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Ramadão: Um desafio para o corpo, para a mente e para os hábitos quotidianos dos muçulmanos

Para os muçulmanos, o Ramadão é muito mais do que um período de jejum. É um exercício de autocontrolo, que os ensina a lidar com o sofrimento da privação e a contornar a tentação

Um quarto da população mundial — cerca de 1800 milhões de pessoas, 50 mil das quais em Portugal — cumpre por estes dias a prática do Ramadão. Durante um mês, desde o nascer até ao pôr do sol, viverão privadas de prazeres mundanos e, por isso, algo condicionadas no seu convívio quotidiano com os não-muçulmanos.

Para estes, revelar sensibilidade e respeito para com familiares, amigos ou colegas de trabalho que professem o Islão passa por evitar comer ou beber na sua presença, não agendar almoços de trabalho ou “esquecer” o colega muçulmano na pausa para o cigarro ou o cafezinho. E também desejar-lhes um bom Ramadão (“Ramadan mubarak”).

Durante este ritual, os crentes devem abster-se de comer, beber (mesmo água), fumar, ter relações sexuais e privar-se de tudo o que possa constituir um deleite para o corpo, como o uso de perfumes. O jejum deve ser cumprido também ao nível do pensamento, estando os crentes obrigados a evitar todo o tipo de pensamentos imorais.

Da mesma forma que o exercício físico fortalece o corpo, os muçulmanos acreditam que o jejum fortifica a vontade, levando-os a lidar com o sofrimento da privação e a contornar a tentação. O Ramadão surge, pois, como um ato de penitência que é encarado também como um exercício de autocontrolo.

Quebrar o jejum em convívio

O Ramadão é obrigatório para todos os muçulmanos de ambos os sexos. Estão dispensados as mulheres grávidas, menstruadas ou que estejam a amamentar, bem como doentes, idosos com fraca saúde e crianças que ainda não atingiram a puberdade, e também crentes que estejam a efetuar viagens longas.

Aqueles que, voluntária ou involuntariamente, rompam o jejum devem compensar esses dias de não-observância noutra ocasião. Terá sido o caso do futebolista egípcio Mohamed Salah que, no ano passado, interrompeu o Ramadão para disputar a final da Liga dos Campeões.

O jejum é o quarto de cinco pilares do Islão: os restantes são a profissão de fé, a oração, a obrigatoriedade da esmola e a peregrinação a Meca. Paralelamente à dimensão pessoal, tem inerente uma vertente social já que as duas refeições permitidas — após o pôr do sol (“iftar”) e antes do nascer do sol (“suhur”) — transformam-se em momentos de confraternização, partilha e celebração da fé que ultrapassam as fronteiras da família.

Ao ritmo da Lua

Contrariamente ao que acontece com o Natal cristão, o Ramadão não tem uma data fixa. A cada ano, o período de jejum antecipa sensivelmente 11 dias em relação ao ano anterior, surgindo desfasado no calendário gregoriano, umas vezes no inverno outras na primavera, e por aí em diante.

Isto acontece porque os muçulmanos regem-se pelo calendário lunar, composto por 354 ou 355 dias. Ramadão é o nome do nono mês do calendário islâmico, que pode ter 29 ou 30 dias, conforme o que a observação da Lua ditar.

Sendo o Ramadão um período de recolhimento, dedicado à meditação e à oração, as últimas dez noites são vividas de uma forma especialmente intensa. “Foi numa dessas noites que o [livro sagrado do] Alcorão começou a ser revelado [ao Profeta Maomé, através do arcanjo Gabriel, no ano de 610 d.C.]”, explica ao Expresso o “sheikh” David Munir, líder espiritual da Mesquita Central de Lisboa.

A essa noite especial os muçulmanos chamam “Laylat al-Qadr” (A Noite do Poder). “O Profeta disse que essa noite pode ser a 21.ª [noite do Ramadão], a 23.ª, a 25.ª, a 27.ª ou a 29.ª. Em termos espirituais, essa é uma noite que equivale a 1000 meses”, pelo que as orações são feitas com especial devoção.

O mês do Ramadão termina com uma grande festa — Id al-Fitr —, que muitas vezes se prolonga durante três dias.

Fogo de artifício nos céus de Sarajevo, Bósnia-Herzegovina, no domingo, para assinalar o início do Ramadão SAMIR YORDAMOVIC / GETTY IMAGES
Mulheres muçulmanas rezam numa mesquita de Jacarta, capital da Indonésia, no primeiro dia do Ramadão WILLY KURNIAWAN / REUTERS
Para além do jejum, durante o Ramadão os muçulmanos entregam-se à meditação e à oração. A imagem é de uma mesquita em Utrecht, Holanda, esta segunda-feira ROBIN VAN LONKHUIJSEN / AFP / GETTY IMAGES
Nesta banca de Rawalpindi, Paquistão, vende-se tâmaras secas, um alimento que não falta na refeição do “iftar”, após o pôr do sol FAROOQ NAEEM / AFP / GETTY IMAGES
Estudantes leem o livro sagrado do Alcorão, esta segunda-feira, na Indonésia, o país muçulmano mais populoso do mundo RAHMAD SURYADI / AFP / GETTY IMAGES
Crianças bósnias largam balões para comemorar o início do Ramadão SAMIR YORDAMOVIC / GETTY IMAGES
Trabalhadores indianos colocam guirlandas de luzes numa mesquita de Chennai, antiga Madrasta ARUN SANKAR / AFP / GETTY IMAGES
Venda de lanternas, uma decoração icónica do mês do Ramadão, esta segunda-feira, num mercado da Faixa de Gaza MAJDI FATHI / GETTY IMAGES
Um grupo de mineiros turcos faz a sua primeira refeição antes do nascer do sol (“suhur”), esta segunda-feira, na região de Kilimli FERDI AKILLI / GETTY IMAGES
Azeitonas e picles, num mercado na Faixa de Gaza, para serem consumidos nas refeições de quebra de jejum MAJDI FATHI / GETTY IMAGES
Mulheres em oração, este domingo, numa mesquita de Sarajevo, Bósnia-Herzegovina ELMAN OMIC / GETTY IMAGES
Meninas indonésias leem o Alcorão, no primeiro dia de Ramadão, em Medan, norte de Sumatra RAHMAD SURYADI / AFP / GETTY IMAGES
O início e o fim do Ramadão é determinado pela observação da Lua, como o fazem (na foto) responsáveis do Departamento Meteorológico de Karachi, Paquistão AKHTAR SOOMRO / REUTERS
“Bom Ramadão”, deseja-se por cima da entrada de uma mesquita em Kiev, a capital da Ucrânia PAVLO CONCHAR / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de maio de 2019. Pode ser consultado aqui

Extrema-direita holandesa promove concurso de caricaturas do Profeta Maomé

O Senado do Paquistão condena a realização de um concurso de caricaturas sobre Maomé fomentado por Geert Wilders, líder da extrema-direita holandesa. Liberdade ou insulto? Está lançada a discussão — e a polémica —, enquanto não se conhece o cartoon vencedor

Dentro de três dias, termina o prazo para apresentação de candidaturas a um concurso de caricaturas que promete levar a revolta às ruas do Médio Oriente — mais uma vez. Promovido pelo líder da extrema-direita holandesa, Geert Wilders, uma competição de cartoons sobre o Profeta Maomé terá o seu vencedor anunciado a 10 de novembro próximo.

Esta segunda-feira, o Senado do Paquistão adiantou-se à previsível controvérsia e aprovou, por unanimidade, uma resolução condenando a iniciativa. “Muito pouca gente no Ocidente compreende a dor que estas atividades blasfemas provocam aos muçulmanos”, afirmou Imran Khan, o novo chefe do Governo paquistanês, em funções desde 18 de agosto.

“Eu compreendo a mentalidade ocidental, já que passei muito tempo lá. [A antiga estrela do cricket estudou e despertou para o desporto em Inglaterra]. Eles não entendem o amor que os muçulmanos sentem pelo Profeta”, acrescentou.

No Islão, são proibidas as representações físicas de Deus (Allah) e do seu mensageiro, Maomé. No Paquistão, insultar o Profeta pode ser punido com pena de morte.

Imran Khan prometeu levar o assunto às Nações Unidas, já em setembro, quando discursar na Assembleia Geral, na tradicional maratona de discursos de chefes de Estado e de governo de todo o mundo.

O primeiro-ministro holandês, Mark Rutte, tentou distanciar o seu governo da polémica, considerando a competição anunciada por Wilders — um crítico do Islão e da presença muçulmana na Europa — “desrespeitosa” e “provocadora”. Ao mesmo tempo, defendeu: “O objetivo é provocar ao invés de forçar um debate sobre o Islão. Wilders é um político que provoca e é livre de o fazer”.

Com sede na Holanda, a organização Cartoon Movement defendeu, num comunicado, a liberdade de expressão, mas não especificamente este concurso. “Para nós, a iniciativa de Wilders tem muito em comum com o concurso de caricaturas sobre o Holocausto organizado há uns anos no Irão. Em ambos os casos, é pedido aos cartunistas que ridicularizem um assunto concreto com o objetivo de insultar um grupo específico de pessoas” — os judeus, no caso do Irão; os muçulmanos, na iniciativa promovida por Wilders. “Nos dois casos, os cartoons são empunhados como uma arma política, para atacar um grupo específico. As caricaturas jamais deverão ser usadas desta forma.”

Os vencedores da competição serão anunciados em Haia, na sede do Partido para a Liberdade (extrema-direita), que Wilders lidera e que tem a segunda bancada mais numerosa na câmara baixa do Parlamento holandês: 20 deputados num total de 150.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de agosto de 2018. Pode ser consultado aqui

Muharram 1437 *

* Que é como quem diz, feliz ano novo islâmico. Milhões de muçulmanos assinalam, esta quinta-feira, a chegada de um novo ano

Passagem de ano é sinónimo de festa, feriado e… uma mesa farta com a família à volta. É assim em muitas casas portuguesas — e na generalidade do mundo muçulmano, que assinala esta quinta-feira a chegada do ano 1437. “Na Tunísia, temos o hábito de preparar um bom cuscus, que é o nosso prato nacional, com uma carne seca e salgada (o mesmo modo de preparação do bacalhau)”, explica ao Expresso a tunisina Sihem, que vive em Lisboa. “Normalmente, essa carne foi preparada antes, a partir do borrego sacrificado no ‘Id’, a festa que marca o fim da peregrinação a Meca.”

“Por norma, o dia é feriado administrativo em todos os países muçulmanos”, continua Sihem. “Os festejos diferem de país para país, mas em geral privilegia-se os encontros familiares sempre à volta de uma mesa rica.” Com a família na Tunísia, ela confessa que a data já lhe passa um pouco ao lado. “Cá não dá para festejar. As nossas festas passam muito pela família. Já me habituei a ignorar a data.”

O calendário muçulmano tem na sua origem um importante acontecimento histórico: a fuga do Profeta Maomé, e dos seus seguidores, de Meca para Medina. Em Meca, a popularidade das suas pregações era sentida, pelo poder instalado, como uma ameaça crescente. A hégira de Maomé (“hijra” em árabe significa “migração”) aconteceu a 622 d.C., que passou a ser o ano 1 do calendário islâmico.

Menos 11 dias todos os anos

Para determinar o ano em que vivem os muçulmanos não basta subtrair 622 ao ano em curso no Ocidente. O calendário muçulmano é lunar e totaliza, por ano, 354 ou 355 dias. Na prática, isto resulta num desfasamento de cerca de 11 dias comparativamente ao calendário gregoriano, que é solar.

Daqui resulta também uma rotação dos 12 meses do calendário islâmico — cada mês tem, alternadamente, 29 e 30 dias. Isto significa que a data da passagem de ano islâmica é variável, assim como as datas das festividades muçulmanas.

O primeiro dos 12 meses islâmicos chama-se Muharram (tem 30 dias). O mês mais famoso é o nono, Ramadan (30 dias), que corresponde ao período de jejum, que constitui uma das cinco obrigações de cada muçulmano. As outras quatro são o testemunho da fé, a oração, o pagamento da esmola e a peregrinação a Meca. O mês do Ramadão, por exemplo, demora 36 anos a perfazer uma volta ao calendário gregoriano.

Cada mês do calendário islâmico corresponde ao período entre duas lunações — tempo entre duas luas novas consecutivas. Em alguns países, o início do novo ano é determinado após observação da Lua, mas na maioria fazem-se cálculos astronómicos.

Métodos diferentes originam, por vezes, um hiato de um ou dois dias entre países na determinação do primeiro dia do ano. Nada que perturbe os negócios ou o normal funcionamento das instituições, já que, mesmo para os muçulmanos, o calendário lunar é usado apenas para determinar as datas das festividades religiosas. Em tudo o resto, é o calendário gregoriano ocidental que mede o tempo.

Sunitas vs xiitas: cisma também no calendário

Entre os cerca de 1200 milhões de muçulmanos em todo o mundo, este não será, porém, o primeiro “reveillon” de 2015. No Irão, e em países com grupos étnicos de influência persa, como é o caso do Afeganistão, o novo ano é assinalado impreterivelmente a 21 de março, coincidindo com a entrada da primavera.

O “Nowruz” — assim é conhecida a festa — está associado a tradições oriundas da religião zoroastriana, fundada na antiga Pérsia, muito antes do advento do Islão. “Apesar de sermos muçulmanos e de festejarmos todas as festas islâmicas, nós, iranianos, temos mais festas religiosas, como o ‘Id al-Ghadir’”, explica ao Expresso a iraniana Sepideh, que trabalha em Portugal. “Mas o nosso ano novo é o Nowruz. Seguimos o calendário solar persa.”

O “Id al-Ghadir” de que fala Sepideh refere-se à escolha de Ali, pelo Profeta, como seu sucessor, algo em que apenas os xiitas (como os iranianos) acreditam. Os sunitas não reconhecem essa nomeação, facto que está na origem do grande cisma entre muçulmanos sunitas e xiitas.

Em Portugal, como no resto do mundo, a esmagadora maioria dos cerca de 50 mil muçulmanos são sunitas. Estão maioritariamente concentrados na zona da grande Lisboa (Odivelas, Laranjeiro, Palmela e Barreiro), mas também há locais de culto no Porto e no sul do país.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 15 de outubro de 2015. Pode ser consultado aqui

Fotogaleria: muçulmanos cumprem a peregrinação anual a meca

Quinto pilar da fé islâmica, a grande peregrinação anual ao recinto sagrado de Meca, na Arábia Saudita, é recomendada a todo o muçulmano pelo menos uma vez na vida. Vindos do mundo inteiro, milhões de muçulmanos cumprem vários rituais que comportam uma intensa carga simbólica e emocional

FALTA FOTOGALERIA

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de novembro de 2009. Pode ser consultado aqui

Sheikh Munir entre os 500 mais influentes

O imã da mesquita de Lisboa está entre os muçulmanos mais influentes em todo o mundo. Um reconhecimento que decorre do seu trabalho em prol do diálogo inter-religioso

David Munir, o imã da mesquita de Lisboa, foi considerado um dos 500 muçulmanos mais influentes em todo o mundo. A distinção consta de um índice publicado pelo Real Centro de Estudos Estratégicos Islâmicos, da Jordânia que destaca o envolvimento do sheikh Munir no diálogo inter-religioso com membros das outras fés abraâmicas. Recebi a notícia com grande satisfação, reagiu ao Expresso o sheikh Munir. Compartilho esta honra com todos os portugueses.

À frente da mesquita de Lisboa desde os 23 anos hoje, tem 46 , o imã recorda a visita do Dalai Lama ao templo islâmico, em Setembro de 2007, como um exemplo de uma manifestação inter-confessional. O líder espiritual dos budistas tibetanos participou num encontro que reuniu budistas, muçulmanos, judeus, cristãos, hindus e bahais e afirmou ter vivido uma experiência única e memorável. Já viajei por muitos países, mas foi a primeira vez que fui recebido numa mesquita. Paralelamente, o sheikh Munir destaca todo o trabalho desenvolvido pelo Fórum Abrâamico, uma associação criada por membros das comunidades judaica, cristã e islâmica portuguesas.

O ranking dos 500 muçulmanos mais influentes é liderado pelo rei da Arábia Saudita, Abdullah bin Abdul Aziz Al Saud, que é o guardião dos lugares santos do Islão de Meca e Medina. Segue-se o grande ayatollah Ali Khamenei, líder espiritual do Irão, e Mohammed VI, rei de Marrocos que ostenta o título de Comandante dos Crentes. No quinto posto surge Recep Tayyip Erdogan, primeiro-ministro da Turquia, e o Aga Khan, líder espiritual da comunidade ismaelita, aparece no 20º posto.

Publicada agora pela primeira vez, e editada pelos professores John Esposito e Ibrahim Kalin da Universidade Georgetown, de Washington, a publicação dedica ainda um capítulo às muçulmanas. Entre as 41 mulheres destacadas estão Zahra Rahnavard, mulher do candidato derrotado à presidência do Irão Mir-Hossein Mousavi, Norah Abdallah al Faiz, a primeira saudita a integrar um conselho de ministros, e Rebiya Kadeer, a líder do movimento em defesa do povo uighur, na China.

Artigo publicado no Expresso Online, a 25 de novembro de 2009. Pode ser consultado aqui