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Benjamin Netanyahu vai depor em tribunal: de que é acusado? Em que penas incorre? Em que circunstância terá de deixar o poder em Israel?

O primeiro-ministro de Israel começa, esta terça-feira, a responder perante a justiça do seu país: Benjamin Netanyahu é acusado de corrupção e enfrenta penas que podem colocar um ponto final à sua longa, e única, carreira política. “Bibi” também é alvo de um mandado de detenção internacional emitido pelo Tribunal Penal Internacional, por crimes de guerra e contra a humanidade na Faixa de Gaza

O primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu está a ser julgado há mais de quatro anos e meio, mas apenas esta terça-feira começa, finalmente, a prestar depoimento num tribunal de Jerusalém. É a primeira vez em 76 anos de história do Estado judeu que um primeiro-ministro em funções tem de se defender de acusações criminais.

Por que razão vai depor em tribunal?

Benjamin Netanyahu começou por ser implicado numa investigação policial desencadeada em dezembro de 2016. Quase três anos depois, a 21 de novembro de 2019, o procurador-geral Avichai Mandelblit largou uma bomba em público e anunciou que Netanyahu era acusado de fraude, abuso de confiança e aceitação de subornos.

À época, estava em funções o 34.º Governo, o quarto liderado por Netanyahu, que, além de primeiro-ministro, desempenhou funções de ministro da Defesa, da Aliyah e da Absorção, da Economia, da Saúde e das Comunicações nesse executivo. Em face das acusações, foi forçado a renunciar às várias pastas que detinha, conservando apenas a chefia do governo.

O julgamento de Netanyahu começou a 24 de maio de 2020, no Tribunal Distrital de Jerusalém. Os depoimentos das 333 testemunhas arroladas pela acusação começaram a 5 de abril de 2021 e terminaram em julho de 2024. Esta terça-feira, é a vez da defesa começar a apresentar argumentos.

De que é acusado Netanyahu?

O nome do primeiro-ministro surge implicado em três processos por crimes de corrupção.

No primeiro, o “Caso 1000”, Netanyahu e a mulher, Sara, são acusados de recebimento de presentes luxuosos, como champanhe e charutos, no valor de centenas de milhares de dólares, de Arnon Milchan, um produtor de filmes israelita em Hollywood, e do multimilionário australiano James Packer, em troca de favores políticos. Neste caso em concreto, Netanyahu é acusado de fraude e abuso de confiança.

No segundo, o “Caso 2000”, é acusado de negociar com Arnon “Noni” Mozes, editor do popular jornal diário “Yedioth Ahronoth”, uma cobertura mediática favorável. Em troca, o primeiro-ministro promoveria legislação que penalizaria um jornal concorrente, o “Israel Hayom”. Também neste caso, Netanyahu é acusado de fraude e abuso de confiança.

No terceiro, o “Caso 4000”, Netanyahu é acusado da autorização de decisões regulatórias que beneficiaram financeiramente Shaul Elovitch, acionista da gigante de telecomunicações Bezeq Telecom Israel, em troca de cobertura mediática positiva do casal Netanyahu no site de notícias Walla, propriedade de Elovitch. Neste caso, além de fraude e abuso de confiança, Netanyahu também é acusado de recebimento de suborno.

Netanyahu nega todas as acusações, considerando-as parte de uma ‘caça às bruxas’ com motivações políticas.

Porque demorou tanto tempo?

A acusação diz que a defesa tentou propositadamente prolongar o julgamento, pedindo adiamentos repetidamente e prolongando interrogatórios. Já a defesa culpa a acusação de ter chamado muitas testemunhas.

Entre os convocados estão antigos colaboradores próximos de Netanyahu que se voltaram contra ele, um antigo primeiro-ministro (Ehud Olmert), o atual líder da oposição (Yair Lapid) e antigos chefes de segurança e personalidades dos meios de comunicação social.

O documentário “The Bibi Files”, lançado este ano, permite um vislumbre sobre os meandros do caso, com base em vídeos de interrogatórios da polícia.

Além disso, as diligências da Justiça foram ainda afetadas pela pandemia de Covid-19 e pelo ataque mais mortífero da sua história, a 7 de Outubro de 2023, perpetrado pelo Hamas. Em retaliação, a ofensiva militar na Faixa de Gaza colocou Israel em estado de alerta permanente desde então. Pelo menos três testemunhas de acusação morreram, entretanto.

A guerra em Gaza não inviabiliza o julgamento?

Pode conferir-lhe um caráter mais dramático, mas não impede que se desenrole conforme o previsto. Ainda assim, os advogados do primeiro-ministro alegaram que a guerra tem impedido Netanyahu de se preparar adequadamente para prestar declarações e solicitaram o adiamento, mas o tribunal não acedeu ao pedido.

Esta segunda-feira, o tribunal rejeitou um pedido de adiamento do depoimento de Netanyahu feito por 12 membros do gabinete de segurança do Governo de Israel. “Os juízes estão a prejudicar a segurança de Israel”, reagiu o ministro das Finanças, o extremista Bezalel Smotrich, à recusa do tribunal.

A audiência a Netanyahu, que deverá prolongar-se por várias semanas, decorrerá numa sala subterrânea do Tribunal Distrital de Telavive, e não no tribunal de Jerusalém onde o processo decorreu até agora. Esta mudança de local foi recomendada pelos serviços de segurança internos de Israel (Shin Bet) e justificada com razões de segurança.

O tribunal determinou que em cada semana haverá três sessões com Netanyahu. Os seus advogados solicitaram a redução para duas, mas o tribunal recusou, considerando “não encontrar razão imperiosa alguma” para autorizar a redução de dias de comparência de Netanyahu.

O tribunal anuiu, porém, em adiar o início das sessões das 9h para as 10h. A defesa do primeiro-ministro argumentou que “ele trabalha quase todos os dias até altas horas da noite, seja devido a reuniões do governo, briefings de segurança ou à necessidade de comunicar com várias entidades no estrangeiro”. As sessões terminarão às 15h.

Em que tipo de penas incorre Netanyahu?

Se for condenado, enfrenta penas diferenciadas em função dos crimes praticados. “A pena máxima para o crime de suborno é de 10 anos de prisão. Mas na realidade, e tendo em conta que esta não é a forma mais grave de suborno, provavelmente ficar-se-ia apenas por alguns anos”, explica ao Expresso Amir Fuchs, do Instituto de Democracia de Israel.

“Além disso, existe a possibilidade de Netanyahu não ser condenado por suborno, mas sim por abuso de confiança. Esta é uma infração de um máximo de três anos. Nesse caso, existe a possibilidade de ele não ser efetivamente preso, mas isso significaria o fim da sua carreira.” Para o crime de fraude, a moldura penal é igualmente de até três anos de prisão.

Conhecida a sentença, quer Netanyahu, quer o Estado podem recorrer da decisão para o Supremo Tribunal, o que arrastará ainda mais a resolução do caso, previsivelmente durante anos.

Em que circunstância será obrigado a deixar o poder?

“Apenas se for condenado e a fase de recurso estiver concluída”, responde Amir Fuchs. “Tem de haver uma condenação final.” Ou seja, o julgamento não é inibidor que continue em funções como primeiro-ministro.

Netanyahu será ouvido por um coletivo composto por três juízes, presidido por Rivka Friedman-Feldman, de 62 anos. Em 2014, esta juíza condenou o ex-primeiro-ministro Ehud Olmert a seis anos de prisão por recebimento de suborno e obstrução à justiça.

Netanyahu é o israelita que mais tempo serviu como primeiro-ministro.

O polémico plano de reforma judicial pode interferir no julgamento?

Por proposta do Governo, Israel tem em curso um controverso projeto de revisão do sistema judicial. Os defensores dizem que visa retirar poderes aos juízes, que não são eleitos, e devolvê-los ao Parlamento, eleito por sufrágio universal. Os críticos alegam que é um atalho para o autoritarismo e uma ferramenta ao dispor de Netanyahu para se desembaraçar dos seus problemas com a justiça.

No atual contexto, “a forma mais fácil é tentar demitir o procurador-geral e nomear um outro mais conveniente. O procurador-geral [atualmente a jurista Gali Baharav-Miara, com quem o primeiro-ministro tem uma relação conflituosa], é o procurador-chefe e pode encerrar o caso”, explica Amir Fuchs.

“Mas é claro que [destituir a procuradora-geral] originaria um veredito do tribunal de que despedi-la não é razoável. É por isso que um dos componentes do plano de revisão foi eliminar [no Parlamento] a lei da razoabilidade [que possibilita que o Supremo bloqueie decisões do Governo que considere irracionais]. Mas isso falhou [porque o Supremo anulou a deliberação do Parlamento].”

O projeto de revisão judicial originou protestos populares de centenas de milhares de pessoas em Israel. Os manifestantes temem o impacto na qualidade da democracia do país — pela alteração significativa no equilíbrio de poderes — e também a instrumentalização por parte de Netanyahu para benefício próprio.

“É claro que ele também pode tentar nomear juízes para o Supremo Tribunal que, no final, tratará do seu recurso. Mas isso é demasiado improvável”, acrescenta o investigador do Instituto de Democracia de Israel.

Há relação entre este julgamento e o processo no Tribunal Penal Internacional (TPI)?

Não. Um decorre na justiça do país, vai para cinco anos e o outro no âmbito do direito internacional, com origem na guerra em Gaza.

Foi a 21 de novembro passado que o TPI emitiu mandados de detenção contra o primeiro-ministro e o ministro da Defesa de Israel, considerando Netanyahu e Yoav Gallant co-autores de crimes de guerra e contra a humanidade e outros “atos desumanos” contra a população de Gaza.

Israel, que não é membro do TPI, pode alegar que não se sente obrigado a cumprir com as deliberações do tribunal internacional. Mas os dois governantes israelitas acusados ficam sujeitos ao que decidirem os 124 países signatários do Estatuto de Roma, no caso de os visitarem.

(FOTO Mural questiona as verdadeiras prioridades de Benjamin Netanyahu, numa rua de Telavive OREN ROZEN / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de dezembro de 2024. Pode ser consultado aqui

Supremo Tribunal de Israel revoga alteração à lei que originou megamanifestações de protesto

Em causa está legislação que permite ao próprio Supremo supervisionar decisões do Governo e que tinha sido derrubada pelo Parlamento. Deliberação é uma pesada derrota para o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu

O Supremo Tribunal de Israel é composto por 15 juízes MENAHEM KAHANA / AFP / GETTY IMAGES

Contestado, nas ruas de Israel, por não fazer do regresso dos reféns levados pelo Hamas uma prioridade, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu averbou, esta segunda-feira, uma pesada derrota política.

O Supremo Tribunal de Israel anulou legislação aprovada no Parlamento de Israel que limitava a supervisão judicial do Governo. Em causa está a lei da razoabilidade — anulada pelo Parlamento e agora recuperada pelo Supremo —, que possibilita que o Supremo bloqueie decisões do Governo que considere irracionais ou implausíveis.

A deliberação desta segunda-feira do Supremo Tribunal de Israel foi adotada por oito votos, que votam a favor da revogação da lei, enquanto sete votaram pela sua manutenção. A divisão dos 15 juízes que compõem o órgão judicial revela o caráter polémico quer da lei, quer da decisão do Supremo.

Em reação, o ministro da Justiça, Yariv Levin, o arquiteto da reforma judicial, acusou os juízes de “tomar nas suas mãos todas as autoridades que numa democracia estão divididas entre os três ramos do governo”. Acrescentou que a decisão “não nos deterá” e que o governo “continuará a agir com moderação e responsabilidade” durante a guerra.

A ampla e controversa reforma judicial que quer empreender o Governo de Netanyahu, o mais extremista da história de Israel, desencadeou manifestações de protesto de centenas de milhares de pessoas, no ano que agora terminou.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 1 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Israel está a ferro e fogo. Oito perguntas e respostas para melhor entender esta crise

Milhares de israelitas estão nas ruas em cumprimento de uma greve geral que tem na origem um polémico processo de reforma judicial. Para esta segunda-feira à tarde está agendado um protesto de cariz contrário. Há receios de violência nas ruas de Israel

Protesto contra a reforma judicial, a 4 de março de 2023, junto ao centro Azrieli, em Telavive AMIR TERKEL / WIKIMEDIA COMMONS 

Que se passa em Israel?

As ruas de várias cidades estão tomadas por milhares de pessoas que cumprem, esta segunda-feira, um dia de greve geral. Decretada pelo Histadrut, o maior sindicato do país, contagiou outros sindicatos sectários e está a paralisar o país a vários níveis. O aeroporto Ben Gurion, em Telavive, foi encerrado, as universidades anunciaram uma greve por tempo indeterminado, a cadeia de supermercados Big e os restaurantes McDonald’s fecharam portas. São apenas alguns exemplos. Escreve o jornal digital “The Times of Israel” que a embaixada israelita em Nova Iorque também aderiu.

Qual é a origem desta greve?

Este protesto é o mais recente recurso a que recorreu a população de Israel para se manifestar contra um polémico processo legislativo que decorre há mais de três meses — a reforma judicial promovida por Benjamin Netanyahu. Os protestos redobraram de intensidade este fim de semana, em virtude de uma decisão política tomada pelo primeiro-ministro.

Que decisão foi essa?

Domingo à noite, Netanyahu demitiu o ministro da Defesa, Yoav Gallant, membro do seu partido (Likud, direita), horas após este ter defendido publicamente a suspensão da reforma. “A segurança do Estado de Israel sempre foi e sempre será a missão da minha vida”, reagiu Gallant nas redes sociais. Não faltam alertas de que esta polémica demissão pode abrir fendas no aparelho de segurança do país, designadamente levar militares ou outros profissionais de sectores sensíveis a recusarem-se a desempenhar as suas funções. Já esta segunda-feira, o Presidente Isaac Herzog apelou a Netanyahu para que ponha fim “de imediato” à reforma que está a dividir o país.

Como reagiram ‘as ruas’ à demissão?

Os protestos intensificaram-se e poderão resultar em violência. Para esta segunda-feira, às 18h locais (17h em Portugal Continental), em Jerusalém, está marcado um protesto de cariz contrário, de apoio ao primeiro-ministro e à reforma judicial. Segundo o diário “Haaretz”, nas redes sociais grupos de extrema-direita estão a apelar ao uso de “explosivos, armas e facas” no protesto de segunda-feira à tarde.

Por que razão a reforma judicial é polémica?

Basicamente, ameaça a separação de poderes, subordinando o poder judicial ao poder executivo. Por exemplo, o Governo passaria a nomear os juízes do Supremo Tribunal, que é, atualmente, o garante do cumprimento das Leis Básicas de Israel (o correspondente a uma Constituição, que o país não tem) e o único contrapeso ao poder executivo.

Netanyahu insiste nessa reforma por alguma razão especial?

Essencialmente por razões pessoais. O chefe do Executivo está a ser julgado por corrupção, em vários processos. Os processos na justiça não impedem que continue a exercer a função de primeiro-ministro. Está no cargo desde dezembro passado, à frente de uma coligação do Likud com a extrema-direita e os partidos de judeus ultraortodoxos.

Que margem de manobra tem o primeiro-ministro?

As últimas notícias dão conta de que deverá ceder às ruas e anunciar a suspensão do processo de reforma judicial. Mas isso poderá ter custos políticos. O ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, o líder de um partido extremista, cujo resultado nas últimas eleições permitiu que Netanyahu regressasse ao poder, ameaçou demitir-se do Governo. Se Ben-Gvir arrastar com ele o apoio do seu partido a Netanyahu, o Governo pode cair.

Como está a relação de forças no Parlamento?

Netanyahu conta com o apoio de 64 deputados num total de 120. Além do Likud, partido que lidera e que é uma formação histórica desde a fundação de Israel, integram a coligação de governo partidos religiosos ultraortodoxos (Judaísmo Unido da Torá, Shas) e formações de extrema-direita (Sionismo Religioso, Força Judaica e Noam). A atual crise em Israel é também um braço de ferro entre uma população que, dizem as estatísticas, continua a ser maioritariamente laica e um Governo cada vez mais refém do fundamentalismo judaico e sionista.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de março de 2023. Pode ser consultado aqui

Supremo Tribunal de Israel força Netanyahu a despedir ministro. Governo pode não se aguentar

A sombra da instabilidade política regressa a Israel depois de o Supremo Tribunal ter desqualificado um dos ministros e principais aliados de Benjamin Netanyahu. Aryeh Deri lidera um partido religioso e tem em mãos as pastas do Interior, da Saúde e, ao abrigo de um regime de rotação, terá também a das Finanças. Se não sair pelo próprio pé, o primeiro-ministro poderá ter de demiti-lo — e ver o seu Governo cair

Logotipo do Shas WIKIMEDIA COMMONS

Três semanas após tomar posse, o Governo de Israel levou o primeiro abanão. Quarta-feira, o Supremo Tribunal considerou que um dos principais ministros do mais recente Executivo liderado por Benjamin Netanyahu não tem condições para ser governante.

Segundo o órgão judicial, Aryeh Deri não é qualificado para uma posição ministerial, em virtude de condenações passadas na justiça: no ano passado, por fraude fiscal (ficou com pena suspensa após um acordo judicial); em 1999, a três anos de prisão por ter aceitado subornos.

Dos onze juízes do Supremo, dez consideraram a nomeação “extremamente irracional”, pelo que o ministro deve ser afastado. Deri é ministro do Interior e da Saúde. No âmbito de um acordo de rotação com outro partido da coligação, está previsto que, dentro de dois anos, se torne ministro das Finanças (pasta hoje nas mãos de Bezalel Smotrich, líder do partido Sionismo Religioso, de extrema-direita).

Se Deri sair, “não haverá Governo”

Aryeh Deri lidera desde 2013 o Shas, um dos partidos religiosos ultraortodoxos que têm sido leais a Netanyahu e presença regular nos seus governos. O partido considerou a decisão do Supremo política. “O tribunal decidiu hoje que as eleições não fazem sentido”, declarou o Shas, quarta-feira.

Na véspera de o Supremo se pronunciar, outro ministro do Shas, Yaakov Margi, que detém a pasta dos Assuntos Sociais, preveniu para as consequências que o possível afastamento do líder pode ter. Netanyahu “sabe que não haverá Governo”, se Deri for desqualificado do cargo ministerial.

A deliberação judicial foi já criticada pelo ministro… da Justiça, Yariv Levin, que pertence ao Likud (direita), partido do chefe de governo. “Farei o que for necessário para reparar por completo esta flagrante injustiça feita ao rabino Aryeh Deri, ao movimento Shas e à democracia israelita”, disse, em comunicado.

Reforma polémica da justiça

O ministro da Justiça é peça central num plano de reforma do sistema judicial, que está em elaboração e visa conferir ao Governo maior influência sobre as nomeações judiciais e limitar o poder do Supremo para travar legislação.

O Executivo israelita assegura que o plano é necessário para conter juízes elitistas tendenciosos. Para quem se lhe opõe, é uma machadada na independência judicial e no sistema de freios e contrapesos que sustentam o Estado de Direito.

Qualquer reforma judicial promovida pelo Governo de Netanyahu será necessariamente analisada à lupa, dado ele próprio estar a contas com a justiça, acusado de corrupção em três processos.

Netanyahu encostado à parede

O desafio que o primeiro-ministro tem em mãos, a curto prazo, passa por arranjar um papel para Deri no Governo que agrade ao rabino e convença o Supremo. Se Deri não sair pelo próprio pé, Netanyahu poderá ser forçado a demiti-lo.

Num cenário extremo, o fim do apoio do Shas a Netanyahu poderá abrir uma brecha fatal na coligação e, possivelmente, determinará o regresso de Israel à maratona eleitoral que caracterizou os últimos quatro anos no país.

Nas últimas eleições, a 1 de novembro de 2022, o Shas obteve 8,24% dos votos e elegeu 11 deputados (num total de 120), uma bancada essencial à maioria de 64 parlamentares que sustenta o Executivo mais à direita da história de Israel.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de janeiro de 2023. Pode ser consultado aqui

O direito internacional tem forma de julgar os responsáveis pelo massacre de Bucha. “Mas quem apanha Putin?”

Há genocídio em Bucha? E ilegalidades nos ataques russos, em plena guerra? Que tribunais podem julgar os russos? E haverá vontade? O difícil processo de levar os crimes de guerra russos à justiça

Na emoção de um encontro com refugiados ucranianos, durante a sua recente visita à Polónia, Joe Biden não se conteve nas palavras e chamou “carniceiro” a Vladimir Putin. O comentário gerou um efeito de bumerangue e o Presidente dos Estados Unidos foi duramente criticado, inclusive por alguns pares, como o homólogo francês. “Eu não usaria esse tipo de linguagem porque continuo a falar com o Presidente Putin”, disse.

Se o objetivo do diálogo é a obtenção de um cessar-fogo e a retirada das tropas russas da Ucrânia, acrescentou Macron, “não podemos escalar nem em palavras nem em ações”. Este discurso mudou após a divulgação das imagens do massacre de Bucha, nos arredores de Kiev. “Hoje, há sinais muito claros de crimes de guerra”, admitiu agora o presidente francês.

Entre os observadores, a atribuição de responsabilidade a Moscovo é cada vez mais hegemónica. “A Rússia manifesta um completo desprezo pelas normas do direito internacional humanitário a que está obrigada. As Convenções de Genebra de 1949 obrigam a que se faça sempre a distinção entre civis e combatentes”, diz ao Expresso Maria Assunção Vale Pereira, professora de direito internacional. “Por outro lado, é preciso distinguir os objetivos militares dos bens de caráter civil, e os russos têm-no ignorado completamente, têm usado armas proibidas, como minas e munições de dispersão”. Porém, acrescenta, se “o direito tem as respostas, o problema é saber se a Rússia está disposta a aplicar o direito a que se comprometeu.”

Houve genocídio em Bucha?

Na Universidade do Minho, esta especialista leciona também direito internacional humanitário, prevenção de conflitos e manutenção da paz e tribunais internacionais. Na sua ótica, o caso de Bucha dificilmente configura um crime de genocídio, conforme o reclama o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e muitas outras vozes chocadas pela violência das imagens captadas na cidade. “O crime de genocídio tem como aspeto específico o facto de os crimes em causa serem praticados com a intenção de destruir no todo, ou em parte, um grupo étnico, racial, religioso ou nacional. Não estou a ver que haja em Bucha um grupo específico com estas características.”

Mas nada diminui as acusações de que o Kremlin é alvo. Ainda que Moscovo alegue que as imagens de Bucha sejam produto de uma encenação profissional, a “simples” decisão de invadir um Estado soberano faz com que a Rússia venha acumulando ilegalidades desde o primeiro dia da guerra. “Toda esta intervenção é ilícita, porque o direito internacional proíbe o recurso à força”, continua a professora. “A única exceção em que um Estado, por sua iniciativa, pode recorrer à força é em legítima defesa. Ora a Rússia não foi atacada nem havia uma iminência de um ataque armado. Tudo isto é ilícito.”

À luz do direito internacional, a regulação do uso da força faz-se através da Carta das Nações Unidas, que prevê quando é lícito o recurso à força (o chamado jus ad bellum), e através do direito internacional humanitário, que surgiu no século XIX “com o intuito de humanizar a guerra”, explica a professora Maria Assunção Pereira. “Visa sobretudo preservar quem não participa diretamente nas hostilidades e, por outro lado, limitar meios e métodos de combate, atenuando o sofrimento de quem participa e não participa.”

Hoje, a aplicação de todo este ordenamento jurídico faz-se em especial em duas instâncias internacionais, de quem se espera, neste caso concreto, a responsabilização dos mandantes da agressão a um Estado soberano.

Tribunal Internacional de Justiça (TIJ)

É o órgão jurisdicional das Nações Unidas, composto por 15 juízes independentes. São eleitos para mandatos de nove anos pela Assembleia Geral das Nações Unidas e pelo Conselho de Segurança, em votações simultâneas, mas separadas. Para ser eleito, um candidato tem de receber a maioria absoluta dos votos nos dois órgãos.

O TIJ apenas julga litígios entre Estados, ou seja, processos em que um Estado está contra outro Estado. “Neste momento, o TIJ aprecia um caso interposto pela Ucrânia que, inteligentemente, aproveitou a acusação que a Rússia lhe fez de estar a perseguir um crime de genocídio [no leste do país] e, a partir daí, encontrou bases de jurisdição para que o Tribunal pudesse julgar. À partida, o TIJ só julga se houver aceitação da sua jurisdição”, explica a professora. Boicotar as diligências do TIJ passa, por exemplo, por faltar às sessões. A Rússia fê-lo recentemente.

A 16 de março passado, os trabalhos em Haia — onde fica a sede do TIJ — foram uma demonstração de como não decorrem de forma totalmente imune às sensibilidades políticas em redor deste caso. Nesse dia, o TIJ aprovou uma posição exortando a Federação Russa a parar com a guerra e com todas as atividades militares na Ucrânia. A decisão foi aprovada por 13 juízes. Os dois que votaram contra foram os magistrados russo e chinês.

Tribunal Penal Internacional (TPI)

Ao contrário do TIJ, que aprecia casos entre Estados, o TPI só julga indivíduos. Nem a Rússia nem a Ucrânia são signatárias do Estatuto de Roma, que instituiu este tribunal, mas isso não constitui um entrave perante a vontade de ser desencadeada uma ação no TPI.

Isso pode ser feito através de uma remissão do Conselho de Segurança da ONU, o que neste caso não acontecerá em virtude do poder de veto de que a Rússia dispõe. Pode haver também Estados a denunciar a prática de crimes ou pode ser o procurador do TPI, por sua própria iniciativa e em posse de indícios que caibam no âmbito da competência do tribunal, a levar a cabo essa investigação. Se da investigação decorrer a formulação de uma acusação e se esta dor confirmada pelo Juízo de Instrução, é então emitido um mandado de captura internacional.

“Mas quem é que apanha o Putin?”, questiona Maria Assunção Pereira. “O TPI não julga à revelia, é preciso a presença do arguido. Além disso, é um tribunal, não tem forças de polícia. Putin está enfiado num bunker, ninguém sabe bem onde, e nunca mais vai sair da Rússia. É difícil que seja capturado para ser levado a tribunal. Os instrumentos existem, assim pudessem funcionar.”

Da mesma forma que o TPI está dependente das polícias nacionais (que não podem cruzar fronteiras) para executar mandados de detenção, também não tem prisões onde os condenados possam cumprir a sentença. “Mas há acordos celebrados com Estados, como por exemplo com a Holanda”, explica a docente. “Através desses acordos, a Holanda disponibiliza-se a receber um determinado número de pessoas para cumprir pena nas suas prisões.”

Recolher provas para levar a tribunal

Da recolha de provas até à emissão de um mandado de captura podem passar anos. Mas ceder à morosidade da justiça teria o mesmo efeito de uma rendição voluntária ao agressor.

A 28 de fevereiro passado, o procurador do TPI, o britânico Karim A. A. Khan QC, anunciou a abertura de uma investigação oficial aos alegados crimes de guerra russos, com base em denúncias de atrocidades apresentadas por um conjunto de países, atualmente 41. Para que o processo avance, “é preciso que o Estado da nacionalidade dos alegados responsáveis pelos crimes aceitem a jurisdição, o que não é possível, porque são russos e a Rússia não aceita, ou então que o Estado em cujo território tiveram lugar os crimes, a Ucrânia, aceite a jurisdição”, explica Maria Assunção Pereira.

Paralelamente, também a Procuradoria-Geral da Ucrânia está a recolher dados sobre crimes de guerra. Há um site no qual qualquer cidadão pode registar os seus achados. “Desde o início da guerra, registamos mais de 4000 crimes militares, crimes de guerra”, disse esta segunda-feira a procuradora-geral do país. O objetivo da iniciativa é documentar factos para poder apresentar provas diante dos tribunais ucranianos e também do TPI.

A procuradora Iryna Venediktova esclareceu que ainda não foram verificadas as denúncias referentes a Bucha (execuções sumárias e valas comuns) e Mariupol. Nesta cidade do sudeste da Ucrânia, onde se estima que 90% dos edifícios tenham sido destruídos, foi bombardeado um teatro onde estava instalado o maior abrigo antiaéreo da cidade e onde estavam refugiadas centenas de pessoas. No seu exterior, uma palavra escrita em russo, visível a partir do céu, alertava para a presença de civis no local: dizia “crianças”, mas não deteve o fogo russo.

Apesar de não ser signatária do TPI, a Ucrânia reagiu à ameaça russa à sua soberania e adaptou a sua posição em relação ao TPI. Através de uma declaração emitida em 2015, a Ucrânia passou a reconhecer a jurisdição do TPI em matéria de “alegados crimes” praticados pela Rússia no seu território desde 20 de fevereiro de 2014.

Neste dia, mais de 50 manifestantes antigoverno foram mortos na Praça Maidan, em Kiev, tomada pelo movimento Euromaidan, que defendia a aproximação da Ucrânia à União Europeia. Este massacre atribuído à polícia ucraniana precipitou a queda do governo pró-russo, a invasão e posterior anexação russa da Península da Crimeia e constituiu o tiro inicial para a guerra separatista no leste da Ucrânia.

As memórias (e o exemplo) de Nuremberga

A forma como, após a II Guerra Mundial, oficiais nazis e guardas dos campos de concentração conseguiram escapar aos julgamentos de Nuremberga e esconderem-se em múltiplos países é hoje apontado como uma vulnerabilidade que se pode repetir.

Recorda Maria Assunção Pereira: “Depois de Nuremberga, foram apontadas várias deficiências a esse tribunal. Logo em 1948, a Assembleia Geral [da ONU] convidou a Comissão de Direito Internacional, que era um órgão subsidiário, a ponderar o interesse da criação de um tribunal de natureza penal e de caráter permanente. Mas, apesar de tudo o que tinha sido reconhecido em Nuremberga, houve, por um lado, a Guerra Fria (que levou a que não houvesse entendimento) e, por outro lado, a ideia (enfatizada no princípio da proibição do uso da força, na Carta das Nações Unidas) de que qualquer tribunal que fosse criado tinha que ter competência para julgar o crime de agressão. Mas como isso tocava com as competências do Conselho de Segurança também não se conseguiu fazer nada. Foi preciso esperar pelo fim da Guerra Fria”.

A trágica década de 1990 daria motivos suficientes para a reorganização da justiça internacional. Em 1993, foi estabelecido, através de uma resolução do Conselho de Segurança, o Tribunal Penal Internacional para a Ex-Jugoslávia, com competência para julgar os crimes mais graves aí ocorridos. Com o mesmo espírito, foi criado, no ano seguinte, o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda. Só em 1998 é que foi adotado o Estatuto de Roma que instituiu o Tribunal Penal Internacional com os contornos hoje em vigor.

Existe o direito, existem instituições, mas pode faltar vontade política em que se faça justiça. Para além da Rússia, até países como os Estados Unidos, a China e Israel não assinaram ainda o Estatuto de Roma. “O TPI só pode julgar se considerar que não há vontade ou capacidade dos Estados para julgarem”, conclui Maria Assunção Pereira.

“Parece que alguém está a dizer: ‘Os meus não podem ser julgados porque mesmo no meu país não há garantias de que sejam julgados devidamente’. Nos Estados Unidos, por exemplo, há várias situações de indivíduos acusados de crimes de guerra a serem julgados em comissões administrativas. Isso não é um tribunal. Então no mandato de Donald Trump, foi uma hostilidade absolutamente paranóica contra o TPI.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de abril de 2022. Pode ser consultado aqui