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Nas prisões de Israel há milhares de palestinianos à espera de serem usados como moeda de troca

O ataque do Hamas a Israel fez aumentar o número de detenções de palestinianos. Nas prisões israelitas, há atualmente cerca de 9000 pessoas oriundas da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, umas condenadas a prisão perpétua, outras em vias de julgamento, muitas sem qualquer acusação. O prisioneiro mais famoso é Marwan Barghouti, a quem chamam “o Mandela palestiniano” e que o Hamas quer ver sair em liberdade. Quem também passou pelas prisões israelitas foi Yahya Sinwar, o líder do Hamas que hoje é o homem mais procurado por Israel

Paris, Cairo, Doha… Nas últimas semanas, estas capitais têm acolhido conversações com vista a uma pausa nos combates entre Israel e o Hamas. A confirmar-se, será a segunda em quase cinco meses. Em novembro, uma trégua de sete dias possibilitou a libertação de 105 reféns (81 dos quais israelitas), levados para dentro da Faixa de Gaza a 7 de outubro, durante o ataque do Hamas — restam ainda 134 no território palestiniano. Por seu lado, Israel abriu as portas das suas prisões a 240 palestinianos, 107 dos quais menores.

“A questão palestiniana sempre girou em torno das negociações para a libertação de prisioneiros detidos em prisões israelitas, e muito frequentemente em regime de detenção administrativa, o que significa ficarem detidos por tempo ilimitado sem acusação nem julgamento”, explica ao Expresso Giulia Daniele, professora no Instituto Universitário de Lisboa, do ISCTE. “Esta margem de negociação aumentou ainda mais desde 2006, após a vitória do Hamas nas eleições legislativas palestinianas.”

A 25 de junho de 2006, exatamente cinco meses após o escrutínio palestiniano, o rapto de um soldado israelita, no complexo posto fronteiriço de Kerem Shalom — entre Israel, o Egito e a Faixa de Gaza — daria origem à troca de prisioneiros mais desproporcional de sempre envolvendo Israel e, do outro lado, o Hamas ou o Hezbollah libanês.

A 11 de outubro de 2011, para receber de volta o soldado Gilad Shalit, Israel aceitou libertar 1027 prisioneiros palestinianos. Do grupo fazia parte Yahya Sinwar, o líder do Hamas que Israel pensa ter sido o ‘cérebro’ do ataque de 7 de outubro e que procura a todo o custo. Recentemente, as Forças de Defesa de Israel divulgaram um vídeo, referente aos primeiros dias da guerra, onde Yahya Sinwar é identificado no interior de um túnel.

“Benjamin Netanyahu pagou caro a libertação de Gilad Shalit ao ter de libertar mais de 1000 presos palestinianos”, comenta a investigadora, “mas ganhou em termos de consenso nacional. De seguida, tomou a decisão de assassinar Ahmed al-Ja’bari, o comandante operacional das Brigadas Izz ad-Din al-Qassam”, que raramente aparecia em público e socorria-se de estafetas para comunicar com outros dirigentes do Hamas.

O homem foi morto a 14 de novembro de 2012, numa rua da cidade de Gaza, atingido por um drone israelita. Esta execução “aumentou ainda mais o consenso em torno de Netanyahu que estava a perder o apoio do seu eleitorado por questões de política interna”. No mês anterior, o Parlamento de Israel votara a sua dissolução após falhar a aprovação do orçamento para o ano seguinte.

Pintura de glorificação à fuga de seis palestinianos da prisão israelita de Gilboa, a 6 de setembro de 2021, através de um túnel escavado com uma colher MAJDI FATHI / NURPHOTO / GETTY IMAGES

Quando foi libertado, Yahya Sinwar cumpria quatro penas de prisão perpétua. Israel cedeu em nome de um interesse maior. É o que pode acontecer com milhares de palestinianos que, de forma recorrente, são presos, mantidos nas prisões de Israel — alguns sem condenação ou até acusação — e pontualmente usados como moeda de troca.

Quer a organização palestiniana Addameer, quer a organização de defesa dos direitos humanos israelita HaMoked contabilizam atualmente cerca de 9000 prisioneiros palestinianos nas cadeias israelitas. Quase 3500 não estão acusados de qualquer crime.

O número total aumentou significativamente desde 7 de outubro, na sequência da detenção de palestinianos de Gaza envolvidos no ataque e, sobretudo, de habitantes da Cisjordânia ocupada, onde Israel aplica a lei militar à população palestiniana e o direito civil aos seus colonos.

Desde 7 de outubro, organizações de direitos humanos têm também dado conta do agravamento das condições de detenção dos palestinianos, que passa por “rusgas violentas, transferências retaliatórias entre prisões e isolamento de prisioneiros, menos acesso a água corrente e pão e menos visitas de familiares”, enumerou a organização internacional Human Rights Watch, em finais de novembro.

No sábado, a agência palestiniana Wafa noticiou a morte de um palestiniano, na prisão israelita de Ramla. Izz al-Din Ziyad el-Banna, de 40 anos, vivia em Gaza, onde foi detido pelas forças israelitas há dois meses. Sofria de hemiplegia e, segundo a Wafa, “foi submetido a tortura após a sua detenção, o que provocou uma grave deterioração do seu estado de saúde”.

Israel rebate as acusações de maus tratos e de condições desumanas reservadas aos prisioneiros palestinianos dando como exemplo a experiência do próprio Yahya Sinwar. Quando esteve preso, o líder do Hamas foi submetido a uma cirurgia, realizada por médicos israelitas, para remoção de um tumor no cérebro.

O destino dos prisioneiros palestinianos está omnipresente no quotidiano de quem vive na Cisjordânia e na Faixa de Gaza MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES

Dos atuais 9000 prisioneiros palestinianos, o maior grupo — quase 3500 — está em regime de detenção administrativa. Isso significa que não só nunca foram julgados como não estão acusados de qualquer crime. Os períodos de detenção vão sendo renovados indefinidamente, com base em informação secreta que não chega ao conhecimento do detido.

Os prisioneiros podem ficar nesta situação durante meses ou anos. Para Israel, a detenção administrativa é uma arma que enche as prisões de palestinianos que, mais cedo ou mais tarde, podem ser usados no combate político.

Em junho de 2021, três organizações palestinianas — o Clube dos Prisioneiros da Sociedade Palestiniana, a Comissão para os Assuntos dos Detidos e Ex-Detidos e o Conselho Superior dos Prisioneiros — anunciaram terem documentados mais de um milhão de palestinianos detidos por Israel desde 1967, quando começou a ocupação da Palestina. Para a ONU, o número é credível.

A arma da greve de fome

As práticas de detenção abusivas têm suscitado reações por parte dos próprios prisioneiros. “Um instrumento muito importante e representativo utilizado pelos presos é a greve de fome, individual ou coletiva, que já envolveu dezenas de representantes de partidos políticos palestinianos, nas últimas décadas”, recorda a investigadora.

A última ação coletiva começou a 18 de agosto passado. Mais de 1000 presos deixaram de comer em protesto contra rusgas contínuas aos seus quartos, em várias prisões, com uso excessivo de força. Havia também queixas relativas às visitas de familiares e aos períodos na solitária.

Hisham Abu Hawash foi protagonista numa das ações da ‘batalha dos estômagos vazios’, como são genericamente conhecidas as campanhas de greve de fome dos palestinianos. Este membro da Jihad Islâmica Palestiniana, natural da aldeia de Dura, perto de Hebron (Cisjordânia), foi libertado a 4 de janeiro de 2022, após 141 dias sem comer, o que o definhou até aos 38 kg. Hawash tinha 40 anos e estava em regime de detenção administrativa havia 15 meses. Oito meses após ser libertado, voltou a ser preso.

O caso de Hisham Abu Hawash foi imortalizado num mural na cidade de Gaza MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES

Giulia Daniele realça o compromisso político dos presos que se manifesta mesmo atrás das grades. “Até agora, o diálogo entre Hamas e Fatah foi possível quase exclusivamente graças aos presos políticos.”

Em 2006, após a vitória do Hamas — numas eleições em que alguns deputados eleitos estavam na cadeia —, “os presos políticos foram capazes de pôr de lado as rivalidades entre fações, em particular entre o Hamas [islamita] e a Fatah [secular]”, diz.

“O debate — que continua, ainda hoje, nas prisões israelitas entre presos palestinianos — demonstra que todos os partidos se envolveram numa reflexão alargada que contemplou as divisões entre eles, mas, ao mesmo tempo, a necessidade de encontrar uma unidade nacional como base da resistência contra o ocupante israelita.”

Essa discussão tornou possível, no primeiro semestre de 2006, a formação de dois governos palestinianos integrados por Hamas e Fatah, o segundo dos quais de “unidade nacional”.

“Depois de um período de fortes tensões e conflitos intrapalestinianos, começou-se a falar da possibilidade de união graças aos presos políticos e aos documentos de reconciliação nacional assinados por líderes dos diferentes partidos. Em várias ocasiões, esses documentos tiveram como primeira assinatura a de Marwan Barghouti.”

O Mandela palestiniano

Chamado de “Mandela palestiniano”, Marwan Barghouti — nascido em 1962, na aldeia de Kobar (arredores de Ramallah, na Cisjordânia) — foi preso e condenado por um tribunal militar israelita a cinco penas de prisão perpétuas, em 2002, estavam as ruas palestinianas tomadas pela Intifada Al-Aqsa, a segunda revolta palestiniana. Barghouti foi condenado por orquestrar ataques contra israelitas.

A partir da prisão, contribuiu para a redação do Documento de Conciliação Nacional dos Prisioneiros, de 2006, assinando-o em representação da Fatah. Mais recentemente, em abril de 2017, Barghouti liderou uma greve de fome em grande escala contra “o sistema ilegal de prisões arbitrárias em massa e maus-tratos de prisioneiros palestinianos em Israel”, explicou num artigo de opinião publicado no jornal norte-americano “The New York Times”.

“Liberdade para Barghouti”, pede-se neste mural em Ramallah, onde Marwan surge ao lado de Yasser Arafat, o líder histórico dos palestinianos AHMAD GHARABLI / AFP / GETTY IMAGES

“Marwan Barghouti é chamado também de ‘o preso excelente’ porque continua a ser, desde a morte de Yasser Arafat [o líder histórico dos palestinianos], em 2004, um dos líderes mais populares, apesar de ter sido condenado a cinco penas de prisão perpétua. É considerado por muitos palestinianos o único capaz de restabelecer a legitimidade da Autoridade Nacional Palestiniana e de assumir as principais prioridades do povo palestiniano num futuro governo nacional”, diz a professora do Instituto Universitário de Lisboa. “Outro ponto a seu favor é a capacidade de realização de uma possível unidade do movimento nacional palestiniano, fragmentado durante muito tempo.”

Barghouti é imensamente popular na Cisjordânia, já não tanto na Faixa de Gaza. Mas o Hamas, que controla Gaza, sempre declarou que a sua libertação é uma prioridade, no âmbito de um acordo de troca de prisioneiros com Israel. Nas atuais negociações com vista a um cessar-fogo, Marwan Barghouti, da rival Fatah, é um dos prisioneiros palestinianos que o Hamas quer ver sair em liberdade.

Giulia Daniele tem dúvidas que isso vá acontecer. “Ele é um dos principais inimigos de Israel, que o considera uma figura de destaque do terrorismo palestiniano”, conclui. “Parece-me muito improvável, senão impossível, que o nome dele possa aparecer numa futura lista de troca de presos palestinianos por reféns israelitas. Isso significaria criar a base para uma unidade nacional palestiniana e, dessa forma, fragilizar um dos principais objetivos da estratégia israelita — dividir a sociedade e a representação política palestiniana (Fatah e Hamas) entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.”

(FOTO PRINCIPAL Nos territórios palestinianos, há murais de homenagem aos palestinianos detidos em prisões de Israel MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Amnistia Internacional acusa Israel de “apartheid”, pela primeira vez: Estado hebraico trata palestinianos como “um grupo racial não-judeu inferior”

Em causa está a forma como as autoridades israelitas tratam o povo palestiniano não só nos territórios ocupados como também dentro de Israel. “A Amnistia Internacional apela ao Tribunal Penal Internacional que considere o crime de apartheid na sua atual investigação nos territórios ocupados palestinianos”, diz a organização de defesa dos direitos humanos, num relatório divulgado esta terça-feira. Os factos relatados no documento não são novos — inéditos são os termos usados pela Amnistia para qualificar a atuação de Israel

ILUSTRAÇÃO CARLOS LATUFF

A palavra é forte, mas a Amnistia Internacional (AI) é inequívoca ao usá-la para qualificar a forma como o Estado de Israel trata o povo palestiniano. Ao longo de um detalhado relatório de 280 páginas, divulgado esta terça-feira, a maior organização de defesa dos direitos humanos do mundo acusa Israel de apartheid. A embaixada israelita em Portugal repudia o conteúdo do documento.

“A totalidade das leis, políticas e práticas descritas neste relatório demonstra que Israel estabeleceu e manteve um regime institucionalizado de opressão e dominação da população palestiniana em benefício dos judeus israelitas — um sistema de apartheid — onde quer que tenha exercido controlo sobre a vida dos palestinianos desde 1948”, defende a AI. A entidade acusa o Estado hebraico de considerar e tratar os palestinianos como “um grupo racial não-judeu inferior”, que é “sistematicamente privado dos seus direitos”.

 

É a primeira vez que a AI usa a palavra apartheid para descrever as ações de Israel. No ano passado, outra organização internacional — a Human Rights Watch — passou a usar o termo para rotular a atuação do país nos territórios palestinianos sob ocupação. E até em importantes organizações dos direitos humanos israelitas, como B’Tselem e Yesh Din, já adotaram a palavra. 

Para a Amnistia, está em causa a forma como “quase todas as autoridades militares e a administração civil de Israel” estão envolvidas “na aplicação do sistema de apartheid contra os palestinianos”, nas suas múltiplas realidades:

  • Os palestinianos de Israel: 1,9 milhões de pessoas (21% da população total)
  • Os palestinianos da Cisjordânia: 3 milhões (incluindo 870 mil refugiados)
  • Os palestinianos da Faixa de Gaza: 2 milhões (incluindo 1,4 milhões de refugiados)
  • Os palestinianos refugiados: 5,7 milhões (no total)

“Descobrimos que as políticas cruéis de segregação, expropriação e exclusão de Israel em todos os territórios sob o seu controlo equivalem claramente a apartheid. A comunidade internacional tem a obrigação de agir”, apela Agnès Callamard, secretária-geral da AI. 

“As autoridades israelitas devem ser responsabilizadas pela prática do crime de apartheid contra os palestinianos”, defende a organização. “A AI pede ao Tribunal Penal Internacional [TPI] que considere o crime de apartheid na sua atual investigação nos territórios ocupados palestinianos e pede a todos os Estados que exerçam jurisdição universal para levar os autores de crimes de apartheid à justiça.”

O Expresso analisou o relatório — intitulado “O Apartheid de Israel contra os Palestinianos: Sistema Cruel de Dominação e Crime contra a Humanidade” (PDF disponível aqui) —, apoiado no trabalho de dezenas de organizações israelitas, palestinianas e internacionais, e destaca cinco manifestações de segregação e opressão.

 

1. Cidadãos de segunda

Em face do edifício legal israelita, os palestinianos têm múltiplos estatutos. Os que vivem em Israel são cidadãos com direito a passaporte e a votar nas eleições. Em 2018, contudo, a Lei da Nacionalidade veio destruir qualquer pretensão de igualdade entre árabes e judeus, ao consagrar Israel como “Estado-nação do povo judeu” e o direito à autodeterminação como exclusivo “do povo judeu”. Ao mesmo tempo, deixou de considerar a língua árabe oficial, relegando-a para um “estatuto especial”. Para a AI, esta lei cristalizou “a essência do sistema de opressão e de dominação sobre os palestinianos”.

“Israel não é um Estado de todos os seus cidadãos… [mas sim] o Estado-nação do povo judeu e somente deles” (Benjamin Netanyahu, ex-primeiro-ministro israelita, em março de 2019)

Relativamente aos palestinianos que vivem em Jerusalém Oriental — área que Israel ocupou na guerra de 1967 e anexou por uma lei de 1980 —, não têm cidadania israelita. Beneficiam de um frágil estatuto de residência permanente que é revogado não raras vezes, deixando milhares de palestinianos num limbo legal. Já os palestinianos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza aspiram, no máximo, a um cartão de identificação emitido pelas autoridades militares israelitas.

Este sistema de fragmentação e segregação com base em diferentes regimes jurídicos “destina-se a controlar a população palestiniana e visa preservar uma maioria de judeus israelitas em áreas-chave em Israel e nos territórios palestinianos ocupados”, escreve a AI.

Restam os refugiados palestinianos, que exigem o direito de regresso às terras onde viviam antes da criação do Estado de Israel (1948), e que o veem negado por Israel. Vivem há décadas em campos na Cisjordânia, Faixa de Gaza e países vizinhos (Jordânia, Líbano e Síria).

2. Apropriação de terras

É um dos principais pilares do sistema de apartheid que a AI denuncia, tão antigo quanto o próprio Estado israelita. Com o objetivo de libertar cada vez mais terras para judeus, Israel adota legislação e recorre a subterfúgios administrativos para negar autorizações de construção a palestinianos. 

Isso acontece, em especial, na região do Negev (sul de Israel), habitada sobretudo por populações beduínas. Mas também em Jerusalém Oriental, onde 38% das terras palestinianas foram expropriadas entre 1967 e 2017. E ainda nas áreas C da Cisjordânia (zonas sob total controlo israelita, que correspondem a 60% do território), onde os colonatos judeus não param de se expandir. São pelo menos 272 e ali vivem cerca de 450 mil judeus. 

Obrigados a obter licenças de construção que depois lhes são negadas, os palestinianos veem-se forçados a recorrer à construção ilegal, que, mais cedo ou mais tarde, será destruída pelos bulldozers municipais. “Desde 1948, Israel demoliu centenas de milhares de casas e outras propriedades palestinianas em todas as áreas sob a sua jurisdição e controlo efetivo”, acusa a AI. “Inversamente, as autoridades israelitas permitem livremente emendas aos planos de desenvolvimento onde estão a instalar cidades judaicas em Israel ou colonatos israelitas nos territórios ocupados palestinianos.”

Com os bulldozers (que destroem casas árabes) e as gruas (que constroem colonatos judeus) transformados em armas da ocupação israelita, as populações palestinianas vivem cada vez mais encurraladas em guetos. Diz o relatório: “Trinta e cinco aldeias beduínas, onde vivem 68 mil pessoas, são ‘não reconhecidas por Israel, o que significa que são privadas do fornecimento de eletricidade e água, e alvo de demolições repetidas. Como as aldeias não têm estatuto oficial, os seus residentes também enfrentam restrições ao nível da participação política e são excluídos dos sistemas de saúde e de educação. Estas condições coagiram muitos a deixar as suas casas e aldeias, naquilo que configura uma transferência forçada.”

3. Restrições de movimentos

Na Cisjordânia, uma rede de postos de controlo militares (checkpoints), bloqueios de estradas e cercas físicas condiciona — e controla — os movimentos quotidianos das populações palestinianas. “As severas restrições de movimentos têm um efeito particularmente prejudicial no sector agrícola” que, em tempos, chegou a empregar um quarto da mão de obra do território e a garantir um terço das suas exportações, alerta a AI.

“No seguimento da ocupação, as autoridades israelitas privaram os palestinianos e a sua economia de 63% das terras mais férteis e melhores para pastagem localizadas em áreas C, através da construção de colonatos e da cerca/muro. E impuseram restrições severas ao movimento dos palestinianos e à sua capacidade de aceder às suas terras.”

A cerca/muro referida é uma vedação em construção de mais de 700 km — com troços em betão e outros em arame — que isola mais de 10% da Cisjordânia e afeta 219 localidades. Algumas comunidades ficam ensanduichadas dentro de “zonas militares”, obrigando quem ali vive a solicitar autorizações especiais para entrar e sair das localidades, ou mesmo para ir de casa para os terrenos agrícolas.

Na Faixa de Gaza, a realidade é outra. Para os cerca de dois milhões de habitantes, a única via para entrar e sair do território sem ter de pedir autorização a israelitas ou egípcios é por túneis subterrâneos. “É quase impossível para os habitantes de Gaza viajar para o estrangeiro ou para outros territórios palestinianos ocupados”, diz a Amnistia. “São efetivamente segregados do resto do mundo.”

Neste retângulo de território de 40 km por 10 km, ganhar a vida é um exercício de criatividade. Mais de 35% das terras agrícolas e 85% das zonas de pesca estão inacessíveis aos palestinianos, por força da existência de uma “zona tampão” e de uma área marítima de acesso restrito.

“Desde a descoberta de petróleo e gás na costa de Gaza, Israel mudou repetidas vezes a demarcação da costa marítima de Gaza, por vezes reduzindo-a para apenas três milhas náuticas. A falta de acesso a água suficiente para pesca afeta cerca de 65 mil habitantes de Gaza e empobreceu quase 90% dos pescadores. Além disso, a marinha israelita usa força letal contra os pescadores de Gaza que trabalham na costa, e afunda e apreende os seus barcos.”

4. Detenções administrativas

Ocorrem tanto em Israel como nos territórios palestinianos. “Desde a ocupação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza em 1967, as autoridades israelitas têm feito uso generalizado de detenções administrativas para prender milhares de palestinianos, incluindo crianças sem acusação ou julgamento sob ordens de detenção renováveis.”

Este é um método que visa, por exemplo, silenciar opositores da ocupação na Cisjordânia. Neste território, Israel aplica aos palestinianos o sistema judicial militar e aos colonos judeus, a lei civil. As detenções sem acusação ou julgamento podem durar meses ou anos. 

“Embora a detenção administrativa possa ser legal em certas circunstâncias, o seu uso sistemático por Israel contra palestinianos indica que é usada para perseguir palestinianos, e não como medida de segurança extraordinária e seletiva. Consequentemente, a AI considerou que muitos detidos administrativos são prisioneiros de consciência detidos como punição pelos seus pontos de vista de contestação às políticas da ocupação”.

5. Tortura e assassínios

“Durante décadas, a Agência de Segurança de Israel, os Serviços Prisionais de Israel e as forças militares israelitas torturaram ou maltrataram detidos palestinianos, incluindo crianças, durante a prisão, transferência e interrogatório”, denuncia a Amnistia.

O relatório particulariza os “métodos duros” usados pelos serviços secretos para obter informações e “confissões” e que passam, segundo relatos dos palestinianos, pelo uso de algemas e outros instrumentos dolorosos, imobilização em posições de stresse, privação de sono, ameaças, assédio sexual, períodos prolongados em confinamento solitário e abuso verbal.

“Tribunais israelitas admitiram provas obtidas com recurso à tortura de palestinianos, aceitando o argumento de ‘necessidade’” (Relatório da Amnistia Internacional)

Na Faixa de Gaza, os protestos populares inseridos na iniciativa “Grande Marcha do Regresso”, que visaram a fronteira com Israel em 2018 e 2019, ilustram esta denúncia. Semanalmente, milhares de pessoas exigiam o direito de retorno dos refugiados e o fim do bloqueio aplicado por Israel. Faziam-no junto à fronteira, diante de forte dispositivo militar que, não raras vezes, disparava. Até ao final de 2019, as forças israelitas tinham matado 214 civis em Gaza, incluindo 46 crianças.

“O assassínio ilegal de manifestantes palestinianos é talvez a ilustração mais clara de como as autoridades israelitas usam atos proibidos para manter o status quo”, acusa a AI. “À luz dos sistemáticos assassínios ilegais de palestinianos documentados no relatório, a AI também pede ao Conselho de Segurança da ONU que imponha um embargo de armas abrangente a Israel”, defende a organização. “O Conselho de Segurança também deve impor sanções específicas, como congelamento de bens, contra funcionários israelitas mais implicados no crime de apartheid.”

“A AI examinou cada uma das justificações de segurança que Israel cita como base para a forma como trata os palestinianos. O relatório mostra que, embora algumas das políticas de Israel possam ter sido projetadas para assegurar objetivos legítimos de segurança, foram aplicadas de maneira grosseiramente desproporcional e discriminatória, que não cumpre o direito internacional”, conclui a organização. “Outras políticas não têm absolutamente nenhuma base razoável ao nível da segurança e são claramente moldadas pela intenção de oprimir e dominar.”

Reação de Israel

Num comunicado enviado à imprensa após a divulgação do relatório, o embaixador de Israel em Portugal diz que o relatório da Amnistia é “falso, tendencioso e antissemita”. “É lamentável que enquanto Israel está ocupado a promover a paz com os seus vizinhos, organizações internacionais na Europa estejam ocupadas a promover puro ódio e mentiras”, lastima Dor Shapira. “O Estado de Israel é uma democracia forte e vibrante, que garante a todos os seus cidadãos direitos iguais, independentemente da religião ou raça.”

O comunicado diz que “o Estado de Israel rejeita absolutamente todas as falsas alegações que aparecem no relatório da Amnistia”, o qual “consolida e recicla mentiras, inconsistências e alegações infundadas provenientes de conhecidas organizações de ódio anti-israelitas, todas com o objetivo de revender ideias antigas em novas embalagens”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 1 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui

Ódio inédito no conflito de sempre

A mais recente escalada entre Israel e o Hamas fez estalar a violência entre judeus e árabes em cidades israelitas

Nos últimos 12 anos, Israel e o Hamas, o grupo islamita que controla a Faixa de Gaza, enfrentaram-se abertamente três vezes. A última dessas guerras, em 2014, foi ao mesmo tempo a mais longa (sete semanas) e a mais mortífera (mais de dois mil palestinianos mortos). Disse-se então que Israel quis dar aos islamitas uma lição inesquecível por atentarem contra território judeu. Passados sete anos, a chuva de mísseis que o Hamas despejou esta semana sobre Israel — à qual o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, prometeu responder “com força” — mostra, desde logo, que o Hamas não leva a sério as reprimendas do poderoso vizinho.

A mais recente contenda entre israelitas e palestinianos levou poucos dias a evoluir de um conflito localizado num bairro árabe de Jerusalém para uma operação militar na Faixa de Gaza. Quatro leituras parciais desta crise ajudam a perceber a facilidade com que o rastilho se acende entre os dois povos e porque é complexa a solução para o conflito mais antigo do mundo.

A solução de “dois Estados para dois povos” continua a ser o grande chavão diplomático para o problema israelo-palestiniano, mas é desmentido todos os dias por casos como o que está na origem da crise atual. No bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental — a parte árabe da Cidade Santa conquistada por Israel na guerra de 1967 —, há famílias árabes a serem despejadas das casas onde sempre viveram.

Segundo a organização israelita Peace Now, desde o início do ano a justiça de Israel deu ordem de expulsão a 22 famílias palestinianas, nos bairros de Sheikh Jarrah e Batan al-Hawa, num total de 139 pessoas. Mal são evacuadas, as casas são de imediato ocupadas por colonos judeus. Aos poucos, a presença árabe em Jerusalém — cidade que também os palestinianos querem para sua capital — vai-se erodindo e Israel pode reclamar a posse de mais terras.

Nas ruas, a tensão à volta de Sheikh Jarrah foi sendo inflamada por atos provocatórios. Há três semanas, numa marcha supremacista pelo “restabelecimento da dignidade judaica”, ouviu-se repetidamente: “Morte aos árabes.” Já esta semana, foi a vez de sair à rua a tradicional manifestação nacionalista do Dia de Jerusalém, em que milhares de israelitas empunham a bandeira do país para celebrarem a conquista da cidade aos árabes.

Nesse exato dia, os deputados extremistas Itamar Ben-Gvir e Bezalel Smotrich, eleitos pelo partido de extrema-direira Sionismo Religioso, deslocaram-se a Sheikh Jarrah, rodeados de segurança e de colonos. Há cerca de 20 anos, a visita à Esplanada das Mesquitas do ex-primeiro-ministro Ariel Sharon (então líder da oposição) desencadeou protestos violentos num prenúncio da segunda intifada palestiniana, que não tardaria a começar.

Com a tensão em Jerusalém em máximos e a sua população muçulmana a cumprir o mês sagrado do Ramadão — assinalou-se entre quarta e quinta-feira a festa de Eid al-Fitr, que marca o fim desse período —, as forças israelitas impuseram restrições no acesso à Esplanada das Mesquitas, procurada diariamente por milhares de palestinianos para as orações. Daí à deflagração de confrontos foi questão de (pouco) tempo. Quando latas de gás lacrimogéneo e granadas de choque disparadas pelas forças israelitas rebentaram no interior da Mesquita de Al-Aqsa — o terceiro lugar santo do Islão —, todo o mundo muçulmano foi automaticamente arrastado para o problema.

RESISTÊNCIA
Só o Hamas defende os palestinianos

Em resposta à violência em Jerusalém e, em especial, aos raides da polícia israelita nas imediações da Mesquita de Al-Aqsa, voaram rockets da Faixa de Gaza na direção de Israel. Este tipo de ataques por parte do Hamas não é novo, foi-o, sim, a quantidade de foguetes disparados em simultâneo sobre cidades como Telavive.

A chuva de mísseis sem precedentes — batizada em Gaza de Espada de Jerusalém — enfiou milhões de israe­litas em bunkers, receosos de nova guerra num momento em que ainda gozavam o regresso à normalidade pós-pandemia. A esmagadora maioria dos projéteis foi intercetada pelo sofisticado sistema de defesa antimíssil Cúpula de Ferro. Alguns dos que não foram destruídos no ar provocaram sete mortos em Israel.

Em Gaza, os bombardeamentos israelitas de retaliação pelos rockets — operação Guardião das Muralhas — provocaram, até ontem de manhã, 69 mortos, incluindo 17 crianças. Israel disse ter eliminado vários comandantes do Hamas, o que perspetiva a vontade de vingança e um agravamento da situação.

A chuva de mísseis sem precedentes enfiou milhões de israelitas em bunkers, quando gozavam o regresso à normalidade pós-pandemia

Na Cisjordânia — o outro território palestiniano ocupado por Israel —, o Presidente palestiniano reagiu com palavras de condenação e apelos infrutíferos à comunidade internacional. Mahmud Abbas tem a sua quota de responsabilidade na falta de ânimo dos palestinianos de Gaza e da Cisjordânia. No final de abril, o líder da Autoridade Palestiniana — cujo mandato expirou em 2009 — adiou as tão aguardadas eleições com que os palestinianos ameaçavam “despedir” a elite que os governa, a quem rotulam de corrupta, e enterrar de vez a divisão Fatah-Hamas que fragiliza a causa.

Abbas é acusado de ter adiado as legislativas para precaver a possibilidade de vitória do Hamas. A seu favor, o grupo islamita (que a UE e os Estados Unidos consideram terrorista) tem o facto de ser das poucas alternativas políticas organizadas e de ser a real oposição palestiniana à ocupação.

INTOLERÂNCIA
“Guerra civil” onde antes havia coexistência

Paralelamente aos problemas em Jerusalém e na Faixa de Gaza, a crise abriu uma inédita terceira frente. Várias cidades israelitas com população mista, que se orgulhavam de um quotidiano de coexistência entre judeus e árabes, tornaram-se cenários de violência intercomunitária.

Em São João de Acre, Ramle e Lod multidões de árabes em fúria incendia­ram e vandalizaram sinagogas, lojas, carros e casas de judeus, o que levou o autarca de Lod a alertar para um clima de “guerra civil”. “É a Noite dos Cristais em Lod”, disse Yair Revivo, invocando o pogrom contra os judeus, na Alemanha nazi, na noite de 9 para 10 de novembro de 1938. “É um incidente gigante, uma intifada de árabes israelitas. Todo o trabalho [de coexistência] que temos feito aqui desde há anos foi pelo ralo abaixo.” Em Israel, 20% da população é árabe, detentora de passaporte e com direito a voto. Nunca antes tinham tomado parte em confrontos desta envergadura.

POLÍTICA
Benjamin Netanyahu tal qual uma fénix

A mais recente contenda com o Hamas apanhou o primeiro-ministro de Israel num momento de grande fragilidade. Netanyahu está a ser julgado por corrupção e, no plano político, falhou recentemente a formação de um Governo de coligação. Esta crise fê-lo recuperar estatuto e assumir-se como o líder que vai de novo resgatar Israel do sufoco.

A ironia é que, teoricamente, pode estar prestes a terminar a sua longa carreira. A tarefa de formar um Executivo está agora entregue a Yair Lapid, líder do Yesh Atid (centro), que se propôs formar um “Governo da mudança” e vê esta crise dificultar-lhe os planos, dada a oposição dos partidos árabes, de cujo apoio necessita, aos bombardeamentos em Gaza.

“Os acontecimentos da última semana não podem ser desculpa para deixar Netanyahu e o seu Governo no poder”, disse Lapid. “É exatamente o oposto: são o motivo pelo qual precisa de ser substituído o mais depressa possível.” Netanyahu já anunciou aos israelitas que o “conflito atual pode durar algum tempo”. A Lapid foram dados 28 dias para formar Governo, que começaram a contar a 5 de maio. Se o prazo se esgotar sem que o consiga, Israel estará mais perto de voltar a ir a votos. Serão as quintas eleições em pouco mais de dois anos, que, é óbvio, Netanyahu espera voltar a vencer.

(ILUSTRAÇÃO DE VERONAA / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso”, a 14 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui

Intifada por Sheikh Jarrah. Uma luta contra a ocupação israelita e a negligência palestiniana

A violência regressou ao coração de Jerusalém. Desta vez, o rastilho foi o avanço da ocupação israelita sobre um bairro na parte árabe da cidade. A alimentar muita da revolta dos palestinianos está também um sentimento de abandono em relação à sua própria liderança. O recente adiamento das muito aguardadas eleições legislativas só veio acentuar essa frustração. “Nem Israel nem a Autoridade Palestiniana estão interessados que os palestinianos tenham eleições livres”, diz ao Expresso um ativista de Hebron. “Querem manter o status quo.

Mapa de Jerusalém, com a localização de Sheikh Jarrah THE NATIONAL

O recato a que os muçulmanos têm por hábito entregar-se durante o mês sagrado do Ramadão foi tomado, nos últimos dias, por uma “intifada” (revolta) palestiniana, na Cidade Velha de Jerusalém. As zonas em redor da Mesquita de Al-Aqsa estão transformadas em campos de batalha entre palestinianos e forças israelitas.

Segunda-feira, gás lacrimogéneo e granadas de choque disparados pela polícia israelita rebentaram dentro daquele que é o terceiro lugar mais sagrado do Islão. A segunda maior religião do mundo conta cerca de dois mil milhões de crentes.

Na origem da mais recente vaga de violência entre israelitas e palestinianos está a disputa por Sheikh Jarrah, bairro em Jerusalém Oriental que foi buscar o nome ao médico pessoal de Saladino, o curdo que liderou as tropas muçulmanas na conquista de Jerusalém aos cristãos, em 1187.

Por decisão da justiça israelita, há famílias árabes que ali vivem desde sempre e que estão na iminência de serem despejadas. Domingo passado, quando já havia confrontos nas ruas, foi adiada a audiência no tribunal que devia confirmar essa expulsão.

Segundo a organização israelita Peace Now, desde o início do ano, os tribunais israelitas já ordenaram o despejo de 22 famílias palestinianas em Sheikh Jarrah e Batan al-Hawa (outro bairro de Jerusalém Oriental), num total de 139 pessoas.

Sempre que são evacuadas, as casas não ficam ao abandono — colonos israelitas tomam conta delas, garantindo que o pedaço de terra onde se erguem passe a constar nos mapas como território judeu. Aos poucos, a presença árabe em Jerusalém é uma referência cada vez mais longínqua nos livros de história.

Os palestinianos de Jerusalém Oriental vivem num limbo. Não são cidadãos de Israel (como quase dois milhões de árabes que vivem em território israelita, com direito a passaporte e a voto), nem têm o seu estatuto de residência garantido.

Vivem numa das frentes mais tensas da ocupação israelita, sem certezas em relação à vida quotidiana e mergulhados num sentimento de abandono em relação à liderança palestiniana. Dela esperavam defesa e proteção contra o avanço do projeto de colonização israelita.

“Facada” veio de mão supostamente amiga

A última “facada” nessa esperança palestiniana foi desferida pelo próprio Presidente da Autoridade Nacional Palestiniana. No passado dia 29 de abril, Mahmud Abbas anunciou o adiamento das eleições legislativas previstas para 22 de maio.

“Essa decisão só veio aumentar a frustração entre os palestinianos que esperavam um recomeço, uma nova unidade nacional que contrariasse tanto a política de ocupação e de apartheid israelita como a divisão intrapalestiniana entre Hamas e Fatah”, diz ao Expresso Giulia Daniele, do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa.

Abbas alegou que as autoridades de Israel não garantiam a realização do escrutínio em Jerusalém Oriental, a parte árabe da cidade santa ocupada na guerra de 1967. “Mal Israel concorde, teremos eleições no prazo de uma semana”, prometeu. Mas as suas palavras soaram a pretexto. “A Autoridade Palestiniana [AP] tem feito muito pouco pela defesa desta população”, diz ao Expresso Marta Silva, investigadora na área dos estudos da sociedade israelita.

“Por um lado, representantes da Fatah [partido de Abbas, que domina a AP] colocam a culpa em Israel por recusar a instalação de mesas eleitorais em Jerusalém Oriental. Nas eleições anteriores (em 1995, 2005 e 2006), Israel tinha permitido a instalação de mesas eleitorais em postos de correio.”

Por outro lado, os mesmos representantes “recusaram a possibilidade da colocação de mesas em consulados europeus e instalações das Nações Unidas em Jerusalém Oriental. Esta recusa, que justificaram dizendo que se trataria de um ‘escape’, e não uma ‘solução’, mostra que a Fatah não estava verdadeiramente interessada em garantir a participação eleitoral destes palestinianos, e que existe outra agenda política”.

Sem votar há quinze anos

Estas eleições legislativas seriam as primeiras desde 2006 — quando a vitória do Hamas não foi reconhecida (pela Fatah, por Israel e pela comunidade internacional), o que contribuiu para dividir a Palestina em dois, com o Hamas a tomar o poder à força na Faixa de Gaza e a Fatah a entrincheirar-se na Cisjordânia.

“O anúncio das eleições, a 15 de janeiro de 2021 [a cinco dias de Joe Biden tomar posse como Presidente dos Estados Unidos], causou uma imensa onda de expectativa e esperança junto dos palestinianos, visível no número de eleitores que se registaram, na multiplicação de listas eleitorais [36 aprovadas pela comissão eleitoral] e até no número crescente de mulheres nessas listas”, recorda Marta Silva.

“Quase um milhão de jovens palestinianos teria votado pela primeira vez”, acrescenta Giulia Daniele. “O adiamento das eleições — que mais parece um cancelamento, sem nova data marcada — poderá custar muito caro à causa palestiniana, criando uma desilusão generalizada numa geração que gostaria de ser mais ouvida e de tentar mudar o status quo em que se sente presa há longo tempo.”

Com estas legislativas, os palestinianos tencionavam por fim começar a ‘arrumar a casa’. O povo exigia-o desde que o mandato presidencial de Abbas expirou, a 15 de janeiro de… 2009. A 31 de julho próximo, tinham agendadas presidenciais e a 31 de agosto eleições para o Conselho Nacional Palestiniano, órgão da Organização de Libertação da Palestina (OLP), que é a instituição que, na ausência de um Estado independente, representa o povo palestiniano a nível internacional.

“Fiquei surpreendido por Abbas aceitar fazer eleições”, diz ao Expresso o ativista palestiniano Issa Amro, ícone da resistência pacífica e da desobediência civil na Cisjordânia. “Tinha a certeza que ele não iria aceitar eleições livres. É idoso, está debilitado e incapaz. Seguramente ia perder a presidência e a sua Fatah deixaria de ser o principal partido.”

Ocupação não tem oposição

Issa vive noutra frente da ocupação israelita: a cidade de Hebron, onde moram alguns dos colonos judeus mais radicais. A 13 de abril passado, foi absolvido por um tribunal palestiniano no âmbito de um processo interposto pela AP, que lidou mal com as acusações do ativista. “A liderança da AP é muito má, tornou-se subempreiteira da ocupação”, diz Issa, que acusa: “Nem Israel nem a AP estão interessados que os palestinianos tenham eleições livres. Querem manter o status quo.”

“A presença no poder da Fatah desde 1993 [Acordos de Oslo] tem servido também os interesses de Israel, uma vez que garante que não exista oposição capaz de resistir à ocupação”, explica Marta Silva. “O governo da Fatah é visto pelos palestinianos como profundamente corrupto, e a colaboração em termos de segurança com o Estado de Israel é conhecida, e explica a detenção de vários opositores políticos da Fatah.”

Entre as listas que se preparavam para ir a votos, uma em especial estava a colocar a Fatah em sentido: a “Liberdade” — em que Issa Amro ia votar —, fundada por Nasser Kidwa, sobrinho do malogrado líder histórico palestiniano Yasser Arafat, e por Marwan Barghouti, um líder das duas Intifadas, preso desde 2004, a cumprir várias sentenças de prisão perpétua numa prisão israelita. Barghouti, a quem chamam “Mandela palestiniano”, era apontado como alternativa mais forte a Abbas e potencial vencedor das presidenciais.

Paralelamente, não estava afastada a possibilidade de se repetir em 2021 o resultado de 2006. “O futuro da Palestina e os seus equilíbrios internos são os fatores determinantes do adiamento das eleições”, diz Giulia Daniele. “Existe medo real por parte da Fatah, e também de Israel e dos Estados Unidos, de um fortalecimento significativo — e uma muito provável nova vitória — do Hamas, não apenas na Faixa de Gaza mas também na Cisjordânia.”

Várias outras formações políticas têm na origem antigos dirigentes da Fatah, que interpretaram a desilusão e a desconfiança de grande parte dos palestinianos em relação à gestão governativa do partido e assumiram a dissidência em relação ao Presidente, que leva 16 anos no cargo.

Abbas é só uma parte do problema

“Abbas tem 85 anos e problemas de saúde graves. Debates sobre quem poderá suceder-lhe existem há anos. No entanto, o problema palestiniano não reside exclusivamente em Abbas. Ele é apenas a face mais visível de uma elite política que beneficia da ocupação”, diz Marta Silva.

“A AP é uma continuação da ocupação israelita por outros meios, uma forma de terciarização da ocupação: a AP e Abbas necessitam de Israel para manter o poder sobre esse território, e Israel necessita de manter a Fatah no poder, porque sabe que a eleição do Hamas, da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), ou da ‘Liberdade’ significaria o fim da cooperação para a ‘segurança’ entre os dois lados.”

A prazo, o adiamento das eleições palestinianas, sem perspetiva de serem realizadas tão cedo, terá, na perspetiva de Marta Silva, duas consequências importantes que podem voltar-se contra os palestinianos:

  1. Dispersão do eleitorado palestiniano. “Acredito que uma grande percentagem dos eleitores que iam votar na Fatah por ser um ‘mal já conhecido’ comece a ponderar votar noutras listas, nomeadamente no Hamas, também pela atitude do grupo em relação a Jerusalém Oriental: representantes do Hamas dizem, desde janeiro, que Abbas não tem de pedir autorização a Israel, país ocupante, para levar a cabo as eleições em Jerusalém.”
  2. Favorecimento do Hamas. “Este adiamento confirma em público a imagem de uma Fatah subjugada aos interesses de Israel. O que será erradamente analisado como processo de radicalização do eleitorado palestiniano esconde, na realidade, um problema de falta de alternativas políticas. Num momento em que listas democráticas — que reconhecem o direito de existência de Israel nos territórios pré-1967 e renunciaram há muito à luta armada — estão constantemente sob ataque por parte da Fatah e de Israel, o Hamas surge como uma das poucas alternativas políticas organizadas e com capacidade de resistência à ocupação. Trata-se de uma falta de visão política espantosa por parte de Israel e da comunidade internacional, mas a história da Palestina desde o início do século XX está repleta de exemplos como este.”

Tudo acontece num contexto de grande tensão em que as ruas de Jerusalém têm sido palco de manifestações de ódio e desprezo contra os palestinianos. Segunda-feira, saiu à rua a tradicional e provocatória marcha do Dia de Jerusalém, em que milhares de pessoas agitam a bandeira de Israel para celebrar a conquista da parte árabe da cidade, na guerra dos Seis Dias (1967). Para evitar um banho de sangue, a polícia alterou o curso do desfile, afastando-o da Porta de Damasco, principal entrada da Cidade Velha e centro dos confrontos dos últimos dias.

Há três semanas, tinham sido militantes de um grupo da extrema-direita nacionalista e supremacista israelita a realizar uma marcha em Jerusalém para “restaurar a dignidade judaica”. Entre os slogans que gritaram, ouviu-se muitos “Morte aos árabes”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui

Era uma vez duas eleições…

Os israelitas foram a votos a 23 de março e ainda não têm Governo. Os palestinianos, cujas últimas legislativas datam de há 15 anos, viram adiar as eleições agendadas para 22 de maio. No Médio Oriente, até votar pode ser complicado

1 Israel já conseguiu formar Governo?

Passaram 45 dias e ainda não há Governo. À meia-noite de terça-feira passada esgotou-se, sem êxito, o prazo dado ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, líder do partido mais votado (Likud, direita, 31 deputados em 120), para formar uma coligação. O senhor que se segue na tarefa, indicado pelo Presidente Reuven Rivlin, é Yair Lapid, líder da segunda força mais votada (Yesh Atid, centro, 17 deputados). Lapid tem 28 dias para obter o apoio de pelo menos 61 parlamentares. Sabe-se que ele e Naftali Bennett (líder do Yamina, direita radical, 7 deputados) negociaram um “governo de mudança” (sem Netanyahu) onde alternariam no cargo de primeiro-ministro (Bennett seria o primeiro). Falta convencer mais partidos.

2 E os palestinianos, vão realizar eleições?

Já não. Estavam marcadas legislativas para 22 de maio, a comissão eleitoral tinha aprovado 36 listas candidatas, mas há uma semana o Presidente Mahmud Abbas anunciou a suspensão do ato eleitoral, alegando que os eleitores de Jerusalém Oriental (anexada por Israel) não tinham condições para votar. Para muitos palestinianos, a justificação soou a desculpa. “Surpreendeu-me que Abbas concordasse em fazer eleições”, diz ao Expresso o ativista Issa Amro. “Ele não ia aceitar eleições livres. É idoso [85 anos], está incapacitado e incapaz. Ia perder a presidência e a sua Fatah deixaria de ser o principal partido. A liderança da Autoridade Palestiniana é muito má, tornou-se subempreiteira da ocupação, quer manter o statu quo.”

3 Que importância teria este escrutínio?

Muita. Seriam as primeiras legislativas desde 2006. “O anúncio destas eleições causou uma imensa onda de expectativa e esperança junto dos palestinianos, visível no número de eleitores que se registaram, na multiplicação de listas eleitorais e até no número crescente de mulheres nessas listas”, diz ao Expresso Marta Silva, investigadora na área dos estudos da sociedade israelita. O escrutínio seria o início de um ‘arrumar de casa’ que os palestinianos vêm exigindo desde que o mandato presidencial de Abbas expirou, a 15 de janeiro de… 2009. A 31 de julho haveria presidenciais e a 31 de agosto eleições para o Conselho Nacional Palestiniano, órgão da Organização de Libertação da Palestina, que representa o povo a nível internacional.

4 Que consequências terá este adiamento?

À luz dos últimos 15 anos, é realista interpretar o adiamento das eleições como um cancelamento, que acontece em contexto delicado. “Muitos elementos fomentam raiva e violência contra os palestinianos, como se viu na manifestação da extrema-direita nacionalista e supremacista israelita em Jerusalém, na semana passada”, diz ao Expresso Giulia Daniele, do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa. Não fazer eleições “só vai aumentar a frustração dos palestinianos que acreditavam numa nova unidade nacional, em contraste com a política de ocupação e apartheid israelita e com a divisão intrapalestiniana Hamas-Fatah”.

Artigo publicado no “Expresso”, a 7 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui