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Pressionado no terreno, Daesh contra-ataca… com palavras

Após a conquista de Ramadi aos jiadistas, as autoridades iraquianas apressaram-se a identificar a próxima batalha — Mosul — e a prometer o fim do Daesh para 2016. Confrontados com crescentes perdas territoriais, os extremistas contra-atacam com retórica. Muçulmanos de todo o mundo respondem-lhes… com sarcasmo

A reconquista de Ramadi, concluída na segunda-feira pelas tropas iraquianas, é o mais visível — e importante — de um conjunto de desaires acumulados recentemente pelo autoproclamado Estado Islâmico (Daesh). Aquela cidade iraquiana é um dos vértices do chamado “triângulo sunita”, uma grande área habitada maioritariamente por populações muçulmanas sunitas (confissão minoritária no Iraque) que engloba a capital, Bagdade.

No tempo de Saddam Hussein, o “triângulo” era um bastião de apoio ao Presidente (também ele sunita). No pós-Saddam, tornou-se um pólo aglutinador do descontentamento sunita em relação à governação sectária de Bagdade (beneficiando a maioria xiita) e uma zona permeável ao Daesh (sunita) que capitalizou apoio com a frustração sunita.

Mas para Bagdade, Ramadi é só o início da libertação do Iraque das mãos do Daesh. “Após a vitória em Ramadi, a libertação da nossa querida Mosul será alcançada graças à cooperação e à unidade de todos os iraquianos”, afirmou o primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi. “2016 será o ano da grande vitória final, quando a presença do Daesh no Iraque terminar.”

Situada a 400 km para norte de Bagdade, a retoma de Mosul (a segunda cidade iraquiana) significará, para as autoridades iraquianas, o fim do “califado” proclamado, a 29 de junho de 2014. “Foi ali que Abu Bakr al-Baghdadi declarou o seu califado”, disse o ministro das Finanças Hoshiyar Zebari. “É, literalmente, a capital deles.”

Raqqa debaixo de fogo

Também na Síria, o cerco ao Daesh está a apertar-se. Raqqa, onde o Daesh tem o seu quartel-general, tem sido alvo de fortes bombardeamentos da aviação norte-americana, russa e francesa, intensificados após os atentados de Paris de 13 de novembro.

No sábado, as Forças Democráticas da Síria — uma coligação rebelde apoiada pelos EUA e que inclui curdos sírios e grupos árabes e cristãos — capturaram ao Daesh a grande barragem de Tishrin, no Rio Eufrates, 90 km para leste de Alepo, no âmbito de uma operação que visa cortar as linhas de abastecimento dos jiadistas no norte da Síria.

No dia seguinte, o ministério da Defesa da Rússia — país que tem sido acusado de alvejar mais grupos opositores a Bashar al-Assad do que posições do Daesh — divulgou um vídeo filmado com drone mostrando bombardeamentos russos a 37 refinarias e outras instalações petrolíferas e 17 colunas de camiões do Daesh preparados para transportar, clandestinamente, petróleo para a Turquia.

Daesh sobe a fasquia e ameaça Israel

Enquanto, no sábado, já se anunciava a recuperação de Ramadi — e Bagdade celebrava um teste bem sucedido à capacidade operacional das forças iraquianas —, surgia nas redes sociais um áudio atribuído a Abu Bakr al-Baghdadi (mas cuja autenticidade não foi confirmada de forma independente).

Na mensagem de 24 minutos, o “califa” (que não se ouvia desde maio) garantia que os bombardeamentos da Rússia e da coligação liderada pelos EUA não conseguiam enfraquecer o Daesh. “Estejam confiantes de que Deus concedará a vitória àqueles que o adoram, e ouçam as boas notícias de que o nosso Estado está a ir bem. Quanto mais intensa é a guerra, mais pura e mais difícil ela se torna”, disse.

Al-Baghdadi não se limitou à defesa e subiu a fasquia das ameaças como nunca antes, visando diretamente… Israel, que faz fronteira com a Síria, mas, até ao momento, não foi alvo dos jiadistas. “Estamos mais próximos de vocês a cada dia que passa. Não pensem que nos esquecemos de vocês”, disse. “Deus fez com que os judeus de todo o mundo se reunissem em Israel, o que torna a guerra contra eles mais fácil.”

Ao ameaçar Israel, o Daesh tenta ganhar popularidade entre os muçulmanos — o ódio a Israel é um sentimento partilhado de Rabat a Jacarta. Mas também corre o risco de estar a lavrar a sua sentença de morte. Jurgen Todenhofer, um jornalista alemão de 75 anos que, em 2014, passou dez dias junto do Daesh, afirmou, recentemente, numa entrevista ao jornal digital britânico “The Jewish News”: “O único país que o Daesh teme é Israel. Disseram-me que estão conscientes que o exército israelita é demasiado forte para eles”.

Muçulmanos sarcásticos com o Daesh

Na gravação atribuída a Al-Baghdadi, o Daesh diz-se rodeado de inimigos e apela ao levantamento de muçulmanos no mundo inteiro. O apelo foi correspondido, mas não exatamente no sentido pretendido pelos jiadistas…

“Desculpa camarada, não quero arriscar morrer antes de sair o próximo Guerra das Estrelas”, tweetou @MohsinArain91. “O meu pai diz que tenho de estar em casa às oito da noite. Estamos despachados a essa hora?”, ironizou uma muçulmana que se identifica como @guidanceofgod.

“Desculpa lá Daesh. Este muçulmano aqui acaba de acordar. Precisa de café. E também, como é fim de semana de Natal, tenho de estar com a família. Estou no ir”, escreveu @SalmanSoz. “Desculpa, mas vou celebrar o ano novo com amigos e estou ocupado a organizar a festa. Talvez mais tarde?”, propôs @najibsamehgmail.

Acossado no terreno, também no teatro da propaganda o Daesh está a sentir cada vez mais resistência.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 29 de dezembro de 2015. Pode ser consultado aqui

“Leva-me para o teu país, seja onde for”

Milhares de cristãos iraquianos fugiram de casa com medo de serem mortos pelos extremistas islâmicos. Uma espanhola descreve ao Expresso a sua visita a centros onde estão estes refugiados, no norte do Iraque. “Um bispo disse-nos que se nada não for feito para mudar a situação, estão a escrever-se as últimas linhas da história do cristianismo no Iraque”

As igrejas estão transformadas em casas sobrelotadas, os jardins são albergues a céu aberto e, na via pública, há espaços repletos de tendas. Erbil, no norte do Iraque, é hoje uma montra do desespero de milhares de cristãos, forçados a partir de um dia para o outro quando extremistas islâmicos lhes entraram aldeia dentro.

“Durante o dia, eles estão tranquilos, mas a situação é fantasmagórica”, conta ao Expresso Maria Lozano, vice-diretora da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), regressada de uma visita à região. “O mais importante para estas pessoas é terem um teto sobre a cabeça. Anqawa tornou-se numa enorme sala de espera. Eles perguntam: ‘O que se vai passar connosco?’”

Anqawa é o bairro cristão da cidade de Erbil (a capital do Curdistão iraquiano). Ali estão refugiados cerca de 70 mil cristãos, fugidos de Qaraqosh — cidade de maioria cristã e sede do Arcebispado de Mossul — após a chegada das forças jihadistas, na noite de 6 para 7 de agosto. “Estão distribuídos por 22 centros de ajuda: colégios, edifícios em construção, pequenos ginásios, escolas, salões paroquiais, jardins… Na catedral vivem umas 700 famílias, o jardim está cheio. E com temperaturas a rondar os 44 graus, tudo se torna mais difícil. Quem está em jardins ou parques tenta agrupar-se como pode em lugares onde haja um pouco de sombra.”

A vida ficou, subitamente, virada do avesso para quem teve de fugir, mas também para quem se dispôs a estender a mão aos refugiados. Aradin, um pequeno povoado da região de Erbil onde viviam 50 famílias cristãs, abriu as portas a 250 outras… “As pessoas fazem tudo para ajudar os refugiados, mas isto tem um grande impacto nas comunidades”, explica Maria Lozano.

Mais a norte, em Duhok, está um outro grande grupo de cristãos, fugidos de Mossul, após a conquista desta cidade pelos jihadistas, a 10 de junho. “Ameaçaram que lhes cortavam a cabeça se não se convertessem ao Islão ou não pagassem o imposto religioso. Estava claro para os cristãos que mesmo que pagassem o imposto, outras cobranças se seguiriam a quem mostrasse ter dinheiro.”

Maria Lozano estima que chegaram a Duhok cerca de 60 mil cristãos. “Ali estão mais distribuídos, em casas de familiares e amigos”. Em 2003, viviam em Mossul 35 mil cristãos, hoje não resta nenhum.

Da boca dos cristãos, Maria não ouviu histórias de que algum tenha sido assassinado por recusar a conversão ao Islão. “As zonas cristãs despovoaram-se rapidamente. Quando começaram a ouvir falar da chegada dos jihadistas, meteram-se nos carros e fugiram, deixando tudo para trás. Como cristã, penso que foi um pequeno milagre terem podido fugir e salvar as suas vidas daquilo que parecia ser um massacre iminente. Quase não houve mortos.”

O desespero de passar pelo mesmo

Os cristãos iraquianos dividem-se na hora de pensar o futuro. Uns querem continuar a viver no Iraque, onde as suas famílias ali vivem há gerações, outros querem abandonar o país. “Alguns pedem-nos ajuda para regressarem a suas casas. Todas as pessoas que viviam em Qaraqosh têm a esperança de aí regressar. Mas dizem que isso só pode acontecer se alguém lhes garantir a segurança. Não querem voltar a passar pelo mesmo sofrimento”, conta Maria Lozano.

“Depois, há um grupo de pessoas que já acumula várias experiências duras, que já teve de partir mais do que uma vez. Esses, que fugiram de Mossul, por exemplo, estão bastante mais desesperados. Têm o trauma de um país que se está a esvair em sangue e dizem que não podem continuar a viver ali. Alguns diziam: ‘Leva-me para o teu país, seja onde for. Não queremos viver mais num país em guerra, onde os direitos dos cristãos não são respeitados ou defendidos’.”

Na semana passada, a bordo do avião que o trouxe da Coreia do Sul (onde cumpriu uma visita de cinco dias), o Papa Francisco — questionado se aprovava os bombardeamentos dos EUA sobre posições jihadistas — defendeu que todos os esforços para travar os militantes islamitas que ameaçam as minorias religiosas iraquianas são lícitos.

“Nestes casos, quando há uma agressão injusta, apenas posso dizer que é lícito parar o agressor injusto. Sublinho o verbo ‘parar’. Não digo ‘bombardear’ ou ‘fazer a guerra’. Com que meios devem ser parados? Isso tem de ser avaliado”, defendeu o chefe da Igreja Católica. O Papa referiu também que a decisão de intervir não deve ser tomada por um país unilateralmente, mas deve ser uma resposta internacional coletiva.

O fim de uma igreja antiga?

Além da recolha de testemunhos, Maria Lozano e dois outros elementos da Fundação AIS que se deslocaram ao Iraque procuraram fazer um diagnóstico das carências diárias dos refugiados cristãos para canalizar ajuda. Desde o início desta crise humanitária, a fundação já enviou 230 mil euros para fazer face, sobretudo, à necessidade de cobertores, alimentos, água potável e medicamentos.

A AIS também contactou bispos, padres, religiosas e voluntários para aferir das suas preocupações. “Um bispo disse-nos que se nada não for feito para mudar a situação, estão a escrever-se as últimas linhas da história do cristianismo no Iraque.”

As estatísticas dizem que em 1991 havia cerca de cinco milhões de cristãos no Iraque; hoje, não serão mais de 300 mil. A Igreja do Iraque é das mais antigas do mundo. Maria recorda que há 1500 anos — ainda antes do advento do Islão — 80% dos iraquianos eram cristãos. “Agora são menos de 1% da população.”

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de agosto de 2014. Pode ser consultado aqui

 

 

 

A hora do Curdistão

Os curdos são o maior povo sem Estado. A destruição do Iraque reacende o sonho da independência

Combatentes peshmergas espetam no solo a bandeira do Curdistão ERFAN.KURDI / WIKIMEDIA COMMONS

No Iraque, são os curdos que estão na linha da frente do combate aos radicais islâmicos. Esta semana, o Governo alemão disse estar pronto para lhes fornecer armas — diretamente e sem passar pelas autoridades de Bagdade, enfraquecidas pela incapacidade em conter a ameaça jihadista. A mesma intenção já tinha sido expressa por franceses, britânicos, italianos e espanhóis. Os Estados Unidos já estão a fornecer armas aos curdos à revelia de Bagdade. A manobra é politicamente sensível: confere estatuto aos curdos, que sonham há gerações com a criação de um Estado que os coloque em pé de igualdade com qualquer outro país.

Osamah Mohammed, um curdo de 29 anos, sente que um Curdistão independente está mais próximo do que nunca. “Há uns anos, os políticos curdos falavam da marginalização do nosso povo e não eram escutados. Na Casa Branca, ninguém estava interessado em receber os nosso líderes”, diz ao Expresso, em entrevista telefónica a partir do Curdistão iraquiano. “Agora, todos estão interessados. Os ministros dos Negócios Estrangeiros dos Estados Unidos e da Alemanha vieram cá desenvolver contactos diretos. O Curdistão está muito próximo da independência. E já é tempo!”

A região curda iraquiana (as províncias de Duhok, Erbil e Suleimaniah) goza de autonomia limitada desde 1970. Mas para os curdos (cerca de 15% dos iraquianos), esse estatuto especial não os tem poupado a problemas. “Quando o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL, entretanto batizado Estado Islâmico) tomou Mossul, a 10 de junho, o exército iraquiano fugiu e não protegeu os curdos”, recorda Osamah. “Mesmo agora, há centenas de milhares de pessoas em fuga à violência extremista e as for- ças iraquianas não estão lá. Desde o estabelecimento do Iraque como um Estado moderno (o mandato britânico terminou em 1932) que os curdos enfrentam a opressão e sofrem campanhas genocidas. É só recordar o que aconteceu em 1988, aqui, onde eu moro…”

Osamah vive em Halabja onde, já na reta final da guerra Irão-Iraque (1980-1988), cerca de 5000 pessoas foram mortas num único dia (16 de março), durante um ataque com armas químicas ordenado por Saddam Hussein. O regime tinha em curso a operação Anfal, que consistia em ataques sistemáticos contra populações não-árabes: curdos, assírios, shabaks, turcomenos, iazidis, judeus e mandeus. Hoje, para os curdos, a invasão do Iraque de 2003 — que depôs Saddam — foi uma guerra de “libertação”.

À espera do referendo

O desconforto curdo em relação aos restantes iraquianos assenta numa identidade cultural distinta. Os curdos são muçulmanos (de credo maioritariamente sunita), mas não são árabes e têm uma língua própria, de raiz indo-europeia. “Sentimos que não fazemos parte do Iraque”, continua Osamah. “Se continuarmos a integrar o país, os problemas prosseguirão. É o que está a acontecer agora. Há forças do EIIL a atacar o povo curdo a propósito de um problema que não é nosso. A maioria dos combatentes do EIIL é árabe e estão a lutar em nome de um Estado islâmico, que é algo em que os curdos nunca pensaram. Nunca tivemos problemas religiosos, temos um problema étnico com o resto do Iraque, que está a piorar.”

Em julho, Massoud Barzani, Presidente da região autónoma do Curdistão desde 2005, solicitou ao Parlamento regional a formação de uma comissão para organizar um referendo à independência. “É uma questão de meses”, garantiu então em entrevista à BBC. “O Iraque está agora efetivamente dividido. Devemos continuar nesta situação trágica que o país está a viver?”, continuou Barzani. “Já afirmei muitas vezes que a independência é um direito natural do povo do Curdistão. E todos estes desenvolvimentos recentes o reafirmam.” Osamah acredita que, se o referendo for avante, “mais de 90%” da população aprovará a independência. Em 2005, num referendo informal, o “sim” obteve 98,98%.

Aproveitando o vácuo ao nível da segurança, o Governo regional curdo, a 11 de julho, enviou peshmergas para a área dos campos petrolíferos de Kirkuk, explorados pela estatal iraquiana North Oil Company. Em teoria, esse valioso recurso permitiria aos curdos acrescentarem mais 500 mil barris à sua produção diária de petróleo. Mas com o Governo iraquiano a não abdicar da negociação de todo o crude, têm escasseado compradores para o petróleo curdo.

Segundo o sítio de análise geopolí- tica Stratfor, os curdos venderam um primeiro carregamento a um israelita e ficaram-se por aqui. Quatro petroleiros andaram “à deriva” em diferentes latitudes — um deles ao largo de Marrocos —, sem que ninguém autorizasse o descarregamento. O “United Kalavryta” dirigiu-se para a costa do Golfo, nos EUA, e fez disparar os alarmes… “Guarda Costeira, Departamento de Estado, Departamento de Seguran- ça Interna e Conselho de Segurança Nacional foram mandados à pressa quando um cargueiro tentou descarregar 100 mil barris de crude curdo”, revela a Stratfor.

Rodeados de tubarões

Nesta estratégia de desafio ao Governo de Bagdade, os curdos têm um aliado improvável — a Turquia, que alberga uma minoria curda com pretensões separatistas e que, até 1991, proibia o uso da língua curda. (Em 2012, Ancara admitiu, pela primeira vez, o ensino do curdo nas escolas, como disciplina de opção.) É através do oleoduto que liga o norte do Iraque ao porto turco de Ceyhan que sai o petróleo curdo.

Ainda assim, não deixou de causar surpresa a visita que o Presidente curdo, Barzani, fez a Ancara, a 16 de julho, onde se encontrou com o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan. “Não espero receber assistência ativa nem oposição”, disse Barzani, referindo-se ao assunto “independência”.

“Estamos rodeados de tubarões”, disse um membro do Governo curdo, citado pelo “Financial Times”, sob anonimato. “A independência significa atarmo-nos à Turquia, o maior tubarão da vizinhança.” A questão curda pressiona quatro países, todos com minorias curdas de milhões de pessoas. Além da Turquia e do Iraque, a Síria continua a sucumbir à guerra civil, com parte do território nas mãos do EIIL. E a leste, o Irão também teme um contágio doméstico de uma eventual emancipação dos curdos.

A Jerusalém dos curdos

Porém, a tensão não se sente apenas nos países limítrofes. Dentro do Iraque, Kirkuk, por exemplo, é um potencial campo de batalha. Se hoje o centro político curdo é Erbil, Kirkuk é a capital desejada. Há quem diga que está para os curdos como Jerusalém está para os palestinianos.

No entanto, além dos curdos, também turcomenos e árabes reclamam o controlo da cidade: os primeiros, alegam direitos históricos e uma maioria populacional no seu centro; os últimos, a quem chamam “os árabes dos dez mil” (chegaram ali no âmbito de um programa de arabização do regime que lhes dava 10 mil dinares de ajuda), querem ficar e ter voz política.

Osamah garante que o novo país seria socialmente estável. “Fiz a universidade em Duhok, onde agora estão refugiadas milhares de pessoas (que fugiram à violência jihadista). Havia iazidis, cristãos, muçulmanos, árabes, curdos, que viviam em comunidade. Nunca senti que algum iazidi ou cristão não fazia parte da nossa sociedade. Tenho cinco amigos que foram afetados pelos recentes acontecimentos em Sinjar (perseguições aos iazidis). Um deles teve de fugir para a montanha. Ligava-lhe todos os dias para saber se estava em segurança. E como eu, também outros amigos muçulmanos.”

CURIOSIDADES

  • Saladino, o grande herói dos árabes que conquistou Jerusalém aos cruzados, era curdo. Nasceu em 1138, em Tikrit, onde também nasceu e está sepultado Saddam Hussein.
  • Após a I Guerra Mundial, o Tratado de Sèvres (1920), celebrado entre Aliados e o derrotado Império Otomano, contemplou a criação de um Curdistão, no atual território turco. De fora ficariam os curdos do Irão, do Iraque (controlado por britânicos) e da Síria (tutelada pela França). Tratados posteriores silenciaram o assunto.
  • Em janeiro de 1946, apoiados pela União Soviética, os curdos do Irão fundaram a República Mahabad, no Nordeste do país. A experiência terminou no fim do ano com a tomada do território por forças iranianas.
  • Os peshmergas (“os que enfrentam a morte”, em curdo) têm brigadas femininas, comandadas por mulheres. Atualmente, estão envolvidas em combates contra os jihadistas. Em 2003, já tinham participado na guerra do Iraque e, no ano anterior, em combates contra o Ansar al-Islam (grupo salafita maioritariamente curdo), em Halabja.

Artigo publicado no Expresso, a 23 de agosto de 2014

Depois dos islamitas, a ameaça vem dos políticos

Com um terço do território iraquiano controlado pelos extremistas islâmicos, a classe política em Bagdade não dá sinais de entendimento

Os iraquianos estão encurralados entre o perigo islamita e… a teimosia dos políticos. Oriundo da comunidade xiita (como a maioria dos iraquianos), o primeiro-ministro Nuri al-Maliki recusa abandonar o cargo, como pedem adversários internos e a comunidade internacional. O seu afastamento, dizem, viabilizaria a formação de um Governo mais inclusivo e representativo das várias sensibilidades étnico-religiosas iraquianas. E fortaleceria o combate aos extremistas do Estado Islâmico (ex-Estado Islâmico do Iraque e do Levante), que ameaça a unidade do país.

Esta segunda-feira à tarde, o Presidente iraquiano incumbiu o vice-presidente do Parlamento, Haider al-Abadi, de formar um novo Governo. “O país está agora nas suas mãos”, disse-lhe o chefe de Estado Fouad Masoum. Abadi, que tem agora 30 dias para formar governo, é xiita como Nuri al-Maliki e pertence ao mesmo partido político, mas não é certo que o atual primeiro-ministro aceite a escolha e abdique de lutar por um terceiro mandato.

Domingo, por volta da meia-noite, Maliki surgiu determinado nas televisões, acusando o Presidente iraquiano, um curdo (eleito pelo Parlamento a 24 de julho último), de fazer arrastar o processo de nomeação de um primeiro-ministro. Maliki ameaçou mesmo levar Masoum a tribunal por não cumprir a Constituição e não convidar o líder da formação política mais votada nas eleições (ou seja, Maliki) a formar Governo.

Maliki tem a seu favor a legitimidade do voto. Nas eleições de 30 de abril, a sua coligação política foi a mais votada (elegeu 94 deputados em 328 possíveis). Porém, o seu nome não é consensual. É acusado de defender uma agenda sectária, hostilizando deliberadamente a minoria sunita (em que se apoiou Saddam Hussein). Descontentes com o poder central, muitos sunitas “vingam-se” dando apoio ao Estado Islâmico, que controla um terço do Iraque (cinco vezes maior do que Portugal) e parte importante da vizinha Síria.

Tanques nas ruas, pontes encerradas

Esta segunda-feira, vários sites noticiosos deram conta de um forte aumento do dispositivo de segurança na região de Bagdade, com mais milícias xiitas e forças leais ao chefe de Governo nas ruas e arredores da capital. Este aparato é atribuído à vontade de Maliki demonstrar influência.

“Nuri al-Maliki recusa demitir-se. Agora, ele mobilizou não apenas forças de segurança que lhe são leais, mas também unidades do exército que colocaram tanques nas ruas”, comentou à CNN o analista militar Rick Francona. “Algumas pontes foram encerradas. Parece que ele está a tentar bloquear a cidade numa espécie de confronto com o Presidente. Não é um bom presságio.”

Maliki, que é primeiro-ministro desde 2006 (tinha a intervenção americana no Iraque começado há três anos), parece apostado na fuga para a frente, consciente de que um novo mandato parece cada vez mais distante. A aliança política que lidera – Estado de Direito – foi fortemente pressionada para lhe retirar o apoio e indicar outro nome para a chefia do Governo – o que aconteceu esta segunda-feira de tarde.

E até dos Estados Unidos Maliki perdeu o apoio. “O processo de formação do Governo é crítico para a manutenção da estabilidade e calma no Iraque”, afirmou esta segunda-feira o secretário de Estado norte-americano, John Kerry. “Temos esperança de que Maliki não vá agitar essas águas.”

A hora dos curdos

Os Estados Unidos têm em curso bombardeamentos aéreos contra alvos do Estado Islâmico, no norte do Iraque, e o Departamento de Estado norte-americano anunciou esta segunda-feira o fornecimento direto de armas aos curdos (até agora, esse apoio era feito através de Bagdade). Notícias dão conta de que os peshmerga (forças curdas) estão prestes a lançar uma contraofensiva para reconquistar território ao grupo jihadista.

“Os bombardeamentos dos EUA fortaleceram a moral dos peshmerga”, disse um assessor de um comandante peshmerga, que pediu anonimato, citado pelo sítio “Al Monitor”. “Os peshmerga estão agora à espera de ordem para atacar posições do Estado Islâmico e avançar. Estão à espera da hora H.”

Segundo o Comando Central dos EUA (CentCom), os bombardeamentos com caças e drones prosseguiram no domingo em defesa das posições curdas, perto de Irbil. Um C-17 e três C-130 procederam, também, ao quarto lançamento de água e comida sobre a Montanha de Sinjar, para onde fugiram milhares de iraquianos da minoria yazidi, após verem-se cercados pelos jihadistas. Até ao momento, os EUA já distribuíram mais de 74 mil refeições e 75 mil litros de água potável.

O ministro iraquiano dos Direitos Humanos confirmou no domingo a execução de pelo menos 500 yazidis às mãos dos combatentes do Estado Islâmico, após a entrada dos jihadistas em Sinjar. Mohammed Shia al-Sudani esclareceu que algumas pessoas, incluindo mulheres e crianças, foram enterradas vivas e que cerca de 300 mulheres foram feitas escravas. “Temos provas conclusivas obtidas de sobreviventes yazidis, bem como fotos dos sítios dos crimes que não deixam margem para dúvidas.”

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 11 de agosto de 2014. Pode ser consultado aqui

 

Fareed estudava sem luz e ao som das bombas

Há vidas com um antes e um depois daquele momento em que os protagonistas decidiram parar de repetir a palavra aguentar e decidiram conjugar o verbo mudar. A história do iraquiano Fareed Nabeel

Aos 24 anos Fareed estava empenhado em dar uma grande alegria aos pais. Para qualquer clã iraquiano, ter um filho médico ou engenheiro é das maiores fortunas que podem desejar. Nascido em 1979, o mais velho dos três filhos daquela família católica de Bagdade queria dar o exemplo e provar que não precisava mais do que os seis anos curriculares para se formar em Medicina. Teria sido assim se a guerra não rebentasse. Os exames finais coincidiram com a invasão americana, em Abril de 2003. Estudava sem luz e ao som das bombas. A temperatura chegava aos 50 graus. O Iraque estava um caos, recorda Fareed.

Por causa da guerra, qualquer médico recém-licenciado tinha vaga. Fareed foi colocado em Sadr City, um bairro xiita problemático nos arredores de Bagdade. “Às vezes, para não correr riscos de ser atingido por uma bala perdida, ia a rastejar até ao hospital. Um colega meu morreu assim”. Passou a viver ao dia, sem garantias de regressar a casa são e salvo. De manhã, despedia-se da família como se não mais os voltasse a ver. “Sentia-me como se fosse para um campo de batalha. A minha mãe chorava e pedia-me para não ir trabalhar, mas tinha de ser…” Um dia, foi ameaçado. Queriam que deixasse o hospital. Pela primeira vez, sentiu que ser católico era uma adversidade.

Então, tomou conhecimento que em Portugal havia falta de médicos. E predispôs-se à mudança. “Cheguei em Abril de 2006. Era tudo estranho. No Iraque, praticamente, só conhecemos o país através do futebol…” Com a cabeça a prémio no Iraque, inicia um processo de sobrevivência em Portugal. Para exercer Medicina tinha de fazer o exame de equivalência, dali a uns meses e não falava uma palavra de português. “Arrendei um quarto a uma senhora de idade, a Dona Guida. Quando entrei em casa dela pela primeira vez só comunicávamos por gestos. Tirei um curso intensivo e comecei a ouvir rádio e a ver as telenovelas. Quando a Dona Guida se sentava para tomar o café, lia-lhe artigos dos jornais e ela corrigia”.

A história de Fareed cruza-se, então, com a do seu próprio país. Com os pais reformados, o seu irmão do meio, que trabalhava como engenheiro electrotécnico em Bassorá, era o único que lhe podia valer. “Ele chegava a pedir ao patrão para depositar o ordenado dele, integralmente, na minha conta”. Mas no Iraque pós-Saddam quem trabalhasse na reconstrução do país colocava-se na mira dos insurgentes. Um dia, o irmão de Fareed é ameaçado por homens armados. Se não deixasse aquele trabalho pagaria com a vida.

Sem meios de subsistência e com o exame à porta, no Hospital Santa Maria, Fareed venceu a vontade de desistir. Contou a sua história na Fundação Gulbenkian, na Associação dos Médicos Católicos e no Serviço Jesuíta aos Refugiados e conseguiu apoios e um trabalho, a cuidar de um doente com parkinson. Como milhares de iraquianos fugidos à guerra, chegado a Portugal, Fareed podia ter solicitado o estatuto de refugiado. “Não escolhi essa via por uma questão de princípio. Quis fazer tudo com esforço próprio”.

Em Junho de 2007, Fareed obteve a desejada equivalência, na Faculdade de Medicina de Lisboa, com a mesma nota que teve no Iraque, 13. Agora, frequenta o internato geral em Torres Novas. Aos poucos, sente que a vida começa a estabilizar. Gosta de cozido à portuguesa, apaixonou-se por Cascais e não dispensa o cafezinho pela manhã. Ainda não foi a Fátima, como a mãe lhe pediu, mas reza para, um dia, retribuir a generosidade do irmão: “O que eu mais queria é que ele viesse trabalhar para Portugal”.

Artigo publicado na revista Única do Expresso, a 13 de setembro de 2008