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A escalada que (quase) todos tentam evitar

Teerão desferiu o primeiro ataque assumido contra o território do Estado judaico. Telavive já decidiu que vai retaliar

O aparatoso ataque da República Islâmica do Irão contra o Estado de Israel, na noite de sábado, fez lembrar os dias da Guerra do Golfo de 1991, a primeira a ser transmitido em direto pela televisão. Fundada 10 anos antes, a emissora americana CNN apostou numa cobertura inédita dessa guerra.

Sábado passado, após ter sido noticiado que o Irão lançara um enxame de 330 drones e mísseis balísticos e de cruzeiro na direção de Israel, o mundo colou-se à televisão ‘à espera de os ver chegar’. “Assistimos a isso na Guerra do Golfo, quando os mísseis caíam em Bagdade. Agora estávamos à espera que chegassem. Quase que havia notícias sobre os países que atravessavam…”, ilustra, em conversa com o Expresso, José Palmeira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho.

A investida do Irão — que Teerão afirma ter sido “limitada”, visando apenas alvos militares e realizada em retaliação pelo ataque de 1 de abril contra o seu consulado em Damasco, atribuído a Israel — abriu porta a novo conflito. O gabinete de guerra israelita já decidiu retaliar, não havendo pistas sobre em que moldes. Teerão promete reagir de imediato. Estados Unidos e União Europeia tentam dissuadir Israel, para que a situação não se agrave ainda mais. Em paralelo, procuram isolar a República Islâmica, adotando novas sanções.

IRÃO 
Que motivação para atacar?

É percetível uma componente interna. “O Governo dos ayatollahs está muito desacreditado, há uma crise económica, a população vive mal e a polícia dos costumes tem tido atitudes radicais”, explica Palmeira. “Uma das formas de o regime se credibilizar e ter união interna é criar inimigos externos.” Em paralelo, há objetivos regionais. O gigante xiita do Médio Oriente quer ser uma potência hegemónica e “ser temido por todos os outros”. Isso justifica o apoio ao “eixo da resistência”, que passa por aliados regionais xiitas (como o libanês Hezbollah e os iemenitas hutis) e sunitas (como o palestiniano Hamas).

Teerão quis demonstrar poder. “O Irão mostra força quando vende drones à Federação Russa, os quais têm tido papel relevante na guerra na Ucrânia. Revela capacidade tecnológica e ganha dinheiro de que precisa, porque os vende a bom preço.” Até à guerra na Ucrânia, o Irão era o país mais sancionado do mundo.

O ataque foi de grande espetacularidade, mas não provocou grandes danos em Israel, que diz ter intercetado 99% dos projéteis. “O Irão não atacou com mais força porque temia uma retaliação. Quer ter capacidade nuclear, se é que já não tem. Sabe-se onde o urânio está a ser enriquecido e essas localizações seriam o primeiro alvo de Israel, tal como as fábricas de drones”, acrescenta o docente da Universidade do Minho. “O Irão não quis provocar ao ponto de Israel — se tivesse sofrido mortos e feridos — ter de responder obrigatoriamente para não ficar numa situação de fraqueza.”

ISRAEL 
E agora, Estados Unidos?

O ataque aconteceu numa altura em que a aliança histórica entre Israel e os Estados Unidos revelava desgaste por causa da operação militar na Faixa de Gaza. Mas cedo ficou claro que as forças americanas estacionadas no Médio Oriente estariam ao lado do Estado judaico. “Israel é a única democracia da zona, o que é, para os Estados Unidos e o Ocidente, um elemento relevante a preservar”, comenta Palmeira, “assim como a sobrevivência do Estado de Israel depende, em grande medida, do apoio ocidental e dos Estados Unidos.”

Por outro lado, um conflito entre Israel e o Irão arrisca-se a ter consequências económicas globais, como revela a reunião dos líderes do G7, no próprio dia, de onde saiu um alerta de uma “escalada regional incontrolável”. Mas, realça o académico, “uma coisa é o interesse de Israel, outra é o de Benjamin Netanyahu, acossado internamente”, por causa do 7 de outubro e dos reféns, “e externamente, porque a intervenção em Gaza provocou uma catástrofe humanitária”, diz. “Está a lutar pela sua sobrevivência política e acha que quanto mais duro for, mais isso o favorece.”

“O Irão não atacou Israel com mais força porque temia uma retaliação, pois quer ter capacidade nuclear”, diz o perito José Palmeira

JORDÂNIA 
Porquê ajudar Israel?

O reino hachemita está exposto à conflitualidade no Médio Oriente, desde logo pela grande quantidade de palestinianos que vive no país. Amã tem sido palco de manifestações contra a guerra em Gaza e, já no pós-7 de outubro, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Ayman Safadi, afirmou que “o acordo de paz entre Israel e a Jordânia [de 1994] está na prateleira e a acumular poeira”.

Durante o ataque do Irão a Israel, o reino não hesitou. Caças da Força Aérea jordana abateram drones iranianos em apoio de Israel. Segundo o Presidente francês, Emmanuel Macron, França — que tem tropas na Jordânia — neutralizou projéteis iranianos a pedido de Amã. “A Jordânia tem tido uma atitude construtiva, que começa a mudar a partir do momento em que o Irão surge como ameaça e apoia o Hezbollah no Líbano e grupos jiadistas que estão na Síria e no Iraque. Isto também ameaça a Jordânia. Há receio de um Irão hegemónico, sobretudo a partir do momento em que tenha armas nucleares.”

Recentemente, o comandante do grupo Kataib Hezbollah, uma das maiores milícias pró-iranianas no Iraque, afirmou-se pronto para armar e treinar 12 mil jordanos para se juntarem à frente de resistência anti-Israel.

ARÁBIA SAUDITA 
Equidistante?

Ataques como o do Irão a Israel têm o potencial de deixar o Médio Oriente “à beira do abismo”, como disse o secretário-geral da ONU, António Guterres. Isso é um grande revés nos planos de modernização da Arábia Saudita e de outras monarquias do Golfo que se aproximavam de Israel. “O Irão tende a ficar isolado, porque os vizinhos querem paz. Vivem em grande medida do turismo, da atração de figuras como Cristiano Ronaldo. Procuram estabilidade e querem ser vistos do exterior como países onde há qualidade de vida”, comenta Palmeira.

“Ao contrário de outros países, como o Irão, que têm capacidade militar, a Arábia Saudita quer ser forte no plano económico.” Vários países do Golfo “estão a fazer a transição de uma economia assente no petróleo para energias limpas e têm consciência de que esse é o futuro. Não lhes interessa crises económicas nem a desestabilização da zona. Daí um conjunto de países sunitas ter boas relações com Israel, o que isola o Irão, que consideram um perturbador regional.”

Após o ataque do Irão, o Ministério dos Negócios Estrangeiros saudita emitiu um comunicado lacónico, expressando preocupação perante a “escalada militar” e pedindo a “todas as partes que exerçam a máxima contenção”. Se é verdade que Riade desbravava um caminho de aproximação a Israel, a 10 de março de 2023 fez as pazes com o Irão, após sete anos de relações congeladas.

O contexto força Riade a jogar “um papel quase dúbio”, conclui Palmeira. “Interessa-lhe que a relação com o Irão seja pacificada, mas também, caso o Irão revele apetência para maior escalada, alargar o âmbito das suas alianças, incluindo com Israel. A Arábia Saudita procura não alienar a relação com o Irão e equilibrar a ascensão do Irão com alianças com outros países da região.”

(MAPA MIDDLE EAST POLICY COUNCIL)

RELACIONADO: As pistas deixadas por um ataque arriscado (mas contido) sobre a relação de forças no Médio Oriente

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Israel atacou o Irão, mas a resposta à chuva de mísseis e drones que sofreu “virá mais tarde”

A aguardada retaliação de Israel ao ataque direto do Irão ao seu território aconteceu esta sexta-feira através de um ataque desferido a partir de território iraniano. Sem provocar grandes danos, Telavive mostrou que consegue obter informações e ter capacidade operacional para atacar infraestruturas sensíveis iranianas. Especialistas ouvidos pelo Expresso ajudam a perceber como foi possível, vaticinam o que se segue e explicam por que razão enquanto Benjamin Netanyahu continuar no poder em Israel, Telavive e Teerão estarão mais próximo de uma confrontação direta

Seis dias. Foi quanto demorou Israel a responder à chuva de 300 drones e mísseis lançados desde o Irão contra o seu território. Esta sexta-feira, o mundo acordou com a notícia de um ataque a território iraniano prontamente atribuído a Israel e temeu o início de uma nova guerra.

À semelhança do ataque iraniano de sábado passado, a ofensiva israelita foi contida ao nível dos danos que procurou infligir. Mas a dinâmica de ataque e contra-ataque que toma Telavive e Teerão pode não ficar por aqui.

“Devemos assumir que esta está longe de ser a resposta definitiva de Israel ao ataque militar direto por parte do Irão, no fim de semana passado”, diz ao Expresso Luís Tomé, professor de Relações Internacionais na Universidade Autónoma de Lisboa.

“Esta ação faz parte de uma resposta que foi concebida para, por um lado, respeitar os compromissos que Israel terá assumido perante os Estados Unidos e outros países europeus e vizinhos, nomeadamente países árabes de não retaliar de forma militar direta contra o Irão.”

Por outro lado, “há um aviso ao Irão no sentido de Israel mostrar não só que teve capacidade para se defender daquelas centenas de mísseis e drones lançados, mas também que é capaz, a partir de dentro do Irão, de obter informações e ter capacidade operacional para atacar infraestruturas sensíveis bem no centro do país.”

Teerão tentou minimizar o ataque admitindo ter sido realizado por “mini-drones”. Ao Expresso, o iraniano Mohammad Eslami, especialista em tecnologias militares emergentes, revela que os aparelhos usados em ataques às cidades iranianas de Isfahan e de Tabriz foram drones quadricópteros. Neutralizados pelo sistema de defesa iraniano, “foram lançados a partir de dentro do Irão”, acrescenta.

Estes drones “têm um alcance entre cinco e dez quilómetros” e “uma ogiva explosiva muito pequena, o suficiente para fazer explodir um carro ou um veículo blindado”. Transportam “pequenas granadas” e, se forem um pouco maiores, “podem carregar um número maior de granadas e, às vezes, uma arma para atirar em alvos humanos”, detalha Eslami, professor de Relações Internacionais na Universidade do Minho.

Sem que Telavive e Teerão falem abertamente dos contornos da operação, há notícias que dão conta que Israel terá também disparado mísseis desde o exterior do Irão a partir de caças.

“Não é claro se a intenção de Israel foi fazer uma operação real ou apenas identificar o tipo de defesa aérea e as suas localizações”, acrescenta. “Na verdade, esta não foi uma resposta de Israel, foi um ato subversivo. Confirma a ideia de que agentes israelitas estão a trabalhar ativamente no Irão.”

As autoridades iranianas reconheceram que Isfahan foi atacada por três drones. Não foi a primeira vez que esta localidade, no centro do Irão, foi um alvo de Israel. A cidade abriga património mundial da humanidade reconhecido pela Unesco mas também estruturas onde o Irão desenvolve o seu programa nuclear, uma grande base da força aérea e fábricas associadas nomeadamente à produção de drones.

“Até que ponto este tipo de operações pode causar danos?”, questiona Eslami. “Muito baixo. Há alguns anos, Israel também atacou um local de enriquecimento de urânio em Isfahan usando estes quadricópteros. O dano foi muito pequeno”, diz.

“A nível tático, Israel tem vantagem devido à forte capacidade de obter informações e às tecnologias de ponta. Mas a nível estratégico, é muito frágil e vulnerável contra o Irão. Por isso, uma guerra é algo a que Israel não se pode permitir.”

Sabotagem, ciberataques e assassínios de cientistas

Israel tem um longo histórico de ataques clandestinos dentro do Irão. Luís Tomé recorda que “há muito tempo que Israel vem desenvolvendo uma guerra indireta, híbrida contra o Irão”, que passa por atos de sabotagem, ciberataques e assassinatos de cientistas da área do nuclear.

Com este ataque, Israel passa a mensagem que “conhece as instalações nucleares, sabe onde elas se localizam e que pode fazer ataques a partir de dentro do Irão contra infraestruturas sensíveis”, continua o professor da Universidade Autónoma.

“A resposta de Israel àquilo que aconteceu no dia 13 de abril [ataque do Irão] virá mais tarde. Israel está a tentar congregar uma coligação de vontades dos Estados Unidos e de países vizinhos para fazer uma retaliação mais massiva contra infraestruturas nucleares, que são uma ameaça não apenas para Israel, mas também para países árabes da região, designadamente a Arábia Saudita.”

Luís Tomé acredita que a resposta de Israel ao mega ataque iraniano de 13 de abril vai acontecer mesmo sem uma nova provocação do Irão. “Benjamin Netanyahu tem esse interesse pessoal, porque a continuação do conflito na Faixa de Gaza, mas sobretudo a escalada, até certo ponto controlada, do conflito com o Irão, é uma forma do primeiro-ministro de Israel sobreviver politicamente e escapar a algum tipo de pressão que se estava a acentuar muito, interna e externamente”, diz.

Por outro lado, “Israel não pode deixar de assumir uma resposta de facto ao que sofreu. É verdade que o Irão, há décadas, vem fazendo ataques contra Israel, mas ataques indiretos, no campo da guerra híbrida, através dos seus proxies e também de ciberataques. Sofrendo pela primeira vez um ataque militar direto a partir do Irão, Israel não pode deixar de responder e de uma forma assumida porque todos estes ataques que Israel vem fazendo em regra nunca são assumidos.”

No curto prazo, “o enfrentamento direto terá terminado aqui, mas o indireto vai continuar”, defende ao Expresso, José Palmeira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho.

“Os proxies iranianos que estão mais próximos do território israelita — seja o Hezbollah libanês, a Jihad Islâmica na Síria e no Iraque, sejam os hutis do Iémen — podem continuar a operar. O próprio Hamas [na Faixa de Gaza] — apesar de ser praticamente impossível, hoje, fazer-lhe chegar armamento — não deixará de seguir orientações iranianas nalguns aspetos”.

Como tem sido prática, Israel não reivindicou o ataque desta sexta-feira. A única indicação, a nível oficial, de que terá estado por trás desta ação — para além da declaração de Washington de que “foi informado” — foi feita pelo ministro da Segurança Nacional, o ultra-ortodoxo radical Itamar Ben-Gvir, que escreveu na rede social X (antigo Twitter): “Fraco”.

De pronto, Yair Lapid, o líder da oposição em Israel, reagiu. “Nunca antes um ministro tinha causado danos tão graves à segurança do país, à sua imagem e ao seu estatuto internacional. Num tweet imperdoável de uma só palavra, Ben-Gvir conseguiu escarnecer e envergonhar Israel.”

‘Não fomos nós’

José Palmeira explica porque razão Israel nunca assume os ataques que desfere, como aconteceu também com o bombardeamento ao consulado iraniano em Damasco, a 1 de abril. “Israel nunca assume para se defender ao nível do direito internacional. Fa-lo para se defender perante instâncias internacionais, como o Tribunal Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional. Se houver uma acusação nesses tribunais, pode dizer: ‘não fomos nós’.”

Para o Irão, o facto de Israel não ter reivindicado o ataque pode ser útil para alimentar uma narrativa interna. “Permite ao Irão dizer à sua opinião pública que não houve um ataque direto, logo não tem de retaliar”, continua Palmeira. “Mas ao mesmo tempo, para consumo interno, ter o inimigo dentro do próprio território, não o detetar e não evitar que isto aconteça não deixa de ser muito preocupante.”

Com uma área de cerca de 1.648.000 km², o Irão é 75 vezes maior do que Israel (22.145 km²). Igualmente, a República Islâmica faz fronteira (terrestre e naval) com 13 Estados soberanos: Iraque, Turquia, Azerbaijão, Arménia, Turquemenistão, Afeganistão, Paquistão, Kuwait, Arábia Saudita, Bahrain, Catar, Emirados Árabes Unidos e Omã. “Não é fácil, em termos de segurança, controlar um país tão grande. Através de alguma fronteira, pode entrar alguma coisa para dentro do território iraniano”, acrescenta Palmeira.

A identificação de quem, no Irão, foi cúmplice de Israel está, de momento, no domínio da especulação. No país, há vários tipos de oposição interna ao regime, desde logo membros de fações de uma linha democrática e secular que rejeitam a revolução islâmica e que, frequentemente, são detidos, reprimidos e mortos pelas forças do regime.

“Sabemos que os próprios ayatollahs têm oposição interna. Mas não faria muito sentido que essa oposição atuasse sobre o arsenal nuclear ou sobre uma base aérea”, comenta José Palmeira. “Não seria muito racional, mas fica sempre a dúvida.”

Inimigos e interesses comuns

Acrescenta Luís Tomé. “Há informações que indicam que agentes estrangeiros, designadamente pró-israelitas, operam juntamente com alguns grupos separatistas. Os iranianos gostam de vincar a tese, que me parece pouco credível, de que há uma relação e uma articulação de inimigos comuns, como israelitas e o Daesh. Mas obviamente que operacionais estrangeiros a atuar dentro do Irão têm de ter apoios diversos que não podem resultar apenas do pagamento a locais. Há interesses coincidentes desde logo na hostilidade ao regime iraniano.”

Num cenário de confronto direto entre Teerão e Telavive, “Israel tem a capacidade de atacar o Irão, mas não de vencer uma guerra contra o Irão”, diz Eslami. “As infraestruturas ofensivas do Irão estão distribuídas por todo o país, não é possível atingi-las a todas. Já Israel é um território pequeno, pelo que uma guerra longa e erosiva resultará na destruição de Israel. Israel pode, sem dúvida, atacar o Irão, mas não pode defender-se contra os ataques em massa iranianos durante muito tempo.”

Com Benjamin Netanyahu no poder em Israel, a eventualidade de uma confrontação direta entre os dois países é maior. “Há muito tempo que defendo que, no caso da Ucrânia, só iríamos começar a conhecer um desfecho próximo ou depois das eleições nos Estados Unidos”, conclui Luís Tomé.

“E a partir de 7 de outubro [ataque do Hamas] digo a mesma coisa” em relação à guerra em Gaza e à escalada da situação no Médio Oriente. “Netanyahu, como tem problemas com Joe Biden que não tinha com Donald Trump, vai fazer o possível para esticar a conflitualidade até que — sonha ele — Trump volte. Ele acha que se sobreviver no poder até ao regresso de Trump, terá outra margem de manobra para poder fazer algumas coisas, designadamente contra o Irão. Não me parece que isto vá acalmar nos próximos tempos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui

Resposta do Irão ao ataque israelita ao consulado de Damasco “é inevitável”, avisa líder do Hezbollah

Hassan Nasrallah discursou esta sexta-feira, numa cerimónia alusiva ao Dia de Jerusalém, nos subúrbios de Beirute. O líder do Hezbollah defendeu que “a loucura cometida por Netanyahu ao atacar o consulado iraniano na Síria levará, esperançosamente, ao fim desta batalha e a uma saída vitoriosa”. Nasrallah disse que esta agressão marca um “antes” e um “depois” na região e que a frente libanesa está aberta a participar num ataque a Israel

Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah WIKIMEDIA COMMONS

Um pouco por todo o mundo muçulmano, assinalou-se, esta sexta-feira, o Dia de Jerusalém (Al-Quds, em árabe), um evento anual que visa expressar solidariedade com o povo palestiniano. Foi instituído há 45 anos pelo então Líder Supremo do Irão e fundador da República Islâmica, ayatollah Ruhollah Khomeini.

Este ano, o dia — sempre agendado para a última sexta-feira antes do fim do Ramadão — celebrou-se com tensão acrescida já que teve lugar escassos quatro dias após um ataque que voltou a abalar o Médio Oriente: o bombardeamento ao consulado iraniano em Damasco, na Síria, atribuído a Israel.

“A resposta do Irão não respeitará um limite de tempo, os iranianos estão a pensar e a aprender, e certamente responderão”, alertou, esta sexta-feira o líder do grupo xiita libanês, Hassan Nasrallah, num discurso alusivo ao Dia de Jerusalém.

“Estai certos que a resposta do Irão ao bombardeamento do seu consulado em Damasco é inevitável”

Nasrallah disse que o ataque foi um “acontecimento significativo, que criou um ‘antes’ e um ‘depois’ em termos de consequências”.

“Em Israel, eles entraram em pânico e estão a abastecer-se de comida e água, não só no norte [próximo da fronteira com o Líbano], mas também no centro. O momento em que a resposta vai chegar depende da decisão do Líder Supremo [do Irão], e ela virá”, afirmou, numa intervenção transmitida por vídeo, numa cerimónia realizada no bairro de Dahiyeh, a sul de Beirute, capital do Líbano.

“A frente do Líbano não será fechada porque está altamente ligada a Gaza, esta é uma decisão firme”, ameaçou Nasrallah. “Estamos a travar uma batalha que escreverá a história da região.”

“Ainda não usamos as nossas principais armas”

No bombardeamento de Damasco, em que foram mortas onze pessoas, entre as quais sete membros dos Guardas da Revolução Iraniana, uma das vítimas foi o general iraniano Mohammad Reza Zahedi que “contribuiu para o desenvolvimento da resistência no Líbano”, realçou Nasrallah.

O líder do Hezbollah disse que a relação do Hezbollah com o Irão é “uma fonte de orgulho. Aqueles que devem sentir vergonha são os que procuram normalizar os laços com Israel”.

O Dia de Jerusalém aconteceu a dois dias de se assinalar meio ano da operação “Tempestade Al-Aqsa”, como o Hamas batizou o ataque a Israel, a 7 de outubro. Nasrallah considerou a investida “um acontecimento histórico que representou uma grande ameaça à sobrevivência da entidade sionista”.

“Alguns estão em negação em relação ao facto de Israel ter sido derrotado”, disse Nasrallah, acrescentando que, em meio ano de guerra, o Governo de Benjamin Netanyahu não foi capaz nem de destruir o Hamas nem de libertar os reféns.

“As atrocidades israelitas em Gaza são o resultado do fracasso e da falta de opções”

O líder do Hezbollah vaticinou que Netanyahu não tem opção que não seja acabar com a guerra, o que para ele será uma derrota. “A loucura cometida por Netanyahu ao atacar o consulado iraniano na Síria levará, esperançosamente, ao fim desta batalha e a uma saída vitoriosa.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui

Depois de Líbano, Síria e Iraque, também o Iémen já foi arrastado para a guerra na Faixa de Gaza

Nove anos de bombardeamentos da Arábia Saudita não quebraram os hutis. Ao estilo de piratas modernos, armados até aos dentes, os rebeldes do Iémen transformaram o Mar Vermelho num campo de batalha, em nome da solidariedade com os palestinianos. Após serem bombardeados pelos Estados Unidos, esta segunda-feira alvejaram com um míssil um navio de carga americano. Para lá do impacto regional, esta escalada é uma ameaça ao processo de paz que vinha a ganhar forma no Iémen

INFOGRAFIA DE JAIME FIGUEIREDO

A guerra na Faixa de Gaza, que cumpriu 100 dias no domingo, já pôs em ebulição países além de Israel e dos dois territórios palestinianos (Cisjordânia e Gaza). No sul do Líbano, o movimento xiita Hezbollah alimenta confrontos diários com tropas israelitas concentradas no norte do Estado judeu.

No Iraque, aumentaram as hostilidades entre milícias apoiadas pelo Irão e tropas dos Estados Unidos no país. Na Síria, membros dos Guardas da Revolução do Irão foram assassinados em bombardeamentos atribuídos a Israel. Mais recentemente, a guerra transbordou para o Mar Vermelho e inundou o Iémen.

Desde que Israel começou a bombardear a Faixa de Gaza, em retaliação pelo ataque do Hamas de 7 de outubro, os hutis do Iémen declararam apoio aos palestinianos, em palavras e ações. Este grupo rebelde — que tomou o poder pela força em 2014 e controla, atualmente, a costa ocidental do país — fê-lo direcionando o seu poder de fogo para navios em trânsito pelo Mar Vermelho, uma via de navegação crucial para o comércio mundial.

Ao estilo de piratas dos tempos modernos, equipados com drones e vários tipos de mísseis, os hutis escolheram como alvo embarcações que seguiam de e para portos de Israel. A ação mais espetacular ocorreu a 19 de novembro, quando sequestraram o cargueiro Galaxy Leader — com ligações ao empresário israelita Abraham “Rami” Ungar —, com uma abordagem ao navio feita por uma unidade de comandos hutis a bordo de um helicóptero.

Sexta-feira passada, Estados Unidos e Reino Unido alvejaram posições militares dos hutis no interior do Iémen. Numa declaração divulgada pela Casa Branca, o Presidente Joe Biden disse ter ordenado os bombardeamentos “em resposta direta a ataques sem precedentes realizados pelos hutis contra embarcações internacionais no Mar Vermelho”. Na véspera, as forças dos dois países tinham intercetado 21 drones e mísseis disparados pelos hutis.

No sábado, os Estados Unidos voltaram a atacar os hutis, desta vez a solo. No dia seguinte, os rebeldes responderam disparando um míssil de cruzeiro (que foi intercetado) na direção do contratorpedeiro USS Laboon, da Marinha dos Estados Unidos. Já esta segunda-feira, um navio de carga americano foi atingido por um míssil balístico atirado pelos hutis.

“Se o objetivo dos bombardeamentos [dos Estados Unidos e do Reino Unido] foi forçar os hutis a cessar os seus ataques no Mar Vermelho, não funcionará. Pouco depois dos ataques, os hutis prometeram retaliar ferozmente. Isto pode assumir a forma de ataques crescentes a navios americanos e britânicos ou atingir ativos dos Estados Unidos na região. De uma forma ou de outra, a situação provavelmente vai piorar”, analisou ao Expresso Veena Ali-Khan, investigadora do Iémen na Universidade de Nova Iorque.

“Paradoxalmente, os hutis beneficiam com os bombardeamentos, uma vez que permitem que eles se aproveitem do seu sentimento pró-Palestina. Também ajuda-os a provar a sua narrativa de que o verdadeiro inimigo são os EUA. Os hutis há muito que construíram a sua legitimidade com base na hostilidade contra os Estados Unidos e Israel, pelo que estes ataques aumentam a sua popularidade — distraindo a população dos problemas internos.”

O Comando Central dos Estados Unidos — que dirige operações militares com países aliados em apoio dos interesses de Washington e cuja prioridade é “deter o Irão” — rotulou os ataques a infraestruturas militares dos hutis de medidas defensivas destinadas a diminuir a capacidade bélica dos rebeldes. Mesmo a um nível operacional, a eficácia dos bombardeamentos ocidentais é questionável.

Desde março de 2015, os hutis têm sido alvo de uma campanha militar da Arábia Saudita — a Operação Tempestade Decisiva —, que começou com bombardeamentos aéreos, prosseguiu com um bloqueio naval ao Iémen e uma invasão terrestre. Em resposta, a infraestrutura petrolífera saudita foi fortemente atingida por ataques hutis.

Nove anos depois do seu início, contudo, a ofensiva de Riade não enfraqueceu os hutis, não os privou de um arsenal potente nem os inibiu de uma postura desafiante. O grupo controla a parte ocidental do Iémen, incluindo o Estreito de Bab al-Mandeb, à entrada do Mar Vermelho.

Quem são os hutis?

A investida saudita no Iémen começou cerca de meio ano depois de os hutis irromperem pela capital, Saná, e conquistarem o poder, a 21 de setembro de 2014. Começou então uma guerra civil num dos países mais pobres do mundo, com várias reivindicações separatistas, um braço ativo da Al-Qaeda e onde se passa fome e uma criança morre a cada dez minutos.

O objetivo de Riade passou por depor os hutis e devolver o poder ao governo do Presidente Abd-Rabbu Mansour Hadi, reconhecido pela comunidade internacional. Em vão.

Na histórica disputa pela hegemonia no Médio Oriente — entre a Arábia Saudita (monarquia árabe sunita) e o Irão (república persa xiita) —, os hutis estão na esfera de influência de Teerão, o que torna o Iémen uma peça importante no xadrez das rivalidades regionais. Mas quem são os hutis?

O grupo tem origem na região de Sa’dah, no noroeste do Iémen, negligenciada pelo poder central, durante décadas, em termos políticos, económicos e sociais. Sa’dah é o centro espiritual do zaidismo, uma corrente do Islão xiita.

Nos anos 80, a região tornou-se ainda mais periférica, quando a Arábia Saudita promoveu a disseminação do sunismo radical no país, marginalizando os crentes zaiditas. Esta situação levou à emergência de um movimento de resistência — designado por “Juventude que Acredita” —, que aliava revivalismo religioso e ativismo social.

A sua agenda foi formatada por um clérigo zaidita e membro do Parlamento do Iémen, de seu nome Hussein Badreddin al-Houthi. Com a cabeça a prémio e uma recompensa choruda anunciada pelo governo iemenita pela sua captura, a 10 de setembro de 2004 as autoridades confirmaram a sua morte, em confrontos com as forças de segurança do país.

O seu grupo armado, formalmente designado “Ansar Allah” (Apoiantes de Deus), passou a ser conhecido, informalmente, pelo seu nome de família: os “hutis”.

Irão assobia para o lado

Para os hutis, o Irão era um apoio crucial para a sua manutenção no poder. Para a Arábia Saudita, o grupo tornou-se uma ameaça xiita no calcanhar da Península Arábica esmagadoramente sunita. “Ao longo dos anos, a relação dos hutis com o Irão tornou-se inegavelmente mais forte. Teerão ajudou-os com armas, tecnologia para mísseis guiados antitanque e informação”, diz Veena Ali-Khan.

“Neste momento, é difícil identificar o papel preciso do Irão na escalada do Mar Vermelho, por as provas serem limitadas. No entanto, parece improvável que os hutis tenham escalado a situação a tal ponto sem aprovação ou envolvimento do Irão. Em última análise, isto faz parte da estratégia de Teerão de negação plausível, através da qual podem usar os hutis para escalar, mantendo ao mesmo tempo a posição pública de que não têm nada que ver com os ataques.”

Em abril de 2022, as Nações Unidas mediaram com sucesso uma trégua nos combates no Iémen que comprometeu os rebeldes hutis, o Governo internacionalmente reconhecido e milícias aliadas deste último. Este cessar-fogo, prorrogado duas vezes, expirou em outubro desse ano, mas as partes continuaram a respeitá-lo, numa atitude que indicia vontade — ou urgência — em resolver o conflito.

No atual adensar da tensão em torno do Iémen, a Arábia Saudita anunciou que acompanha a situação com “grande preocupação” e apelou à “contenção e prevenção da escalada”, noticiou a agência oficial saudita. Riade é um aliado fundamental dos Estados Unidos, que fornecem cerca de 80% do total das importações de armamento dos sauditas.

No Iémen, “o cessar-fogo de facto permanece em vigor, mas não existe documento oficial que o vincule. À medida que a probabilidade de uma escalada regional aumenta a cada dia, a fragilidade do processo de paz do Iémen torna-se evidente”, defende a investigadora.

“A Arábia Saudita apresentou uma proposta ao Enviado Especial da ONU para o Iémen [o diplomata sueco Hans Grundberg] no final do ano passado, dando um passo positivo. No entanto, não houve qualquer anúncio sobre o cronograma da aplicação do acordo entre hutis e sauditas, nem sobre para quando se espera o início das conversações intra-iemenitas. Até estes detalhes serem definidos, os iemenitas permanecerão no limbo.”

O apoio que os hutis recebem do Irão inscreve os rebeldes iemenitas no chamado “eixo da resistência”, que serve os interesses da República Islâmica na região, e de que fazem parte também o libanês Hezbollah e o palestiniano Hamas.

Mas a sua identidade xiita não significa que os hutis vão cair sob a influência iraniana por omissão, já que só a Arábia Saudita poderá dar garantias de um cessar-fogo de longo prazo. Os hutis têm, pois, margem para conversar com os dois gigantes e refazer as suas alianças regionais.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui

Israel bombardeou Gaza e o Líbano. Está iminente uma nova guerra? Seis perguntas e respostas para compreender

O Estado judaico está em polvorosa, com protestos antigovernamentais nas ruas, tensão religiosa em Jerusalém, violência no território palestiniano ocupado da Cisjordânia e o regresso do terrorismo a Telavive. Como que se não bastasse, uma chuva de rockets disparados do Líbano fez Israel recuar aos dias da guerra com o Hezbollah

1 Que indícios fazem recear um conflito?

Há exatamente uma semana, o chefe de Estado-Maior da Força Aérea de Israel, general Herzi Halevi — que reside num colonato judaico no território palestiniano da Cisjordânia e está no cargo há três meses —, ordenou uma mobilização de reservistas. Não foi divulgado o número de operacionais abrangidos, mas, segundo a imprensa local, a convocatória afeta, entre outros, pilotos de caças e operadores de drones. A decisão foi anunciada um dia depois de Israel ter bombardeado o sul do Líbano e o território palestiniano da Faixa de Gaza.

2 Que alvos bombardeou Israel?

Posições do Hamas, grupo islamita que controla Gaza e cujo líder político, Ismail Haniyeh, estava de visita ao Líbano. Para Israel, os bombardeamentos foram uma retaliação pelo disparo de 34 foguetes a partir do Líbano contra território israelita, o maior ataque lançado dali desde os 34 dias de guerra entre Israel e o Hezbollah, no verão de 2006. No Líbano, o líder do Hamas reuniu-se precisamente com Hassan Nasrallah, chefe do Hezbollah — partido e milícia xiita, aliado do Irão —, para avaliar a “prontidão do eixo de resistência” face à escalada.

3 Qual o motivo do aumento da tensão?

Desta vez e (quase) sempre, Jerusalém. Em época de Ramadão, a polícia israelita invadiu várias vezes a mesquita de Al-Aqsa, o terceiro lugar santo do Islão, na Cidade Velha, para controlar “desordeiros”. O comandante da polícia reconheceria o uso de “força excessiva” para dispersar os fiéis barricados no templo. No passado, visitas de judeus radicais às imediações de Al-Aqsa inflamaram os ânimos e motivaram o disparo de rockets de Gaza. Esta semana, o primeiro-ministro Netanyahu vedou o acesso do local a judeus até ao fim do Ramadão (dia 21).

4 A tensão toma apenas Jerusalém?

Não. Há violência na Cisjordânia, envolvendo palestinianos, colonos judeus e forças israelitas; na Faixa de Gaza (sob bloqueio), com lançamento de foguetes contra Israel; e no coração de Israel. Horas após o ataque a Gaza e ao Líbano, um turista italiano foi morto e cinco italianos e britânicos ficaram feridos, depois de um carro investir contra transeuntes que passeavam pela marginal de Telavive. O condutor era um árabe israelita, natural de Kafr Qasem, uma das cidades que, nos últimos anos, têm sido palco de violência entre judeus e árabes.

5 Que resposta dá o Governo?

Apoiado em partidos religiosos e extremistas, o Executivo de Netanyahu enfrenta múltiplos fogos. Com o Parlamento em férias da Páscoa, há uma pausa nos protestos populares contra a polémica reforma do sistema judicial, que subalterniza a justiça ao Governo. Mas o assunto continua efervescente. Esta semana, numa demonstração inédita de fraqueza política, Netanyahu recuou na decisão de demitir o ministro da Defesa — Yoav Gallant, militante do seu partido Likud (direita) —, que exonerara por ter defendido a suspensão da reforma. Afinal, Gallant fica.

6 Quão coesos estão os militares israelitas?

A discussão em torno da reforma judicial, que será retomada em maio, expôs objeções no sector. O ministro Gallant, militar de carreira, foi o principal rosto dessas reticências, mas os alarmes soaram com intensidade quando reservistas aderiram aos protestos, mostrando-se indisponíveis para servir. O desconforto contagiou também os serviços secretos, os quais, segundo documentos do Pentágono despejados na internet (texto ao lado), instigou aos protestos antigoverno.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de abril de 2023. Pode ser consultado aqui