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Eleições dão alento ao sonho de Shinzo Abe, assassinado dois dias antes

O Japão foi a votos domingo, num escrutínio ensombrado pelo assassínio do ex-primeiro-ministro Shinzo Abe, dias antes, quando discursava num comício. Enquanto digerem este crime sem precedentes no país, os eleitores japoneses votaram maioritariamente em partidos defensores, como o desaparecido, de uma revisão da Constituição pacifista

A mais de 11 mil quilómetros de Portugal, o Japão é um país que sobressai pela sua liderança em vários domínios. Com os animes, tornou-se potência mundial da indústria do audiovisual; a sua gastronomia é apreciada nos quatro cantos do mundo; e o desenvolvimento tecnológico catapulta o país para o topo das classificações mundiais da especialidade.

Outra imagem forte é a tranquilidade e o pacifismo que emana da sociedade nipónica. O Japão ocupa as últimas posições nos rankings internacionais de criminalidade e, inversamente, os primeiros no Índice Global da Paz.

Nada preparava 126 milhões de cidadãos, pois, para o chocante assassínio a tiro, na via pública, do ex-primeiro-ministro Shinzo Abe, na passada sexta-feira, quando discursava numa ação de campanha do Partido Liberal Democrático (PLD, conservador), a que pertence também o primeiro-ministro Fumio Kishida. Foi um trágico fim da campanha para as eleições deste domingo, em que foram a votos 125 dos 248 assentos da câmara alta do Parlamento.

Os partidos da coligação no poder (PLD e Komeito) asseguraram 77 lugares, passando a ter um total de 147 membros na Câmara dos Conselheiros. “Uma grande vitória para o bloco que pressiona para tornar realidade o sonho de revisão [constitucional] de Abe”, escreveu o jornal japonês “Asahi Shimbun”.

Legado da II Guerra Mundial

Durante os seus mandatos como primeiro-ministro (2006-2007 e 2012-2020), Abe pugnou pela revisão da Constituição do Japão (promulgada em 1946, a seguir à derrota nipónica na II Guerra Mundial, e nunca revista) no sentido de clarificar o estatuto legal das Forças de Autodefesa, que têm estado confinadas às ilhas japonesas e só muito recentemente passaram a integrar missões de manutenção da paz no estrangeiro.

Pelo artigo 9º da Constituição, “o povo japonês renuncia para sempre à guerra como direito soberano da nação e à ameaça ou uso da força como meio de resolver disputas internacionais”.

Para cumpri-lo, “as forças terrestres, marítimas e aéreas, bem como outras potencialidades bélicas, nunca serão mantidas”. Esta disposição constitucional e a ausência de qualquer referência explícita às Forças de Autodefesa servem de base à argumentação que rotula as Forças de inconstitucionais.

Uma revisão constitucional exige a aprovação de dois terços dos deputados nas duas câmaras do Parlamento — Câmara dos Representantes (baixa) e Câmara dos Conselheiros (alta) —, ao que se seguirá um referendo nacional.

Esta possibilidade ficou mais próxima de se tornar realidade após as eleições deste domingo, já que quatro partidos favoráveis a uma revisão constitucional conquistaram lugares suficientes para forjar a maioria de dois terços. Um sonho que Shinzo Abe não verá concretizado.

Caso muito excecional

Abe, de 67 anos, foi assassinado quando discursava em frente à estação ferroviária de Yamato-Saidaiji, na cidade de Nara (no centro de Honshu, a maior ilha do arquipélago japonês), a cerca de 500 quilómetros de Tóquio. O seu palco era uma pequena caixa quadrada colocada numa área zebrada no meio da estrada. Abe foi alvejado duas vezes nas costas, com surpreendente facilidade.

“Este é um caso muito excecional no Japão, uma das sociedades mais pacíficas do mundo, com um índice de criminalidade muito baixo. No entanto, nos tempos em que vivemos, e tendo em conta o que se passa a nível internacional, não me surpreende que episódios de volatilidade e incerteza ocorram também no Japão”, diz ao Expresso um cidadão português a residir em Tóquio, que solicitou anonimato.

“A cidade de Nara, onde Abe discursava, é quase uma vila quando comparada com as grandes cidades de Tóquio ou Osaca. Por ser um dos países mais seguros do mundo, os seguranças que acompanhavam Abe estão agora a ser acusados de negligência, pois deixaram a retaguarda do ex-primeiro-ministro sem qualquer proteção.”

O atacante, que já confessou o crime, usou uma arma de fabrico caseiro. Foi identificado como Tetsuya Yamagami, desempregado de 41 anos, residente em Nara, que serviu três anos na Marinha, até 2005. Aos investigadores, o suspeito disse sentir “rancor” em relação a Abe.

“A minha família aderiu a uma organização religiosa e a nossa vida tornou-se mais difícil após doar dinheiro para essa organização”, disse Yamagami, citado pelo “Asahi Shimbun. “Eu queria atingir o alto responsável da organização, mas era difícil. Então, virei-me para Abe, porque acreditava que ele estava ligado [à organização]. Quis matá-lo.”

Críticas a Zelensky

O cidadão português ouvido pelo Expresso não descarta a possibilidade de o assassino ter atuado com motivações políticas. “Pessoalmente, penso que é um ato político com contornos internacionais. Shinzo Abe era próximo de Vladimir Putin [Presidente da Rússia] e Donald Trump [ex-Presidente dos EUA]. E em maio tinha criticado [Volodymyr] Zelensky [Presidente da Ucrânia].”

Há pouco mais de um mês, Abe pronunciou-se sobre a guerra na Ucrânia para criticar Kiev: “Se o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, tivesse sido obrigado a prometer que o seu país não aderiria à NATO ou a conceder um alto grau de autonomia aos dois enclaves orientais [Donetsk e Luhansk], teria sido possível evitar hostilidades”, disse.

Antes destas declarações, e já com a invasão russa em curso, Abe comparou Putin a Oda Nobunaga, um guerreiro do século XVI muito importante na história do Japão. O Presidente russo, disse, é “um pragmático extremo e, fundamentalmente, acredita no poder”, disse num simpósio. “Eu diria que ele é como um general Sengoku [período dos Estados Combatentes]. Por exemplo, se se dissesse a Oda Nobunaga para respeitar os direitos humanos, não funcionaria.”

A experiência militar do assassino confesso ter-lhe-á sido preciosa para construir a arma com que alvejou Abe. No Japão, adquirir uma arma de fogo requer registo criminal limpo, treino obrigatório, avaliação psicológica e verificação de antecedentes que podem passar por entrevistas a vizinhos por parte da polícia.

Uma vez por ano, a arma tem de ser inspecionada pela polícia e a cada três anos há que renovar a licença, o que obriga o proprietário a voltar a receber formação e a fazer um exame. Não é permitido comprar pistolas, apenas espingardas e carabinas de ar comprimido.

Menos de dez mortes por ano

Estas restrições contribuem para um baixo número de armas de fogo nas mãos de particulares, no Japão. Segundo o projeto independente “Small Arms Survey”, localizado no Instituto de Estudos Internacionais e de Desenvolvimento, de Genebra, estima-se que, em 2017, havia no Japão (126 milhões de habitantes) cerca de 377 mil armas nas mãos de civis — uma média de 0,25 armas por 100 pessoas, enquanto nos Estados Unidos essa média é de 120 armas.

Em consequência, a quantidade de crimes com armas de fogo é praticamente inexistente. A média anual é de menos de dez mortes. Em 2017, houve apenas três.

Mesmo a Yakuza, conhecida como “máfia japonesa” — uma organização com ramificações internacionais que se dedica à extorsão, tráfico, lavagem de dinheiro e inúmeras outras atividades criminosas ligadas ao crime organizado —, proibiu os seus membros de usarem armas de fogo, pelo menos em público, para protegerem os seus principais líderes de responsabilidades criminais.

A decisão seguiu-se à sentença de um tribunal da cidade de Fukuoka que, em agosto do ano passado, condenou à morte por enforcamento Satoru Nomura, de 74 anos, líder de um gangue importante, responsabilizando-o por ataques realizados por subordinados. O mafioso recorreu da sentença e aguarda o resultado.

Foi às mãos da Yakuza que, em 2007, após um comício, foi assassinado Iccho Itoh, antigo presidente da Câmara Municipal de Nagasáqui. Foi o último político japonês morto a tiro antes de Abe, um político de outra dimensão, já que era o japonês que mais tempo serviu no cargo de primeiro-ministro. Nos dois mandatos, abdicou por razões de saúde.

“Algo mudará” no país como consequência deste caso, prevê o cidadão português. “No Japão, tentam sempre reformar o sistema, ou criar novos regulamentos, quando algo não corre bem. Talvez tenha algum impacto na tradição japonesa dos candidatos políticos discursarem em público. Certamente a segurança vai ser reforçada nessas ocasiões.”

(FOTO Cartazes de candidatos à eleição para a Câmara Alta do Parlamento, em Tóquio, a 10 de julho de 2022 ISSEI KATO / REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui

A ascensão ao poder de um ‘self-made man’

Yoshihide Suga é o mais que provável futuro primeiro-ministro do Japão. Eleito esta segunda-feira presidente do Partido Liberal
Democrático (no poder), sujeitar-se-á à votação parlamentar na próxima quarta, para chefiar o Governo. Ao Expresso, um doutorando português na Universidade de Osaca enumera os principais desafios do novo governante

O Japão virou a página da era Shinzo Abe — o nipónico que durante mais tempo chefiou o Governo do país (mais de oito anos) — e, esta
segunda-feira, encarregou um novo escriba de redigir os próximos capítulos da sua história. Yoshihide Suga, de 71 anos, foi eleito
presidente do Partido Liberal Democrático (PLD, conservador), a formação política que governou o país ao longo de 60 dos últimos 65 anos.

Na próxima quarta-feira, o seu nome será votado para o cargo de primeiro-ministro, numa sessão extraordinária da Dieta, o Parlamento japonês. Será uma mera formalidade, sem margem para grandes surpresas, já que o PLD controla quer a Câmara dos Conselheiros (alta) quer a dos Representantes (baixa).

Suga ficará então encarregue de completar o mandato de Abe — que se demitiu em virtude do agravamento de uma colite ulcerosa —, que deveria terminar em setembro de 2021.

Nascido a 6 de dezembro de 1948, numa localidade que é hoje Yuzawa, no seio de uma família de plantadores de morangos, Suga chega ao cargo após quase oito anos como secretário-geral do Conselho de Ministros, um recorde na história do país, que o tornou fiel braço-direito de Shinzo Abe.

Presidência e assuntos parlamentares

Pensando na hierarquia política portuguesa, “creio que a comparação mais adequada talvez seja a da função de ministro da Presidência ou, a outro nível, de secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares”, explica ao Expresso o investigador César Rodrigues, doutorando em Relações Internacionais na Universidade de Osaca.

No Japão, o secretário-geral do Conselho de Ministros “é responsável por coordenar políticas do Governo entre os vários ministérios, efetuar negociações dentro do Governo, estabelecer a ligação entre o primeiro-ministro e o seu partido, gerir crises, entre outras funções. Também realiza conferências de imprensa regulares, atuando como porta-voz do Governo”.

Essa omnipresença nos corredores do poder conferiu favoritismo a Suga entre os militantes do PLD. De igual forma, a estreita colaboração com Shinzo Abe leva César Rodrigues a prever que “o mais provável é que a liderança de Suga seja de continuidade”.

Na leitura do académico português, três motivos potenciam essa tendência. “Em primeiro lugar, a política japonesa é tipicamente caracterizada por mudanças lentas, sistémicas e incrementais. Quando há mudanças profundas, normalmente não são abruptas e resultam de um processo demorado de harmonização dos vários interesses estabelecidos.”

Em segundo, “o PLD é a força política do status quo, tendo governando quase ininterruptamente no período do pós-guerra. Isso também contribui para um certo padrão de continuidade”. E por último, “Suga pertenceu durante muitos anos ao círculo próximo de Abe, tendo sido nos últimos tempos apresentado — inclusive pelo próprio — como um candidato capaz de dar continuidade à sua governação, com quem partilha o essencial da visão política”.

Apesar de toda a experiência acumulada em matéria político-partidária, a sua envergadura ao nível de política externa é uma incógnita. “Existe uma perceção geral de dúvida em relação à capacidade de Suga em lidar com política internacional”, diz o académico Rodrigues.

Entre as frentes que enfrentará estão a gestão da aliança com os Estados Unidos face às crescentes tensões na região, as disputas territoriais com os vizinhos (em especial China, Rússia e Coreia do Sul), os riscos inerentes aos programas nuclear e de mísseis da Coreia do Norte e ainda a questão dos japoneses raptados e levados para este último país há cerca de 40 anos.

Memos carisma, mais pragmatismo

Paralelamente, “existem algumas distinções entre Abe e Suga que se podem traduzir em diferenças na agenda política e no modo de governar”. Formado em Direito, em 1973, pela Universidade Hosei (instituição privada em Tóquio), e eleito deputado pela primeira vez em 1996, “Suga é retratado como um self-made man, de estilo político menos carismático mas mais pragmático, sendo também conhecido pela sua capacidade de controlo sobre os burocratas”.

Outra distinção importante, refere César Rodrigues, prende-se com a questão da revisão constitucional. Era uma bandeira de Abe, que desejava alterar a lei fundamental pacifista, imposta pelos EUA após o fim da II Guerra Mundial, para que o Japão pudesse reforçar as suas Forças Armadas. Para Suga, esta “não parece ser uma prioridade de monta”.

Yoshihide Suga herda o poder numa altura em que, como todo o mundo, o Japão está a braços com a pandemia de covid-19. Apesar da sua proximidade geográfica à China — onde primeiro surgiu o novo coronavírus —, este país com mais de 125 milhões de habitantes não é dos mais fustigados. Até esta segunda￾ feira, o Japão tinha declarado 75.909 casos positivos e 1453 mortos (mais casos mas menos mortos do que em Portugal).

O novo primeiro-ministro recebe ainda o quebra-cabeças que será organizar os Jogos Olímpicos de Tóquio em 2021 — ou ter de lidar com grandes custos políticos decorrentes de um eventual cancelamento —, adiados este ano em virtude do contexto pandémico. Rodrigues junta a estes dois “desafios imediatos” um terceiro. “Terá também de consolidar a sua posição política, designadamente em relação a opositores dentro do partido.”

Vitória expressiva

Na corrida à liderança do PLD, Suga enfrentou dois adversários: Fumio Kishida, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, e Shigeru Ishiba, ex-ministro da Defesa. Este último é visto como arquirrival partidário de Abe e — diziam as sondagens — o preferido dos japoneses para a che8a do Governo. Suga recolheu 377 votos (70%), num universo de 534 eleitores. Em tempos de pandemia, o PLD, que tem cerca de um milhão de militantes, simplificou o processo de escolha, limitando-o à vontade de 393 deputados e 141 delegados.

Paralelamente aos “desafios imediatos”, Suga terá pela frente “desafios estruturais”, acrescenta o académico português. Entre eles estão “a tarefa de revitalizar a economia e prosseguir com a ‘Abenomics’, a estratégia económica de Shinzo Abe delineada há quase dez anos [que conjugava flexibilização monetária, estímulos fiscais e reformas estruturais] e ainda não totalmente concretizada”.

Outro grande desafio é “o problema demográfico do Japão, marcado pelo rápido envelhecimento e retração da população, que requer respostas políticas de fundo a fim de inverter a tendência atual”.

Suga é casado e pai de três rapazes. Segundo a publicação “Nikkei Asian Review”, tem uma fraqueza por panquecas, vício que tenta compensar com a prática diária de exercício: 100 abdominais e 40 minutos de caminhada de manhã e mais 100 abdominais à noite. No seu gabinete de secretário-geral do Conselho de Ministros, tem um quadro de caligrafia japonesa onde se lê: “Onde há vontade, há um caminho”. Um lema do passado que vai querer que se perpetue no futuro.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui