O Médio Oriente deixou de ser a região mais crítica para os cristãos. Nos últimos dois anos, a perseguição intensificou-se na Ásia Meridional e Oriental, denuncia o último relatório da fundação Ajuda à Igreja que Sofre
O pesar com que, tradicionalmente, os cristãos celebram a morte de Jesus Cristo ultrapassou este ano as fronteiras do simbólico. No Sri Lanka, a 21 de abril — era Domingo de Páscoa —, três ataques contra outras tantas igrejas mataram 258 fiéis e feriram mais de 500. Reivindicados pelos extremistas do Daesh — o autodenominado “Estado Islâmico”, que estava em perda no Iraque e na Síria —, aqueles atentados provavam que, naquele país de maioria budista, a estratégia de ataque terrorista tinha como alvo primordial a minoria cristã.
Nos últimos dois anos, esta chacina cingalesa foi, de longe, a pior atrocidade cometida contra cristãos em todo o mundo. Outra ataque sangrento aconteceu nas Filipinas — país maioritariamente católico —, durante a eucaristia dominical de 27 de janeiro último: 22 pessoas morreram e mais de 100 ficaram feridas após a explosão de duas bombas junto à Catedral de Nossa Senhora do Monte Carmelo, na ilha de Jolo. O atentado foi também reivindicado pelo Daesh.
Ataques como os de Sri Lanka e Filipinas contribuem para que no último relatório “Perseguidos e Esquecidos?” da fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) — divulgado esta semana — os alertas mais preocupantes em matéria de perseguição aos cristãos soem na região da Ásia Meridional e Oriental, e não mais do Médio Oriente, como até há dois anos.
O perigo do nacionalismo
A oriente, paralelamente ao “extremismo islâmico”, duas outras frentes contribuem para episódios de opressão aos cristãos: “o nacionalismo populista” e “regimes autoritários”. Em países como a Índia ou Myanmar (antiga Birmânia), lê-se no relatório, há uma unidade cada vez maior “entre grupos religiosos nacionalistas e governos”, que colocam as minorias religiosas na mira da intolerância.
Há cerca de duas semanas, na cidade indiana de Guwahati, membros de uma organização de camponeses saíram à rua em protesto contra uma proposta de revisão da Lei da Cidadania de 2016 que prevê que imigrantes hindus, sikhs, budistas e cristãos, entre outros, oriundos do Afeganistão, Bangladesh e Paquistão passem a ser elegíveis para obter a cidadania indiana.
Na “maior democracia do mundo”, onde o nacionalismo hindu impulsiona a perseguição a minorias religiosas, registaram-se mais de 1000 ataques contra cristãos entre o início de 2017 e finais de março de 2019. Em resposta ao extremismo… foram encerradas mais de 100 igrejas.
No vizinho Paquistão — onde os cristãos são 1,5% de uma população de 200 milhões —, a Constituição consagra a liberdade religiosa. Há igrejas e escolas, hospitais e instituições cristãs que atendem todos sem exceção, mas os preconceitos e as perceções negativas em relação a quem não é muçulmano incentivam ao ódio.
“Os empregos considerados menores, sujos e humilhantes, são frequentemente ocupados por cristãos”, refere o relatório da AIS. “Os trabalhadores cristãos constituem uma fatia muito elevada da força de trabalho nos esgotos e na limpeza de estradas.”
Médio Oriente em contagem decrescente
O agravamento da situação dos cristãos no Oriente coincide com uma melhoria na conturbada região do Médio Oriente, onde o êxodo contínuo de cristãos para longe das terras onde sempre viveram assemelha-se, nas palavras do Arcebispo de Alepo (Síria), o maronita Joseph Tobji, a “uma ferida que sangra”.
Declarada em 2017, a derrota do Daesh contribuiu para diminuir consideravelmente a pressão sobre as comunidades cristãs na Síria e no Iraque. Ainda assim, realça o relatório, na região onde a religião cristã nasceu, “a contagem decrescente para o desaparecimento do Cristianismo parece imparável”.
Na Síria, o único país onde ainda é possível escutar o aramaico — a língua falada por Jesus —, os cristãos eram cerca de 1,5 milhões em 2011, quando começou a revolta popular contra Bashar al-Assad, e que evoluiria no sentido da guerra; hoje, não serão mais do que 500 mil. A 11 de julho passado, a explosão de um carro armadilhado junto a uma igreja em Qamishli, no nordeste, mostra que a trégua não é total.
No Iraque, a fuga dos cristãos é mais antiga. Estima-se que por alturas da invasão norte-americana, em 2003, os cristãos eram cerca de 1,5 milhões e que, ainda antes do advento do Daesh, em 2014, já tinham caído para menos de 500 mil. Hoje, os cristãos iraquianos poderão ser menos de 150 mil. “No prazo de uma geração, a população cristã do Iraque teve um declínio de mais de 90%”, constata o relatório.
Os detestados ‘adoradores da cruz’
Quem foi resiliente e ficou vive temeroso de que “uma nova versão do Daesh” possa emergir. Desde a cidade assíria de Bartella, no norte do Iraque, o padre Behnam Benoka é testemunha de uma hostilidade persistente contra os cristãos por parte das milícias shabak (muçulmanos xiitas) numa pressão contínua “para forçar os cristãos a abandonarem as nossas terras”, diz o clérigo. Os cristãos são protegidos por militares, há boicotes às lojas geridas por cristãos e altifalantes nas suas áreas de residência que transmitem as orações nas mesquitas.
“Sobretudo no que diz respeito ao Iraque”, diz o relatório, “não é exagerado dizer que o Daesh pode ter perdido a batalha da supremacia militar no Médio Oriente, mas em partes da região eles vão a caminho da vitória por conseguirem extinguir os muito detestados ‘adoradores da cruz’, os cristãos.”
Papa atento e atuante
Atento ao drama das minorias cristãs, o Papa Francisco realizou, este ano, duas visitas pastorais especialmente relevantes. Em setembro, esteve em Madagáscar, um país maioritariamente cristão onde, segundo denúncias do Cardeal Désiré Tsarahazana, o perigo vem do exterior, com planos de construção de 2600 mesquitas no país. “É uma invasão, com dinheiro de países do Golfo e do Paquistão. Eles compram as pessoas.”
Meio ano antes, o Papa tinha estado em Marrocos, onde se estima que vivam cerca de 25 mil cristãos — a esmagadora maioria africanos subsarianos —, entre 35 milhões de muçulmanos. A 19 de junho de 2018, o então ministro da Justiça, Mohamed Aujjar, afirmou na televisão que não existem “cidadãos cristãos” naquele país muçulmano. Não foi exagero do governante: os cristãos marroquinos não são reconhecidos pelo Estado.
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Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui


