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“Dois terços dos países do mundo” podem prender Netanyahu, mas “na prática é pouco provável” que tal aconteça

O primeiro-ministro de Israel é procurado pelo mais importante tribunal do mundo por crimes de guerra e contra a Humanidade. Viajar para o estrangeiro passou a ser um quebra-cabeças para Benjamin Netanyahu: há 124 países signatários do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, muitos dos quais com boas relações com Israel, mas também defensores do direito e da justiça internacional

Se o primeiro-ministro de Israel, o ex-ministro da Defesa israelita e o chefe do braço militar do Hamas — presumivelmente morto por Israel em julho — entrassem num dos 124 Estados-membros signatários do Tribunal Penal Internacional (TPI), os três poderiam ser presos pelas forças policiais dos respetivos países. No entanto, “na prática é pouco provável” que isso aconteça, afirmam ao Expresso professores de Direito Internacional.

Quinta-feira passada, o TPI emitiu mandados de detenção contra os israelitas Benjamin Netanyahu e Yoav Gallant, e o palestiniano Mohammed Deif por crimes contra a Humanidade e crimes de guerra. O Tribunal de Haia não tem capacidade de prender diretamente os suspeitos que procura: “É óbvio que não pode haver uma força policial internacional com autoridade para atravessar fronteiras e ir a países sem o seu consentimento”, começa por dizer William Schabas, especialista em Direito Penal Internacional e Direitos Humanos, em declarações ao Expresso.

Por outro lado, “o TPI tem no total 124 forças policiais — são as forças policiais dos seus Estados-membros”, acrescenta, referindo-se aos países que ratificaram o Estatuto de Roma, que fundou o Tribunal em 2002. É o caso de todos os países da União Europeia, mas não de nações proeminentes como os Estados Unidos, Israel, Rússia, China ou Índia, que não têm obrigação legal de cooperar com esta instância judicial.

Netanyahu acusa procurador

“A grande maioria dos Estados-membros do TPI, incluindo Portugalprenderá certamente os suspeitos se estes entrarem no seu territórioNa prática, é pouco provável que Netanyahu e Gallant se desloquem a Estados que ratificaram o Estatuto de Roma. Já dos cerca de 75 Estados que não o ratificaram, muitos não são o que se poderia chamar de ‘amigos de Israel’, e por isso também não é provável que Netanyahu se desloque a esses países”, afirma o professor da Universidade de Middlesex (Reino Unido) e da Universidade Leiden (Países Baixos).

Netanyahu não tardou a reagir com “repugnância” às “ações absurdas e falsas” do Tribunal de Haia, que classificou de “antissemita”, “tendencioso” e “discriminatório”. Segundo o primeiro-ministro israelita, o procurador-geral do TPI, Karim Khan, é “corrupto” e “está a tentar salvar-se de acusações de assédio sexual e por juízes tendenciosos”, atirou, referindo-se às notícias publicadas pela imprensa britânica e americana, que acusam Khan de alegado assédio sexual a uma jovem da equipa de acusação.

Quem cumpre e quem bate o pé ao TPI?

“Um total de 124 Estados — cerca de dois terços dos países do mundo — aderiram ao tratado do Tribunal Penal Internacional”, lembra Diane Marie Amann, professora de Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos. “Este compromisso de cooperação tem sido interpretado significando que os Estados-membros devem executar as ordens do TPI. Essas ordens podem dizer respeito ao acesso a testemunhas ou a provas físicas, e podem também incluir mandados que visem a detenção de indivíduos”, acrescenta ao Expresso.

Só que a emissão dos mandados de captura contra Netanyahu não colheu unanimidade entre os 124 países e, na prática, há quem tenha argumentos para não o fazer. É o caso de Viktor Orbán, primeiro-ministro da HUNGRIApaís que aderiu ao TPI em 1999 e ratificou o Estatuto em 2001, quando, em Budapeste, estava no poder… Viktor Orbán. Agora, o chefe do Governo classificou os mandados do TPI de “escandalosamente descarados” e “cínicos”. Numa atitude desafiadora, revelou a intenção de convidar Netanyahu para visitar a Hungria.

“Isto é errado por si só”, disse na sexta-feira, em entrevista à rádio estatal húngara. “Portanto, não há outra escolha: temos de confrontar esta decisão e, por isso, ainda hoje convidarei o primeiro-ministro dos israelitas, o Sr. Netanyahu, para visitar a Hungria.”

Orbán já antes fizera saber que não cumpriria o mandado de detenção contra Vladimir Putin, emitido a 17 de março de 2013, por “responsabilidade individual” nos crimes de guerra de “deportação ilegal” e “transferência ilegal” de crianças das zonas ocupadas da Ucrânia para território russo.

Ao nível de Orbán, em defesa férrea dos governantes israelitas, está o Presidente da ARGENTINA, Javier Milei, que discordou da posição do TPI e descreveu os mandados como “um ato que distorce o espírito da justiça internacional”. Acrescentou: “Esta resolução ignora o direito legítimo de Israel de se defender contra ataques constantes de organizações terroristas como o Hamas e o Hezbollah”.

Na mesma linha, outro país latino-americano colocou-se ao lado de Israel: o PARAGUAI. “Esta decisão viola o direito legítimo de Israel de se defender. O Paraguai rejeita veementemente a exploração política do direito internacional e considera que esta decisão compromete a legitimidade do Tribunal, além de enfraquecer os esforços pela paz, segurança e estabilidade no Médio Oriente”, defendeu o Governo.

Aliado histórico de Israel, o Paraguai foi um dos países que seguiram os Estados Unidos no reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, durante a Administração Trump, tendo decidido mudar a embaixada de Telavive para a cidade santa. Recentemente, o Presidente israelita, Isaac Herzog, convidou o homólogo paraguaio, Santiago Peña, para realizar uma visita de Estado a Israel, coincidente com a viagem do paraguaio para inaugurar a embaixada em Jerusalém.

Como se posicionam os europeus?

Todos os 27 membros da União Europeia (UE) são Estados signatários do TPI. Além da estrondosa reação da Hungria, as posições dos europeus oscilam entre países que acolhem a decisão do TPI e garantem que a vão cumprir e outros que denunciam o que dizem tratar-se de uma posição política, sem concretizar como vão atuar.

‘Cumprimos o mandado e vamos prender’

Nos PAÍSES BAIXOS, onde recentemente houve incidentes envolvendo grupos pró-Palestina e adeptos de um clube israelita, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Caspar Veldkamp, defendeu, diante do Parlamento, que o país irá atuar em conformidade com os mandados. “Os Países Baixos respeitam, obviamente, a independência do TPI. Somos obrigados a cooperar com o TPI e o fá-lo-emos.” Veldkamp tinha uma visita a Israel prevista para esta semana, que foi cancelada, após conversa telefónica com o homólogo israelita, Gideon Sa’ar, que lhe comunicou desilusão pela posição de Amesterdão.

Também a vizinha BÉLGICA defendeu que “os responsáveis ​pelos crimes cometidos em Israel e Gaza devem ser processados ​​ao mais alto nível, independentemente de quem os cometeu”, via Ministério dos Negócios Estrangeiros. Petra De Sutter, vice-primeira-ministra, subiu a fasquia e afirmou que “a Europa deve cumprir” os mandados, instando as nações europeias a imporem sanções económicas e a suspenderem os acordos comerciais com Israel. “Os crimes de guerra e os crimes contra a Humanidade não podem ficar impunes.”

PORTUGAL integra o grupo dos países que comunicaram a sua posição de forma clara. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, disse que o país está “vinculado” às decisões do TPI, enquanto seu Estado-membro, e garantiu que Portugal vai cumprir as suas “obrigações internacionais”, caso haja necessidade.

‘Cumprimos o mandado, mas a decisão é má’

Um conjunto de países tem posição híbrida, afirmando o seu compromisso com o TPI, mas criticando a equiparação entre Israel e o Hamas. É exemplo a ÁUSTRIA, onde o ministro dos Negócios Estrangeiros, Alexander Schallenberg, considerou a deliberação “totalmente incompreensível” e os mandados contra os governantes israelitas “ridículos”. Viena diz-se, porém, forçada a efetuar detenções se Netanyahu e Gallant puserem pé no seu território. “O Direito Internacional não é negociável e aplica-se em todo o lado, em todos os momentos. Mas esta decisão é um mau serviço à credibilidade do Tribunal.”

Petr Fiala, primeiro-ministro da REPÚBLICA CHECA, disse que “a infeliz decisão do TPI mina a autoridade noutros casos, ao equiparar os representantes eleitos de um Estado democrático aos líderes de uma organização terrorista islâmica”. Concordando com as críticas de Fiala, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Jan Lipavsky, disse que a Chéquia “defenderá sempre a adesão ao direito internacional”.

A posição da ITÁLIA pode encaixar-se nesta categoria, mas depende de quem fala. O ministro da Defesa, Guido Crosetto, defendeu que, embora Roma considere a decisão do TPI “errada” ao colocar “ao mesmo nível” os líderes de “uma organização terrorista criminosa” e os do país “que tenta erradicá-la”, a Itália é obrigada a prender Netanyahu e Gallant. “Ao aderir ao tribunal, devemos aplicar as suas decisões”, disse. “Todos os Estados que aderirem são obrigados — a única forma de não o aplicar será retirar-se do tratado.”

Já o ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, Antonio Tajani, reiterou apoio ao TPI, “lembrando sempre que o tribunal deve desempenhar um papel jurídico e não político”, disse. “Avaliaremos em conjunto com os nossos aliados o que fazer e como interpretar esta decisão.” Matteo Salvini, vice-primeiro-ministro, instalou a confusão ao expressar total apoio a Netanyahu. “Ele é bem-vindo” a Itália. “Os criminosos de guerra são outros.”

‘Cumprimos o mandado, pela Palestina’

No decurso da guerra em Gaza, dois membros da UE reconheceram o Estado da Palestina. Um deles foi ESPANHA, que “cumprirá com os seus compromissos e obrigações”, disse o Governo de Pedro Sánchez.

“Estas acusações [do TPI] não podiam ser mais graves”, afirmou o primeiro-ministro da IRLANDA. Simon Harris considerou a situação no território palestiniano “uma afronta à Humanidade” e acrescentou: “Quem quer que esteja em condições de ajudar o TPI a realizar o seu trabalho vital deve agora fazê-lo com urgência”.

‘Estamos vinculados, mas vamos analisar’

Acusando a sensibilidade do caso, quer Berlim quer Paris expressaram hesitações. Annalena Baerbock, ministra dos Negócios Estrangeiros da ALEMANHA, disse que o seu país está “vinculado” ao TPI e respeita o direito internacional. Porém, se Netanyahu e Gallant serão ou não detidos no país é, por enquanto, uma questão “teórica” que a Alemanha irá “examinar”.

Já em Paris, um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Christophe Lemoine, afirmou que FRANÇA reagirá “em linha com o Estatuto do TPI”, mas recusou-se a dizer se o país tenciona prender os governantes israelitas. “É algo legalmente complexo, por isso não vou comentar hoje.”

A 21 de maio, quando o procurador-geral do TPI, Karim Khan, anunciou que ia solicitar mandados de detenção para os dois governantes israelitas e três dirigentes do Hamas, o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês emitiu um comunicado: “A França apoia o TPI, a sua independência e a luta contra a impunidade em todas as situações.”

No REINO UNIDO, que Netanyahu visitou no ano passado, o discurso é de “respeito pela independência do TPI, que é a principal instituição internacional para investigar e processar os crimes mais graves de interesse internacional”. Um porta-voz do primeiro-ministro Keir Starmer disse que o país “cumprirá as suas obrigações legais” e, questionado se o Governo irá executar os mandados, acrescentou: “Não vamos entrar em suposições”.

Emily Thornberry, presidente (trabalhista) da comissão de Negócios Estrangeiros do Parlamento britânico, foi mais esclarecedora. “Se Netanyahu vier à Grã-Bretanha, a nossa obrigação ao abrigo da Convenção de Roma será prendê-lo conforme o mandado do TPI”, disse. “Não é bem uma questão de dever, somos obrigados a fazê-lo porque somos membros do TPI.”

Estados Unidos de portas escancaradas

Seja Joe Biden ou Donald Trump o inquilino da Casa Branca, Netanyahu será sempre bem-vindo em Washington. Israel tem uma aliança de décadas com os Estados Unidos o que lhe garante amigos nas fileiras dos dois grandes partidos norte-americanos. A 24 de julho passado, o primeiro-ministro israelita ultrapassou Winston Churchill e tornou-se o líder mundial a discursar mais vezes no Congresso dos Estados Unidos.

Os ESTADOS UNIDOS, que não são membros do TPI, arrasaram a deliberação da justiça internacional. “A emissão de mandados de detenção pelo TPI contra os líderes israelitas é ultrajante”, defendeu Biden. “Deixem-me ser claro mais uma vez: seja o que for que o TPI possa implicar, não há equivalência — nenhuma — entre Israel e o Hamas. Estaremos sempre ao lado de Israel contra as ameaças à sua segurança.”

Em maio passado, quando o procurador-geral do TPI solicitou os mandados, Washington opôs-se e afirmou que não tinha sido dada aos israelitas a possibilidade de investigarem, eles próprios, as acusações que lhe faziam. Agora, uma das reações mais inflamadas partiu de Lindsey Graham, senador há mais de 20 anos pelo Partido Republicano, que ameaçou os países aliados com sanções se executarem o mandado do TPI.

“A qualquer aliado, Canadá, Grã-Bretanha, Alemanha, França, se tentarem ajudar o TPI, iremos sancionar-vos”, disse, à Fox News. “Se ajudarem o TPI como nação e forçarem o mandado de captura contra Bibi [Netanyahu] e Gallant, o ex-ministro da Defesa, vou impor-vos sanções como nação”, disse. “Terão de escolher entre o TPI desonesto ou a América.”

CANADÁ, precisamente um dos países ameaçados por Graham, foi inequívoco no apoio à decisão do TPI. “Sempre disse que é muito importante que todos cumpram o direito internacional”, disse o primeiro-ministro, Justin Trudeau. “Defendemos o direito internacional e cumpriremos todos os regulamentos e decisões dos tribunais internacionais.”

Uma das reações mais simbólicas em relação a esta questão foi a da ÁFRICA DO SUL, que é membro do TPI e está na origem de um processo contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça, o órgão jurisdicional da ONU. Pretória considerou a deliberação “um passo significativo na direção da justiça para os crimes contra a Humanidade e os crimes de guerra na Palestina”.

O Governo sul-africano declarou “o seu compromisso com o direito internacional” e apelou à comunidade internacional “que defenda o Estado de Direito e garanta a responsabilização por violações dos direitos humanos”. Esta posição tem, porém, uma fragilidade…

Em 2015, a África do Sul optou por não prender o então Presidente do Sudão, Omar al-Bashir, acusado de crimes de guerra na região do Darfur e alvo de um mandado do TPI. Mais tarde, o Supremo Tribunal de Recurso da África do Sul decidiu que a não detenção de Bashir fora ilegal.

Entre os países árabes e muçulmanos que se pronunciaram, há unanimidade em relação à urgência em sentar Israel no banco dos réus. A JORDÂNIA, que tem um tratado de paz com Israel há 30 anos, defendeu que a decisão do TPI “deve ser respeitada e aplicada sem seletividade”. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Ayman Safadi, acrescentou que a decisão do tribunal é “uma mensagem para toda a comunidade internacional, que enfatiza a necessidade de travar os massacres contra o povo palestiniano”.

O vizinho IRAQUE valorizou “a postura corajosa e justa assumida pelo TPI”, disse o porta-voz do governo, Basim al-Awadi. “Esta decisão histórica afirma que, por mais opressão que persista e tente prevalecer, a justiça e a verdade irão enfrentá-la e impedir que domine o mundo.”

Do Magrebe, a ARGÉLIA descreveu o veredicto do TPI como “passo importante e avanço tangível para acabar com décadas de impunidade e a evasão de responsabilização e punição por parte da ocupação israelita”.

Durante os meses de guerra em Gaza, o Presidente da TURQUIA — que várias vezes abriu as portas ao Hamas — tem sido das vozes mais críticas de Israel, ao ponto de comparar Netanyahu a Hitler. Recep Tayyip Erdogan elogiou a “decisão corajosa” do TPI e disse que os mandados de detenção “renovam a confiança da humanidade no sistema internacional”.

“Emitir um mandado de detenção não é suficiente”, reagiu o Líder Supremo do IRÃO, o ayatollah Ali Khamenei. “Deveria ser emitida uma sentença de morte para Netanyahu.”

Texto escrito com Mara Tribuna.

(FOTO Edifício do Tribunal Penal Internacional, em Haia, Países Baixos PETER DEJONG / AP)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de novembro de 2024. Pode ser consultado aqui

A luta de Leah Goldin para resgatar o filho morto em Gaza há dez anos: “Não quero que ninguém morra à fome, só quero trazer Hadar para casa”

A 1 de agosto de 2014, numa outra guerra na Faixa de Gaza, entre Israel e o Hamas, um soldado israelita foi levado através de um túnel após sofrer uma emboscada. Desde então, a sua família tem-se feito ouvir em instituições de poder — das Nações Unidas ao Vaticano, do Parlamento Europeu ao Congresso dos Estados Unidos — pedindo que obriguem o Hamas a devolver os seus restos mortais. A mãe de Hadar Goldin relata ao Expresso os esforços feitos para que o resgatem e possam fazer um enterro digno

Leah (ao centro), acompanhada pelo filho Tzur e pelo marido Simha, numa ação de sensibilização, em Kfar Saba. Nas ‘t-shirts’, fotos de Hadar e Oron JACK GUEZ / AFP / GETTY IMAGES

A dor da perda de um filho, em circunstâncias especialmente angustiantes, tornou Leah Goldin uma paladina dos direitos humanos. Vai para dez anos que Israel travava outra guerra na Faixa de Gaza quando uma emboscada levada a cabo por militantes do Hamas, surgidos de um túnel subterrâneo, na zona de Rafah, surpreendeu três soldados israelitas. Mataram dois e arrastaram consigo um terceiro. Era Hadar Goldin, filho de Leah que, dez anos depois, não tem certeza se foi levado vivo ou morto.

Em entrevista ao Expresso, esta israelita de 68 anos descreve o momento em que a vida da família ficou virada do avesso. “A nossa viagem começou a 1 de agosto de 2014. Decorria a operação ‘Barreira de Proteção’ e dois filhos meus, os gémeos Hadar e Tzur, participaram juntos.” Tinham 23 anos.

“Tzur comandava uma força de salvamento, entrava e saía de Gaza para resgatar companheiros [das Forças de Defesa de Israel (FDI)], uns feridos, outros mortos, muitos deles amigos. Também resgatou umas dezenas de palestinianos, apanhados no meio do fogo, usados pelo Hamas como escudos humanos. Quando lhe perguntava porque o fazia, ele respondia: ‘Mãe, não pode ser de outra forma…’”, recorda.

“Ao mesmo tempo, o seu irmão gémeo, Hadar, fazia parte de uma unidade de elite — a Brigada Givati — que guardava o corpo de engenharia que participava na destruição dos túneis subterrâneos. Depois da guerra, descobrimos que, [no momento da emboscada a Hadar], estavam a 400 metros de distância um do outro.”

Hadar Goldin nasceu a 18 de fevereiro de 1991. Quando morreu, tinha casamento marcado para dali a um mês AFP / GETTY IMAGES

Naquele 1 de agosto, iniciava-se uma trégua de 72 horas, anunciada por Estados Unidos e Nações Unidas. “Duas horas após ser declarada, o Hamas violou o cessar-fogo e atacou a equipa de Hadar. Ele era muito magro, foi levado pelo túnel. Um amigo colocou a sua vida em perigo e, contra os procedimentos, entrou no túnel e encontrou a camisa de Hadar com sangue, o seu tzitzit e o seu livro de orações”, recorda Leah.

“Procuravam um soldado ferido, mas 36 horas depois, as FDI declararam que as provas forenses recolhidas da sua roupa indicavam que não havia possibilidade de que pudesse estar vivo. Convenceram-nos a fazer o funeral. Digo ‘convenceram-nos’ porque hoje não tenho a certeza do que aconteceu… O que posso dizer é que aquilo que enterrámos foi a prova de que ele foi sequestrado, porque Hadar está nas mãos de Yahya Sinwar, o terrorista que mais sofrimento nos causa.”

Yahya Sinwar é o atual líder do Hamas na Faixa de Gaza, considerado o cérebro do ataque do Hamas de 7 de outubro. A 13 de fevereiro, as FDI divulgaram um vídeo identificando-o dentro de um túnel, nos primeiros dias da guerra. As autoridades israelitas acreditam que, atualmente, possa estar escondido na zona de Rafah (sul), onde Israel tem iminente uma ofensiva militar.

Adeus a um corpo distante

A 3 de agosto de 2014, dezenas de milhares de pessoas despediram-se de Hadar Goldin, numa cerimónia realizada no cemitério de Kfar Saba, a cidade onde ainda hoje vive a família, na região de Telavive. “Enquanto Tzur fazia a coisa mais humanitária que era resgatar palestinianos, as mesmas pessoas violaram o cessar-fogo humanitário, sequestraram o irmão e recusaram-se a devolvê-lo para que fosse feito um enterro digno na sua terra natal”, lamenta Leah.

“Agora atente nisto: Tzur foi chamado para resgatar Hadar, enquanto responsável pela força de salvamento. Claro que quando chegou ao local foi mandado para casa.” Tzur não sabia que o soldado levado pelo Hamas era o irmão.

O funeral de Hadar Goldin realizou-se a 3 de agosto de 2014, em Kfar Saba, com honras militares e uma multidão em choque ILIA YEFIMOVICH / GETTY IMAGES

Vergados à dor da perda de um dos seus, em circunstâncias tão angustiantes como imaginar o tratamento que lhe terá sido infligido por terroristas, os Goldin demoraram algum tempo a reagir. Até ao dia em que se cruzaram com Irwin Cotler, um antigo ministro da Justiça e procurador-geral do Canadá que defendeu prisioneiros políticos como o russo Andrei Sakharov e o sul-africano Nelson Mandela. Nascido em 1940, no seio de uma família judia, Cotler dispôs-se a defender Hadar pro bono.

“Hadar foi morto numa violação de um cessar-fogo. Uma vez que a trégua tinha sido mediada pelos Estados Unidos, pelas Nações Unidas e recebera o apoio da União Europeia, todos eles tinham de assumir responsabilidade em relação ao regresso do meu filho”, explica Leah. “Era esse o nosso sentimento enquanto família. Tínhamos esperança que a comunidade internacional nos ajudasse a trazer o nosso rapaz para casa.”

A cruzada dos Goldin levou-os ao Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas, a 22 de dezembro de 2017, quando este órgão acolheu uma reunião em formato “fórmula Arria”, convocada por um dos seus membros e realizada em registo informal.

Enquanto Leah prestou depoimento sobre o caso do filho, Cotler fez o enquadramento jurídico e também do de outro soldado israelita — Oron Shaul — levado para Gaza nas mesmas circunstâncias de Hadar, noutro incidente duas semanas antes.

Leah Goldin entre o secretário-geral da ONU, António Guterres, e o Presidente de Israel, Isaac Herzog, numa visita posterior à sede da ONU, a 20 de julho de 2023 LEV RADIN / GETTY IMAGES

“Nas Nações Unidas, Irwin Cotler fez uma coisa espantosa. Mostrou que o rapto de Hadar Goldin e Oron Shaul e a recusa em devolvê-los para que fosse feito um enterro digno é uma flagrante violação do direito internacional humanitário. Há todo um capítulo que fala de mortos, de raptos de pessoas indefesas, de pessoas desaparecidas, de recusa em entregar o corpo às famílias para seja feito um enterro digno, de maus tratos e dignidade humana”, enumera a israelita.

A sessão no CS realizou-se a três dias do Natal. Leah não acreditava que houvesse grande afluência àquela audiência, mas enganou-se. “Havia representantes de 40 países, a maioria politicamente contra Israel. No fim, houve um consenso de que Hadar e Oron deviam regressar imediata e incondicionalmente.” O trabalho frutificou. A 11 de junho de 2019, o CS aprovou, por unanimidade, a sua primeira resolução sobre pessoas dadas como desaparecidas durante conflitos armados (resolução 2474).

Na mesma linha, a 18 de janeiro de 2024, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução apelando “a um cessar-fogo permanente [na Faixa de Gaza] e ao reinício dos esforços no sentido de uma solução política, desde que todos os reféns sejam imediata e incondicionalmente libertados”. “Isto mostra que estamos certos na nossa luta, a lei está do nosso lado”, diz Leah.

À esquerda, Leah e o marido, Simha, numa reunião no Parlamento Europeu, a 20 de junho de 2018, sobre o caso humanitário de Hadar Goldin © EUROPEAN UNION 2018 – SOURCE : EP

Oficialmente, Israel reconhece a existência de 133 israelitas cativos do Hamas. Teme-se que a maioria não esteja viva. Hadar Goldin e Oron Shaul são dois dos nomes. Da lista fazem parte também dois civis: Avraham “Avera” Mengistu, um israelita nascido na Etiópia, com problemas mentais, que entrou em Gaza por vontade própria em setembro de 2014, e Hisham al-Sayed, um israelita árabe beduíno, raptado em 2015.

Leah, que se descreve como uma mulher religiosa, tem fé que todos sejam devolvidos às famílias sem pôr em risco mais vidas de soldados. Essa crença, e a busca desesperada por atalhos que tragam o corpo do filho até si, levou esta judia a pedir ajuda ao Papa Francisco.

“Os líderes religiosos têm muitas ligações. Mesmo o Hamas, que grita ‘Allahu Akbar’ quando nos vem matar, é permeável a alguma influência religiosa. Temos de encontrar um caminho…”, diz. “Trazer o meu filho para lhe fazer um enterro digno é uma questão puramente religiosa e moral, de acordo com todas as religiões.”

A 21 de dezembro de 2022, o Papa Francisco recebeu, no Vaticano, uma delegação de representantes dos quatro israelitas levados pelo Hamas em 2014-15. “Preparei-me para aquele momento”, recorda Leah. “O que é que eu ia dizer ao Papa? Acabei por falar-lhe de duas coisas. Primeiro, da Pietà [a famosa escultura de Miguel Ângelo que representa Jesus morto nos braços de sua mãe]. Depois, disse-lhe que, sendo ele oriundo da Argentina, percebia melhor a dor de uma mãe após o desaparecimento de um filho. No final do encontro, ele veio falar comigo e disse que é uma obrigação devolver um filho a uma mãe para ser enterrado.”

Meses depois, o Papa fez chegar aos Goldin, através do arcebispo Paul Richard Gallagher, secretário para as Relações com os Estados, um relatório de página e meia sobre as diligências feitas junto de vários países. “Ele disse que apesar de ter obtido reações de indiferença, não ia desistir.”

Leah (de camisola amarela) está à direita do Papa Francisco EMBAIXADA DE ISRAEL NA SANTA SÉ

A 16 de julho de 2008, numa polémica troca de prisioneiros entre Israel e o grupo armado libanês Hezbollah, Israel libertou cinco prisioneiros (entre os quais Samir Kuntar, condenado por terrorismo e assassínio) e devolveu os corpos de 199 militantes do Hezbollah. Em troca, recebeu dois caixões com os restos de dois soldados (Ehud Goldwasser e Eldad Regev), que tinham sido raptados pelo Hezbollah, a 12 de julho de 2006. Este caso precipitou o início da guerra de 34 dias entre Israel e o Hezbollah no verão de 2006.

Hadar e Oron nunca foram objeto de um processo semelhante. “O meu marido é historiador e sempre diz que não se pode usar métodos de uma guerra passada numa guerra futura, porque o contexto é diferente. Temos feito essa pergunta ao longo dos anos. Mas as pessoas são diferentes…”

O negócio dos mortos

A 8 de julho de 2015, o jornal israelita “The Jerusalem Post” noticiava uma tentativa de contacto com o Hamas por parte de “um mediador europeu”, em nome do Governo de Israel, com vista à “abertura de um canal de comunicação” para resgatar os dois corpos.

O Hamas recusou discutir o assunto até que Israel libertasse um conjunto de detidos. Estes tinham sido libertados em troca do militar israelita Gilad Shalit, que esteve cativo em Gaza entre 2006 e 2011, mas, entretanto, Israel tinha-os prendido novamente. “É inacreditável o quão cínico o Hamas pode ser para negociar os mortos…”, diz Leah Goldin.

A 19 de julho de 2023, Leah Goldin foi ovacionada numa sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos, em Washington DC, em que discursou o Presidente israelita, Isaac Herzog BRENDAN SMIALOWSKI / AFP / GETTY IMAGES

Leah pede que não falemos de política, mas vai dizendo que Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro que assumiu o cargo pela primeira vez em 2009, não é mais o mesmo. “Todo o Governo é composto por pessoas que perderam os seus valores religiosos, humanitários, morais… Só pensam no seu benefício político. Esta é a nossa maior dor. E agora não somos só nós, são as famílias dos reféns e das pessoas assassinadas.”

A israelita acredita que se os casos de Hadar e Oron tivessem sido resolvidos, o ataque do Hamas de 7 de outubro nunca teria acontecido. “Enquanto o Hamas não os devolver, nós vamos ceder ao terrorismo, e eles ganham. Se tiverem sucesso nalgumas ações, vão continuar. O Hamas devia saber que manter reféns não é um trunfo, mas antes que tem um custo. Pensariam duas vezes antes de fazer outro sequestro”, diz.

“E depois de terem conseguido trocar reféns, fazem uma seleção, como na idade das trevas. É o método terrorista, deixam os mortos para o fim para os tornar um ativo melhor. Por isso, encontram legitimidade para matar mais. Temos de pensar ao contrário. O grande erro é usarmos a nossa lógica e os nossos valores na discussão com eles. Eles são terroristas.”

Para Leah, o compromisso com o imperativo humanitário passa também por garantir que quem recebe apoio cumpre a lei. Caso contrário, os doadores tornam-se cúmplices e também devem ser responsabilizados. Quando a União Europeia ajuda Gaza, por exemplo, tem de exigir um retorno.

“Não, nós não queremos deixar o povo de Gaza morrer à fome. Eu só quero trazer o meu filho para casa. E isso não custa dinheiro. É só uma questão de seriedade, de comportamento e de diálogo”, diz. “Nós estamos certos. Temos formas de trazer o nosso filho sem guerra, porque as bombas não resolvem problemas humanitários e os reféns são assuntos humanitários.”

Apontar o dedo às famílias dos reféns

O 7 de outubro uniu a dor dos Goldin à de centenas de outras famílias que viram parentes seus serem levados pelo Hamas. Mas atualmente, em Israel, nem todos são empáticos com as famílias dos reféns. Muitos culpam-nos de contribuir para um custo pesado que é a libertação de terroristas.

“Sentimos a palavra ‘custo’ como uma dor”, diz Leah. Os Goldin têm-se privado de participar em manifestações. “Jamais tomaremos parte por qualquer lado político. Somos apenas parte das famílias de reféns que agora são atacadas, o que é inacreditável. Mas não estou preocupada, porque o Governo sugeriu que as famílias dos reféns são de esquerda e os soldados mortos são de direita, portanto estou em ambos. É só estúpido.”

Familiares de Hadar, Oron, Mengistu e Al-Sayed, em frente à sede do Comité Internacional da Cruz Vermelha, em Genebra, a 5 de julho de 2023 GABRIEL MONNET / AFP / GETTY IMAGES

Leah Goldin é doutorada em Ciência da Computação pelo prestigiado Technion (Instituto de Tecnologia de Israel), de Haifa. Dá aulas na Faculdade de Engenharia Afeka, de Telavive, e trabalha como consultora independente para vários tipo de indústrias, como a de Defesa.

Além dos gémeos Hadar e Tzur, tem uma filha (Ayelet) e mais outro filho (Hemi). Tem 10 netos. O marido, Simha, é professor no Departamento de História Judaica da Universidade de Telavive.

Nos últimos dez anos, “muita gente abraçou-nos, enxugou as nossas lágrimas e disse que rezava por nós. Disseram que se identificavam com a nossa situação, mas isso é impossível”, conclui Leah Goldin.

“O problema é que ao longo do caminho — um longo caminho de nove anos e oito meses — aprendemos que muita gente, principalmente decisores, em Israel e em todo o mundo, deixaram para trás os seus valores. Direitos humanos são apenas palavras, não são uma ação. E o mais frustrante é que os interesses políticos governam tudo. Não é o ser humano que esses líderes procuram ajudar. É muito frustrante. Somos humanos, estamos perdidos, ficamos para trás.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Campanha #BringThemHomeNow pelo regresso dos reféns israelitas chega a cinco cidades portuguesas

Cartazes de rua apelam ao regresso a casa dos reféns israelitas ainda em posse do Hamas. O objetivo desta ação é também aumentar a consciência da população portuguesa “em relação à dor e ao horror por que o povo judeu e israelita está a passar”, diz ao Expresso um organizador

Mensagem de apelo à libertação dos reféns israelitas em posse do Hamas, em Matosinhos
MARGARIDA MOTA

Na popularmente designada Rotunda da Anémona, em Matosinhos, um painel publicitário com 148 fotografias do rosto de outros tantos homens, mulheres e crianças disputa as atenções, ao lado de cartazes de partidos políticos, de espaços comerciais ou de programação cultural.

Uma mensagem confere-lhe caráter menos mundano e mais dramático: “Bebés. Idosos. Mulheres. Homens. Ainda em Gaza reféns do Hamas”. Por baixo, a hashtag usada nas redes sociais para alertar para o problema e pressionar as autoridades israelitas a tudo fazer para resgatar os reféns: #BringThemHomeNow (Tragam-nos para casa agora).

Mais de três meses após o ataque do grupo islamita a Israel, de que resultou, além de cerca de 1300 mortos, o rapto de 240 pessoas, 148 israelitas permanecem ainda na Faixa de Gaza (alguns possivelmente mortos). Numa iniciativa da Associação Luso-Israelita Aliados, cartazes apelando à libertação dos reféns foram colocados na via pública em Matosinhos, Porto, Vila Nova de Gaia, Loures e Lisboa.

Cartaz da campanha #BringThemHomeNow, em Loures CORTESIA ALIADOS

“O objetivo da iniciativa é contribuir para aumentar a consciencialização em relação à dor e ao horror por que o povo judeu e israelita está a passar hoje em dia”, disse ao Expresso um membro da associação.

Com sede no Porto, a Associação Luso-Israelita Aliados é um movimento civil, apolítico, formado por cidadãos portugueses e israelitas residentes em Portugal, “destinado a harmonizar os sentimentos públicos e a promover a unidade entre israelitas e portugueses”.

Na rede social X, esta página, administrada por familiares e amigos, disponibiliza pequenas descrições pessoais das pessoas levadas pelo Hamas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Polémica reforma do sistema judicial começou a ganhar forma

O Parlamento de Israel aprovou uma lei que retira poder ao Supremo Tribunal. Trata-se do primeiro diploma de uma ampla reforma judicial que o Governo de Benjamin Netanyahu quer levar avante. Este fim de semana, pela 30.ª semana consecutiva, sai à rua mais uma manifestação de protesto

Manifestação contra a reforma judicial proposta pelo Governo de Benjamin Netanyahu OREN ROZEN / WIKIMEDIA COMMONS

Por estes dias, há uma piada em Israel que traduz o estado de espírito de muitos cidadãos. Dois israelitas encontram-se e um deles pergunta: “Numa palavra, como te sentes?” O outro responde: “Bem!” O primeiro insiste: “E como te sentes em duas palavras?” “Nada bem!” Este diálogo é uma caricatura da confusão que assaltou muitas pessoas. Nos últimos anos, a sociedade polarizou-se a um nível sem precedentes — confirmado pela realização de cinco eleições legislativas em quatro anos — e, mais recentemente, um projeto de reforma judicial pôs os nervos à flor da pele de muita gente no país.

“Há uma enorme tensão entre as pessoas”, diz ao Expresso o advogado israelita Itay Mor, desde Telavive. “Se uma pessoa de esquerda conversa com outra de direita, começam a discutir com muita facilidade. É uma situação muito inflamável.”

Esta semana, o Governo de Benjamin Netanyahu averbou uma importante vitória na sua intenção de alterar o funcionamento da justiça ao ver o Parlamento (Knesset) aprovar um projeto de lei que limita a possibilidade do Supremo Tribunal recorrer à “doutrina da razoabilidade” para bloquear decisões governamentais que considere serem implausíveis.

Democracia sobrevive

“Na prática, a nova legislação reduz significativamente a capacidade do Supremo Tribunal de fiscalizar as decisões tomadas pelo Governo. Mas o Supremo tem outros recursos para desqualificar decisões governamentais”, diz ao Expresso Tamar Hermann, investigadora no Instituto de Democracia de Israel. “Embora o ambiente esteja muito dramático, não significa que o Supremo não tenha forma de controlar o Governo. Esta decisão é importante, mas não é crítica para o modelo de democracia israelita.”

A prerrogativa da razoabilidade não é um instrumento ao qual o Supremo recorra com frequência. Tornou-se um assunto sensível no início do ano, após o tribunal invalidar a nomeação de Aryeh Deri, líder do partido ultraortodoxo Shas e aliado antigo de Netanyahu, para ministro do Interior e da Saúde, invocando precisamente o critério da razoabilidade. Deri tinha sido condenado na justiça por crimes fiscais e estava em liberdade condicional ao abrigo de um acordo judicial.

Itay Mor diz que a prerrogativa da razoabilidade “não depende de critérios objetivos, mas apenas de subjetivos. Depende apenas do ponto de vista do juiz que, num dia, diz que vai ajudar as minorias e noutro decide que não”, afirma. “O Supremo tem autoridade, mas não tem responsabilidade. E o Governo tem responsabilidade, mas não tem autoridade. É uma distorção.”

Após a votação no Knesset — viabilizada pelos 64 deputados da maioria e boicotada pela oposição —, várias petições deram entrada no Supremo pedindo o bloqueio da lei. O órgão agendou o debate para setembro, mas rejeitou bloqueá-la até lá.

Outra possibilidade de estancar o processo seria o Presidente Isaac Herzog, que pugnou até à última por adiar a votação, não assinar o diploma. Não é expectável que o faça. O seu antecessor, Reuven Rivlin, passou por uma situação semelhante: opôs-se a outro diploma controverso, a Lei do Estado-Nação (2018), mas acabou por assiná-lo, aproveitando o momento para fazer um gesto de protesto. Decretando essa lei que Israel — onde cerca de 20% da população são árabes — “é o Estado-nação do povo judeu” e que “o hebraico é a língua do Estado”, secundarizando a língua árabe, Rivlin assinou a lei escrita… em árabe.

Esta semana, na véspera da votação, o ex-Presidente discursou num protesto antigovernamental em Jerusalém: “Temos 24 horas para salvar o nosso maravilhoso país.”

Mais debates após as férias

Para o Governo, o processo é como fatiar um salame: o primeiro pedaço foi cortado esta semana, outros seguir-se-ão. O Knesset vai agora de férias e só após o verão haverá mais debates — previsivelmente sem acordo entre maioria e oposição — e novas votações.

Nas ruas e nas fileiras da oposição, a reforma judicial é um ataque à democracia num país que tem uma estrutura constitucional única. Israel é uma democracia parlamentar, onde o Presidente não pode vetar leis e o Parlamento é unicameral. Não existe uma estrutura federal nem um sistema eleitoral regional. O país não tem uma Constituição rígida, mas antes Leis Básicas, algumas das quais podem ser alteradas por maioria simples no Knesset. O Supremo Tribunal é o único contrapeso ao poder executivo.

Para os defensores da reforma, há também um problema de representatividade. Dizem que o órgão está nas mãos de uma elite homogénea e que os 15 juízes não representam os diferentes sectores da sociedade. Filho de imigrantes marroquinos, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Eli Cohen, defendeu que alguém com antecedentes semelhantes ao seus seria excluído do Supremo “porque somente pertencendo a uma certa panelinha é possível ser-se nomeado”.

Tamar Hermann admite a necessidade de mudanças, “mas feitas com base num consenso e não de uma forma que afaste grande parte do povo. Estar nas mãos de uma elite não significa ser um esquema. Isto foi um desenvolvimento histórico. E durante muitos anos, o Supremo não aceitou críticas. Não nego que alguns aspetos devam ser revistos, mas não da forma brutal como este Governo está a fazer”.

Artigo publicado no “Expresso”, a 28 de julho de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Polémica reforma da justiça averbou a primeira vitória, num país “tenso” e “inflamável”

A aprovação, no Parlamento de Israel, de uma lei que retira poderes ao Supremo Tribunal foi acompanhada por protestos nas ruas e motivou que, esta terça-feira, vários jornais tenham assumido o luto e pintado as capas de negro. Ao Expresso, um advogado israelita explica o que está em causa e alerta para “uma distorção” no centro do problema: “O Supremo Tribunal tem autoridade, mas não tem responsabilidade. O Governo tem responsabilidade, mas não tem autoridade”

ILUSTRAÇÃO DAILY SABAH

Do Parlamento para os tribunais. É na justiça que, em Israel, agora se trava uma batalha para tentar reverter um polémico projeto de lei aprovado no Parlamento (Knesset). Menos de 24 horas após ser viabilizado, pelo menos três petições deram entrada no Supremo Tribunal com o intuito de bloquear a nova legislação que limita os poderes… do Supremo Tribunal.

As petições foram apresentadas por organizações da sociedade civil. Yair Lapid, o líder da oposição, já fez saber que tenciona seguir pelo mesmo caminho nos próximos dias.

A possibilidade do Supremo reverter uma decisão que o visa diretamente “é uma loucura”, comenta ao Expresso o advogado israelita Itay Mor, desde Telavive. “O Parlamento tomou uma decisão que afeta o sistema judicial. Então o sistema judicial não gosta e vai anular essa decisão. Em qualquer democracia equilibrada, há uma regra básica: o governo do povo. O povo, a maioria, é quem manda. Escolhe os seus representantes no Parlamento e o Parlamento escolhe o governo. E o sistema judicial é eleito de diferentes formas pelas duas autoridades. Se o sistema judicial anular a decisão do Parlamento, está a anular o povo.”

Após 29 semanas de grandes protestos populares nunca antes vistos em Israel, e 30 horas de debate no Knesset, a maioria que apoia o Governo liderado por Benjamin Netanyahu, o mais à direita de sempre em 75 anos de vida do país, aprovou um diploma que limita a possibilidade do Supremo recorrer à “doutrina da razoabilidade” para bloquear decisões do Governo que considere serem irracionais ou implausíveis.

O advogado não partilha da reação dramática que se observa nas ruas de muitas cidades de Israel, nem tão pouco das análises que projetam nesta legislação uma ameaça à separação de poderes ou até o princípio do fim da democracia em Israel. “O voto foi contra decisões que não são razoáveis pelo sistema judicial”, diz, acrescentando que a prerrogativa da razoabilidade não é clara.

“Não depende de métodos objetivos, mas apenas de subjetivos. Depende apenas do ponto de vista e da perspetiva do juiz. Num dia, um juiz decide que vai ajudar as minorias e noutro decide que não. É este basicamente o problema”, explica. “O Supremo tem a autoridade, mas não tem a responsabilidade. E o Governo tem a responsabilidade, mas não tem a autoridade. É uma distorção.”

Supremo Tribunal tem mais armas

Itay Mor salienta ainda que o Supremo dispõe de mais sete critérios para desqualificar uma decisão governamental: se uma determinada decisão violar a lei, se for contrária à ideia de igualdade ou se não for equilibrada. “Por exemplo, se um membro de uma minoria cometer um crime e o Governo decidir que todos os membros dessa minoria vão para a cadeia.”

O diploma foi viabilizado pelos 64 deputados da maioria (eleitos nas fileiras de partidos de direita, da extrema-direita e religiosos), tendo os membros afetos à oposição abandonado o hemiciclo na hora do voto.

A importância desta votação ficou patente no facto de o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu ter participado dos trabalhos escassas horas após ter estado internado para colocação de um pacemaker. Foi no hospital que, no domingo, o Presidente do país, Isaac Herzog, se reuniu com o chefe do Governo, de 73 anos, para tentar, sem sucesso, um adiamento por 15 meses.

“Esta votação é importante não pelas suas implicações legais, mas antes sociais. A situação social em Israel é muito tensa”, diz Itay Mor. “Não conheço pessoalmente Netanyahu, mas creio que ele entende a importância social deste voto. Não temos de gostar dele, mas devemos respeitá-lo porque é um profissional e faz o que pode.”

O Supremo Tribunal de Israel é composto por 15 juízes que são escolhidos por um Comité de Seleção Judicial. Este integra três juízes do próprio Supremo (um deles o presidente), o ministro da Justiça e outro membro do Governo, dois deputados (da oposição) e dois representantes da Ordem dos Advogados. Nove membros no total, sendo que apenas quatro foram eleitos pelo povo.

“O povo de Israel não escolhe diretamente os juízes, que têm muito poder para tomar decisões cruciais. A prerrogativa da razoabilidade não é o único problema no sistema judiciário, mas é uma das ferramentas que o Supremo usa para desqualificar decisões do Governo sem obter o consentimento do Parlamento, que representa o povo”, diz o jurista. “Atualmente, em Israel, o sistema judicial tem muito mais poder do que o Parlamento e o Governo. E ninguém pode criticá-lo.”

Da elite e de esquerda

Mor diz que há uma grande discussão no país sobre a origem dos juízes e a representatividade “quase homogénea” no Supremo Tribunal de Israel. “Não há diversidade, não há juízes de diferentes áreas ou minorias da sociedade. Os juízes do Supremo representam uma percentagem muito pequena da elite da sociedade israelita. E isso é algo que a coligação governamental quer mudar para dar mais poder, no processo de eleição dos juízes, às forças políticas. Mas isso é na eleição, porque, uma vez eleitos, os juízes são totalmente independentes.”

Há também uma leitura política a fazer. “Em Israel, o Supremo Tribunal tende a ter uma abordagem mais de esquerda. Por isso, quando a esquerda não está no governo, tem o Supremo.”

O projeto de lei aprovado na segunda-feira foi apenas o primeiro de uma reforma judicial mais ampla que o Governo espera levar a cabo. “Numa jogada extraordinária, demos o primeiro passo do histórico processo de correção do sistema judicial e restituição dos poderes retirados ao Governo e ao Knesset ao longo de muitos anos”, regozijou-se Yariv Levin, o ministro da Justiça, que pertence ao partido Likud (direita).

O Knesset entra agora em férias e só após o verão haverá mais debates — previsivelmente sem acordo entre maioria e oposição —, mais votações e contestação nas ruas em torno de possíveis novas leis. O advogado é da opinião que “a reforma da justiça de que a coligação fala, no fim, pressupõe também mudanças no Comité” que seleciona os juízes.

Tudo acontece num país altamente polarizado, patente no facto de ter realizado cinco eleições legislativas entre 2019 e 2022. “Há uma enorme tensão nas ruas entre as pessoas”, conclui Itay Mor. “Se alguém de esquerda começar a falar com outra de direita, começam a discutir com muita facilidade. É uma situação muito inflamável.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de julho de 2023. Pode ser consultado aqui