluir restrições ao programa de mísseis balísticos do Irão. Na altura, este facto foi uma grande vitória negocial do Irão: apesar de condicionado na produção de armas nucleares, ficava de mãos livres para continuar a desenvolver o seu veículo de entrega, ou seja, os mísseis balísticos.
As bases atingidas são simbólicas
Os alvos da operação iraniana foram bases militares de grande importância estratégica para os EUA. Uma delas, Al-Assad, localizada na província de Anbar, a 180 km para oeste de Bagdade, é a maior base aérea do Iraque.
Foi esta base que Trump visitou aquando da sua primeira visita a tropas em missão, no Natal de 2018. No ano passado, foi ali que o vice-presidente Mike Pence passou o Dia de Ação de Graças.
Começou a ser usada pelas forças americanas após a invasão do Iraque que derrubou Saddam Hussein, em 2003; deixou de funcionar após a retirada das tropas de combate dos EUA, em finais de 2011; e foi reativada no contexto da luta contra os jiadistas do Daesh.
A outra base alvejada situa-se em Erbil, no Curdistão iraquiano. Em outubro, foi desta base que partiu a unidade de comandos que surpreendeu e eliminou Abu Bakr al-Baghdadi, líder do autoproclamado Estado Islâmico (Daesh), na cidade síria de Barisha.
No combate ao Daesh, EUA e Irão estiveram do mesmo lado da barricada e, no Iraque, foi crucial o desempenho das Forças de Mobilização Popular (xiitas), apoiadas pelo Irão. O seu nº 2, o iraquiano Abu Mahdi al-Muhandis, foi assassinado pelos EUA no mesmo ataque que vitimou Qasem Soleimani.
Se os EUA retaliarem, há outros países em mira
Com os ecrãs das televisões tomados por rastos de luz no céu escuro do Iraque à passagem dos mísseis iranianos, correspondentes de órgãos de informação ocidentais em Teerão eram porta-vozes de mais recados do regime dos ayatollahs.
“O Irão está a avisar que se houver retaliação às duas vagas de ataques lançadas, a terceira vaga destruirá o Dubai e Haifa”, escreveu no Twitter Ali Arouzi, da televisão norte-americana NBC.
O Dubai é um dos sete emirados que compõem os Emirados Árabes Unidos, um aliado dos EUA na região. E Haifa é uma cidade de Israel, o país que mais tem pressionado o amigo americano no sentido de um confronto militar com o Irão.
Um ataque a estes dois países arrastaria todo o Médio Oriente para uma guerra total, com consequências em todo o mundo. Esta quarta-feira, o primeiro-ministro israelita advertiu: “Estamos firmes contra aqueles que buscam as nossas vidas. Estamos de pé com determinação e força. Quem tentar atacar-nos receberá em troca um golpe esmagador”, declarou Benjamin Netanyahu, numa conferência em Jerusalém. De forma não oficial, Israel tem armas nucleares.
Mensagens para dentro de portas
Na euforia do ataque, as autoridades iranianas disseram que tinham sido mortos “80 terroristas”, como o Irão passou a designar os soldados norte-americanos. Mas nem os EUA nem o Iraque confirmam a existência de vítimas mortais.
A informação terá, porém, confortado muitos iranianos, feridos no seu orgulho pela execução de uma figura popular como o general e que os orgulhava.
O ódio ao “Grande Satã” (como a República Islâmica se refere aos EUA) é um factor de unidade nacional no Irão e a primeira reação oficial iraniana ao ataque espelha-o: “Saiam da nossa região!”, escreveu no Twitter o ministro das Telecomunicações, Azari Jahromi.
Nos EUA, no conta-gotas noticioso relativo ao perfil deste ataque começaram a surgir insinuações de que o Irão pode não ter atingido soldados norte-americanos “intencionalmente”. Se assim foi, e atendendo às palavras do seu chefe da diplomacia — “Não queremos guerra com os EUA”, disse Mohammad Javad Zarif —, o Irão dá sinais de querer resolver esta crise pela via do diálogo possível.
O exército iraquiano recuperou o controlo dos campos petrolíferos de Kirkuk. Estavam nas mãos dos curdos, que os tinham conquistado aos jiadistas do Daesh
As tropas iraquianas assumiram esta terça-feira o controlo de todos os campos de exploração de petróleo operados pela empresa estatal North Oil Company, na região de Kirkuk.
As infraestruturas, bem como toda a cidade, estavam nas mãos dos peshmergas (forças curdas iraquianas), que a tinham reconquistado aos jiadistas do autodenominado Estado Islâmico (Daesh).
Os curdos não ofereceram qualquer resistência ao avanço das tropas de Bagdade, apoiadas no terreno por milícias xiitas.
Esta terça-feira, as autoridades de Bagdade fizeram saber que a produção de petróleo naquela zona do norte do Iraque está a decorrer com normalidade e sem interrupções.
Esta ofensiva militar, ordenada pelo Governo central, foi iniciada no domingo à noite e justificada com a necessidade de garantir a integridade territorial iraquiana. No passado dia 25, um referendo na região do Curdistão pronunciou-se, esmagadoramente, pelo “sim” à secessão.
Nas últimas horas, a conta do primeiro-ministro iraquiano no Twitter tem enumerado vários telefonemas internacionais recebidos por Haider al-Abadi, em apoio da unidade iraquiana e contra o referendo curdo. O último foi do ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha.
PM Al-Abadi receives a call from the German FM who stresses support for territorial integrity of Iraq, rejection of KRG referendum
— Haider Al-Abadi حيدر العبادي (@HaiderAlAbadi) October 16, 2017
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de outubro de 2017. Pode ser consultado aqui
O primeiro-ministro do Iraque anunciou, no domingo, a reconquista da cidade de Mossul aos jiadistas do Daesh. Acabado de regressar daquela cidade, um médico do Porto, experiente em zonas de conflito, explica por que considera esta uma das suas missões “mais difíceis”. E revela como os iraquianos reagiram às mensagens de esperança que levou consigo desde Portugal
Sempre que parte para uma missão humanitária, o médico Gustavo Carona leva preso à mochila um cachecol do Futebol Clube do Porto. “É uma peça simbólica. Nele vai o meu mundo, os meus amigos, a minha família. É a minha forma de matar saudades”, confessa.
Em finais de maio, para a sua sétima missão — na cidade iraquiana de Mossul, ocupada pelos jiadistas desde junho de 2014 —, levou na mala algo tão ou mais especial ainda: exemplares de um livro da sua autoria que começou a ganhar forma apenas um mês antes de partir. A pensar em todos aqueles que se dizem inquietos com as guerras no mundo e não saber o que fazer para as contrariar, Gustavo escreveu no Facebook um “post” provocador…
“Dentro de um mês irei para o Iraque, Mossul, trabalhar com os Médicos Sem Fronteiras”, escreveu a 25 de abril. “Tentarei fazer o que sei, salvar vidas num dos locais mais necessitados dos dias de hoje. Mas para além disso gostava de levar comigo mensagens de quem acreditar que não podemos ficar indiferentes a alguns acontecimentos trágicos da atualidade, como tem sido esta guerra por Mossul.”
Criou um endereço de e-mail e esperou que a dinâmica das partilhas na internet fizesse o resto. “Não mencionem o meu nome. Isto não é sobre mim. É de cada um de vocês para todas as pessoas que sejam dignas do vosso grito de esperança.” Sem saber que eco as suas palavras iriam ter, tinha para si uma única certeza: seria o mensageiro de quem se desse a esse trabalho. Custasse o que custasse, as mensagens enviadas de Portugal chegariam a mãos iraquianas.
Aos 36 anos, o médico Gustavo Carona cumpriu em Mossul a sua sétima missão humanitária, a sexta ao serviço dos Médicos Sem Fronteiras GUSTAVO CARONA
De partilha em partilha, os posts de Gustavo “mexeram” com centenas de amigos, conhecidos e pessoas de quem ele nunca ouvira falar, e puseram famílias e turmas de estudantes a escrever.
Escreveu Paula Assunção: “Povo de Mossul, O mundo das pessoas bem formadas não está indiferente ao vosso sofrimento. Podem retirar-vos muita coisa mas nada, nem ninguém, vos pode retirar a dignidade, a inocência, a esperança, os vossos sonhos. Que nunca deixem de acreditar no dia de amanhã… e nas pessoas. Acreditem que somos muitos mais do que os monstros covardes que vos atormentam e acreditem na vossa/nossa força. Eu acredito.”
“1001 Cartas para Mosul” está à venda nas livrarias e na internet. As receitas do livro revertem, na totalidade, para os Médicos Sem Fronteiras e para a Plataforma de Apoio aos Refugiados MOSUL EYE
Ao email, foram chegando mensagens, ilustrações e a disponibilidade de falantes de língua árabe para traduzir as mensagens. No livro “1001 Cartas para Mossul”, estão publicadas 246 mensagens, umas em português, outras inglês, todas em árabe.
“O máximo que consegui levar foi 28 exemplares. Mas já enviei muitos mais por email, em formato digital. Entreguei a muitos dos meus companheiros de trabalho iraquianos que são de Mossul e que, por sua vez, fizeram chegar a várias associações, ativistas e até órgãos de informação iraquianos, que receberam o projeto com entusiasmo e grande emoção. Fui convidado a apresentar o livro em Mossul, mas infelizmente não pude ir. É maravilhoso, aquele povo sentiu um apoio simbólico, mas muito forte e genuíno, em nome de Portugal. Passaram reportagens na televisão iraquiana que me comoveram…”
A dedicação à causa humanitária já levou Gustavo Carona a trabalhar em hospitais da República Democrática do Congo (RDC), do Afeganistão, Paquistão e Síria. Um mês passado em Mossul foi suficiente para considerar a experiência iraquiana como “uma das mais difíceis” que já teve em oito anos de Medicina Humanitária. “Já vi muita guerra e testemunhei muitas histórias tristes. Ainda assim, no Iraque, tive de segurar as lágrimas em vários momentos do meu trabalho. A tristeza das histórias sufocavam emocionalmente e deixavam, mesmo pessoas muito experientes, absolutamente desarmadas.”
Contrariamente à RDC ou ao Afeganistão, por exemplo, que vivem uma conflitualidade crónica e duradoura, à qual, de certa forma, as populações já moldaram o seu quotidiano, o Iraque era, até à intervenção norte-americana de 2003, um país estável e desenvolvido — ainda que sem liberdade, governado pelo “pulso de ferro” de Saddam Hussein. No contexto da guerra, Mossul — a maior cidade do norte do Iraque, a 400 quilómetros de Bagdade — sofreu duplamente: devido à guerra civil e ao facto de se ter tornado, a par da síria Raqqa, uma das capitais do Daesh. Foi do púlpito de uma mesquita de Mossul, a Grande Mesquita Al-Nuri, que, a 29 de junho de 2014, Abu Bakr al-Baghdadi anunciou ao mundo o “Estado Islâmico”.
Em Mossul, o Daesh teve a maior concentração de população — dois milhões de pessoas — à sua mercê. E exerceu esse controlo com grande brutalidade durante três anos. “A cidade está completamente destruída. Quase toda a gente viu familiares morrer”, diz o médico. “De uma forma ou de outra, todas as famílias foram desmembradas.”
Hospital dos Médicos Sem Fronteiras onde o médico português trabalhou, a cerca de 30 quilómetros para sul de Mossul, a oeste do rio Tigre MÉDICOS SEM FRONTEIRAS
Em Mossul, Gustavo trabalhou num hospital “feito de raiz, essencialmente com tendas”, numa zona controlada pelo exército iraquiano. Especialista em Anestesia e Cuidados Intensivos, assistiu feridos de guerra e gente esfomeada, desnutrida, desidratada — as temperaturas nesta época do ano chegam a rondar os 50ºC — e com ferimentos variados.
“Quando o conflito se intensificava, os doentes chegavam-nos ‘em massa’, na sua maioria civis. Ver as portas do hospital abrirem-se com dezenas de feridos, ensanguentados e aos gritos dá um nó na garganta”, recorda. “Queimados, vítimas de explosões e da queda de edifícios, que colapsam em cima de famílias inteiras, pessoas cravadas por estilhaços dos pés à cabeça… E nós só víamos ‘os que tinham sorte’…” Os que tinham a sorte de sobreviver…
Licenciado pela Faculdade de Medicina do Porto e a exercer, desde 2014, no Serviço de Medicina Intensiva do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, Gustavo Carona realizou a sua primeira missão em 2009, em Moçambique, com os Médicos do Mundo. A foto é de Mossul GUSTAVO CARONA
No domingo, o primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, deslocou-se a Mossul para saudar a “cidade libertada” e “os heroicos combatentes e o povo iraquiano pela grande vitória”. A operação de reconquista da cidade ao Daesh foi lançada a 17 de outubro de 2016 e nela participaram uma variedade de forças ilustrativas da grande complexidade étnico-religiosa que é o Iraque: exército iraquiano, combatentes curdos (peshmergas), tribos árabes sunitas, milícias xiitas, todos apoiados pela coligação militar liderada pelos Estados Unidos.
Para a população de Mossul, sobretudo para quem não fugiu, os meses pareceram anos, em que viveram encurralados na sua própria cidade, reféns dos jiadistas e, muitos deles, também vítimas das rivalidades internas iraquianas. “As pessoas de Mossul têm uma grande perceção de maldade”, conclui Gustavo Carona. “Por parte do Daesh, mas também de forças iraquianas e de outros grupos armados. Aquelas pessoas testemunharam atrocidades indescritíveis.”
(Foto principal: Numa mão, estes iraquianos seguram o livro com mensagens de esperança enviadas de Portugal. Na outra, cartazes de agradecimento MOSUL EYE)
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 10 de julho de 2017. Pode ser consultado aqui
Um dia após as forças iraquianas declararem vitória sobre o Daesh e recuperarem a cidade de Fallujah, pelo menos 12 pessoas foram mortas num ataque suicida contra uma mesquita
Pelo menos 12 pessoas morreram e 32 ficaram feridas num ataque suicida contra uma mesquita em Abu Ghraib, a meio caminho entre Bagdade e Fallujah. As vítimas tinham participado na oração da meia-noite de segunda-feira, que se seguiu ao “iftar”, a refeição após o pôr do sol com a qual os muçulmanos quebram o jejum do Ramadão.
Responsáveis iraquianos confirmaram esta terça-feira que o atentado foi levado a cabo por um homem que trazia vestido um colete armadilhado. O ataque não foi reivindicado.
A mesquita visada situa-se numa área predominantemente sunita. Bagdade e Fallujah distam 65 quilómetros e localizam-se no chamado triângulo sunita onde, após a deposição de Saddam Hussein, se organizou a resistência sunita contra o novo poder xiita e, mais recentemente, se infiltrou o autoproclamado Estado Islâmico (Daesh), criando bases para atacar Bagdade e arredores.
Este foi o primeiro ataque após as forças iraquianas declararem vitória, no domingo, sobre o autoproclamado Estado Islâmico (Daesh) em Fallujah, após cinco semanas de combates. A ofensiva foi apoiada por bombardeamentos aéreos da coligação internacional liderada pelos Estados Unidos.
Segundo o sítio de análise geopolítica Stratfor, pelo menos 1800 combatentes do Daesh foram mortos durante a reconquista de Fallujah, que estava sob controlo jiadista desde janeiro de 2014.
Para o primeiro-ministro iraquiano, Haider Al-Abadi, a recuperação daquela cidade abre caminho à retomada de Mossul, no Curdistão iraquiano, o último grande reduto do Daesh em território iraquiano. “Vamos derrotar o Daesh em todo o Iraque com as nossas bravas forças armadas”, escreveu no Twitter.
Após a declaração da “libertação total” de Fallujah, as forças iraquianas continuam a perseguir extremistas em fuga, procurando prevenir futuros ataques. Um responsável do exército citado pela Reuters estima que cerca de 150 extremistas estejam escondidos ao longo da margem sul do rio Eufrates. “Têm duas opções: ou rendem-se ou serão mortos. Queremos impedir que recuperem o fôlego e ataquem as nossas forças com carros armadilhados”, afirmou o coronel Ahmed al-Saidi àquela agência noticiosa.
Desde Fallujah, a repórter da Associated Press, Susannah George, escreve que “dezenas de casas foram saqueadas e queimadas durante a libertação de Fallujah”. Enquanto o Governo iraquiano acusa militantes do Daesh em fuga, alguns responsáveis responsabilizam “milícias xiitas que participaram na operação ao lado da polícia federal”.
Os combates forçaram mais de 85.000 residentes a fugir para acampamentos sobrelotados, geridos pelo Governo, no meio do deserto.
As Nações Unidas confirmaram a existência de incidentes sectários durante a campanha de Fallujah, com base em relatos de abusos contra civis em fuga, realizados por membros de grupos xiitas que estiveram ao lado das forças nacionais na ofensiva contra o Daesh.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de junho de 2016. Pode ser consultado aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.