Arquivo da Categoria: Mulheres

As guerreiras de Gaza

Estão na “linha da frente” dos protestos contra Israel. Numa sociedade conservadora como é a da Faixa de Gaza, as mulheres desdobram-se em formas de luta para reclamar um direito histórico — o regresso às terras que outrora foram palestinianas e que agora são território de Israel. “Somos todos terra”, diz ao Expresso uma jovem envolvida nos protestos

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Voluntariam-se para prestar assistência aos feridos, lançam balões e papagaios de papel com as cores da Palestina, fazem pão para matar a fome a quem esgota o corpo a “dar luta” a um dos exércitos mais poderosos do mundo, aproximam-se corajosamente da fronteira para gritar a sua revolta contra a ocupação israelita que transformou o território onde vivem num gueto de onde é difícil sair.

São as mulheres da Faixa de Gaza que, por estes dias, passam grande parte do tempo “em serviço” junto à fronteira com Israel para lembrar, a Telavive e ao mundo, que há algo em dívida para com os palestinianos — o direito do regresso às terras que já foram suas.

“Se queremos alguma coisa, o melhor é fazermos barulho. E quando aquilo que queremos é a nossa terra? O nosso direito? É por essa razão que participo na Grande Marcha do Regresso”, diz ao Expresso Samah, uma palestiniana de 26 anos. “Tenho conhecimentos na área de primeiros socorros, o que me permite ajudar os feridos. Saio de casa às oito horas da manhã e regresso às sete da tarde.”

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Na Faixa de Gaza, a vida está refém da falta de soluções para o conflito israelo-palestiniano. Em entrevista ao Expresso, o historiador israelita Ilan Pappé defendeu que “a guetização de Gaza é uma forma de apartheid” promovida por Israel, que aplica no território “políticas genocidas”.

Ocupada por Israel na Guerra dos Seis Dias (1967) e entregue à Autoridade Palestiniana após a retirada israelita, em 2005, a Faixa de Gaza viu a sua situação complicar-se após o Hamas tomar o poder pela força, em meados de 2006. A 25 de janeiro desse ano, os islamitas venceram as eleições legislativas palestinianas, mas viram o resultado não ser reconhecido nem pela rival Fatah, nem por Israel nem pela comunidade internacional. O golpe do Hamas motivou, então, um bloqueio às fronteiras do território onde, hoje, para se entrar e sair está-se dependente da boa vontade das autoridades israelitas e egípcias.

“As mulheres veem os seus filhos sem trabalho e ficam desesperadas. Então, participam muito nos protestos, talvez não a pensar nelas próprias mas na terra e nos filhos”, diz Samah. “As mulheres mais jovens também participam. Aqui, na Palestina, quando o assunto é a terra ninguém fica indiferente, seja-se homem ou mulher. Somos todos terra.”

Pressão psicológica de Israel sobre as mulheres

A 5 de abril passado, já com a Grande Marcha do Regresso nas ruas — começou a 30 de março e terminará esta terça-feira, 15 de maio —, Avichay Adraee, o porta-voz do Exército israelita, tentou falar ao coração dos setores mais conservadores de Gaza. Ao estilo de um fanático talibã, escreveu na sua conta em língua árabe no Twitter: “Uma boa mulher é a mulher honrada que se importa com o interesse da sua casa e dos seus filhos, sendo um bom exemplo para que eles a sigam. Quanto à mulher má e sem honra, essa não se importa com nada disso, age como uma selvagem que não tem nada a ver com a feminilidade e não se preocupa com o olhar de desprezo com que a sociedade a olha”.

Nesta como noutras guerras, a psicologia é uma arma e, com este “post”, o militar israelita, ironica e propositadamente, adotou o discurso do mais fundamentalista dos militantes do Hamas para tentar fechar as mulheres de Gaza em suas casas.

“Ser uma sociedade conservadora nunca foi um problema. Gaza pode continuar a ser uma sociedade conservadora mesmo que homens e mulheres, juntamente com os seus filhos, saiam de casa para participarem na Marcha”, diz Samah. “Ser ‘conservador’ não quer dizer ficar em casa e não participar em eventos. Nunca poderá significar que as mulheres não possam gritar pela verdade e que tenham de ficar de lado. Significa apenas saber comportar-se e respeitar a sua fé quando se está fora.”

ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF

Samah estudou Literatura na Universidade Islâmica de Gaza e fez formação na área da segurança e proteção. Hoje trabalha como tradutora e coloca os seus conhecimentos de socorrista ao serviço do seu ativismo pelo futuro da Palestina.

Entre as cerca de 50 pessoas mortas desde o início dos protestos — a maioria atingida a tiro por “snipers” israelitas posicionados do outro lado da fronteira — não consta nenhuma mulher. Mas muitas estão entre os milhares de feridos. “Houve apenas ferimentos ligeiros, nada de grave”, diz Samah. “Quando as mulheres participam, os homens estão sempre lá para as proteger.”

Com uma pedra numa mão, o telemóvel na outra e carteira a tiracolo, esta palestiniana mostra que a revolta contra Israel faz parte do quotidiano da população de Gaza MOHAMMED SALEM / REUTERS
Uma jovem carrega um pneu em chamas, uma das “armas” usadas nos protestos em Gaza MAHMUD HAMS / AFP / GETTY IMAGES
Balões de esperança com duas bandeiras palestinianas presas à corda SAID KHATIB / AFP / GETTY IMAGES
“Derrubar” a fronteira com papagaios de papel, alguns com as cores da bandeira palestiniana MOMEN FAIZ / GETTY IMAGES
Zona de leitura numa área mais afastada da “linha da frente” dos protestos MUSTAFA HASSONA / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Palestinianas “de serviço” às redes sociais, outra frente importante da Grande Marcha do RegressoSAMAR ABO ELOUF / REUTERS
A bandeira da Palestina que, neste contexto, vale mais do que 1000 slogans MAJDI FATHI / GETTY IMAGES
IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Arrojadas e destemidas, junto a uma cerca de arame farpado separando Gaza de Israel MAHMUD HAMS / AFP / GETTY IMAGES
Um cordão de quatro rapazes “protege” uma rapariga, enquanto se afastam da fronteira a correr SAID KHATIB / AFP / GETTY IMAGES
Mulheres que inspiram as palestinianas: a cantora Rim Banna, recentemente falecida, voz de temas patrióticos, e Ahed Tamimi, a cumprir pena de prisão por esbofetear um soldado israelita SAMAR ABO ELOUF
Uma máscara feita com um pedaço de uma garrafa plástica e, sobre o nariz, uma proteção com odor de cebola resguardam esta mulher da inalação de gás lacrimogéneo IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Perfume, vinagre, limão, cebola são cheiros fortes a que os manifestantes recorrem para se defenderem dos gases tóxicos lançados por Israel MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES
Palestiniana com dificuldades respiratórias atingida por uma nuvem de gás lacrimogéneo MOHAMMED SALEM / REUTERS
No terreno para assistir as vítimas, esta médica palestiniana sofre com os efeitos do gás lacrimogéneo IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Azáfama no interior de um posto de primeiros socorros SAMAR ABO ELOUF / REUTERS
A Marcha mobiliza sucessivas gerações de palestinianos, como o prova esta idosa, sentada numa das “tendas do regresso” MOHAMMED ABED / AFP / GETTY IMAGES
Jovens de Gaza, com a máscara associada ao movimento de hacktivismo internacional anonymous, tiram uma “selfie” ALI JADALLAH / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Duas palestinianas fazem pão, num dos acampamentos erguidos junto à fronteira IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Uma artista pinta um quadro em memória de Yasser Murtaja, um dos jornalistas palestinianos mortos durante a Grande Marcha SAID KHATIB / AFP / GETTY IMAGES
Acarinhada por outras mulheres, uma palestiniana de Khan Yunis chora a morte de um filho de 15 anos, atingido a tiro pelas forças israelitas MAHMUD HAMS / AFP / GETTY IMAGES
O silêncio e a tranquilidade propiciados pela noite trazem à “cidade das tendas” momentos de oração MOHAMMED SALEM / REUTERS
Montadas propositadamente para a Grande Marcha, as tendas foram batizadas com o nome das aldeias de onde palestinianos foram expulsos em 1948, após a criação de Israel IBRAHEEM ABU MUSTAFA / REUTERS
Uma pilha de pneus, que, depois de incendiados, vão criar uma cortina de fumo negro com que os palestinianos esperam perturbar a mira dos atiradores israelitas MAJDI FATHI / GETTY IMAGES
Vozes que não se calam, apesar de esbarrarem num muro de indiferença MOHAMMED SALEM / REUTERS
MOHAMMED SALEM / REUTERS

Artigo publicado no Expresso Online, a 14 de maio de 2018. Pode ser consultado aqui

Norte-americanas não esquecem ativista da luta pelo direito ao voto

Susan B. Anthony foi uma ativista da luta pelo direito ao voto feminino nos Estados Unidos. Esta terça-feira, a tradicional “peregrinação” à sua campa em dia de eleições redobrou de intensidade e de significado… Ou não estivessem os EUA mais próximos do que nunca de eleger uma mulher na Casa Branca

É um ritual que se repete de cada vez que os norte-americanos são chamados a eleger um novo Presidente. Muito cidadãos, sobretudo mulheres, acorrem à campa de Susan Brownell Anthony, em Rochester, Nova Iorque, para prestar homenagem àquela sufragista falecida em 1906, aos 86 anos.

Esta terça-feira, a afluência foi de tal ordem que o autarca mandou extendeu o horário de abertura do cemitério Mount Hope até às nove da noite (habitualmente fecha às 17h30).

Junto à sepultura de Susan, muitas norte-americanas “vingaram” o facto de ela nunca ter sido autorizada a exercer o direito pelo qual tanto lutara, colando na sua lápide autocolantes que diziam “Eu votei”.

“Hoje votei por causa de mulheres como ela”, escreveu a jovem Brynn Hunt no Instagram. “Hoje votei pela primeira vez, visitei a campa de Susan B. Anthony e vesti-me de branco para homenagear o sufrágio feminino. Percorremos um longo caminho desde que passou a 19ª emenda [ratificada a 18 de agosto de 1920 e que confere o direito de voto às mulheres], mas ainda temos muito a percorrer. Tenho em orgulho em dizer #imwithher”, ou seja, “estou com ela”, que é uma das hashtags de apoio a Hillary Clinton.

Em 1872, Susan B. Anthony desafiou os cânones da época — e as autoridades — votando nas eleições presidenciais. Foi presa e levada a julgamento, num processo que chegou aos jornais nacionais. Foi-lhe aplicada uma multa de 100 dólares, que a ativista nunca pagou. “Jamais pagarei um dólar por essa pena injusta!”

Susan B. Anthony, pioneira do sufragismo nos EUA, em 1855 WIKIMEDIA COMMONS

Este ano, a motivação para a romaria à campa de Susan foi acrescida já que, pela primeira vez, uma mulher é candidata à Casa Branca. E com forte possibilidade de vencer.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de novembro de 2016. Pode ser consultado aqui

Defensor do uso da burqa, Daesh proíbe… a burqa

O autodenominado Estado Islâmico (Daesh) abriu uma exceção num dos seus princípios puritanos: por razões de segurança, em Mossul, as mulheres estão proibidas de entrar com burqa em infraestruturas relacionadas com a segurança

O autodenominado Estado Islâmico (Daesh) declarou guerra à burqa invocando razões de segurança. A medida aplica-se a vários edifícios militares ou infraestruturas relativas à segurança do grupo extremista, na cidade de Mossul (norte do Iraque), onde as mulheres não poderão entrar se trajarem burqa (vestimenta que cobre todo o corpo) ou niqab (lenço que cobre toda a cabeça, deixando apenas os olhos à mostra).

Os jiadistas abrem assim uma brecha num dos seus princípios puritanos até agora não negociável: a imposição do uso da burqa às mulheres, sob pena de serem espancadas pela chamada “polícia da moralidade” ou mesmo executadas.

O recuo nesta obrigação surge na sequência de vários ataques, nos últimos meses, levados a cabo por mulheres que disfarçaram armas nas suas vestes e que resultaram na morte de vários jiadistas, incluindo alguns comandantes.

A 5 de setembro, num posto de controlo em Sharqat (sul de Mossul), uma mulher tapada matou dois membros do Daesh usando uma pistola.

Fora dos centros militares e dos postos de segurança, as populações sob controlo do Daesh — na Síria, Iraque e Líbia — terão de continuar a respeitar o estrito código de vestuário, pelo menos enquanto a relação de forças na sua região não se alterar…

No início de agosto, após a libertação da cidade de Manbij pelas forças sírias, nas mãos do Daesh desde inícios de 2014, surgiram imagens de mulheres a queimarem burqas em público, como forma de celebração. “Maldita invenção estúpida que nos obrigaram a usar”, diz uma delas. “Somos seres humanos, temos a nossa liberdade.”

“Num eco surreal do recente angustiante debate em França sobre proibir ou não o burquíni nas praias”, escreve a agência noticiosa iraniana Al-Alam, “o Estado Islâmico alega agora preocupações com a segurança para proibir mulheres de taparem a cara nalgumas circunstâncias.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de setembro de 2016. Pode ser consultado aqui

Somos todos iranianas

Muitas iranianas estão a desafiar o regime dos “ayatollahs”, tirando fotografias sem o véu na cabeça. A jornalista que criou a página no Facebook onde essas fotos proibidas são publicadas conta ao “Expresso” como nasceu a ideia

Sempre que publicava, no Facebook, fotos do seu quotidiano em Londres, onde vive exilada, a jornalista iraniana Masih Alinejad recebia mensagens de compatriotas dizendo-se frustradas por, no Irão, não poderem fazer o mesmo. “Eu postava fotos minhas, em liberdade e sem o ‘hijab’ (véu) e recebia emails de iranianas a dizer que eu tinha muita sorte por usufruir dessas liberdades”, conta ao “Expresso”.

“Comecei então a pensar se outras iranianas sentiriam o mesmo e quereriam ter uma oportunidade para tirar ‘selfies’ sem estarem cobertas da cabeça aos pés. Apelei a que me mandassem fotografias e comecei a publicá-las na minha página no Facebook. Mas começaram a ser tantas que achei que devia criar uma página só para isso.”

“Tirei esta foto na Rua do Véu sem o ‘hijab’ a segurar este cartaz com uma mensagem contra o véu. Durante um breve momento, senti-me realmente nervosa, mas eu queria fazê-lo. E fiz!”, diz uma iraniana FACEBOOK MY STEALTHY FREEDOM

Assim nasceu, a 3 de maio passado, a página “Stealthy Freedoms of Iranian Women” (“Liberdades Furtivas das Mulheres Iranianas”), que já tem quase 200 mil seguidores. Masih deu o exemplo e partilhou um dos seus momentos secretos, longe de olhares reprovadores, num campo de papoilas cor de laranja, na berma de uma estrada perto de Ghomikola, onde nasceu, no norte do Irão.

De imediato, começaram a chover fotos de iranianas de cabelos ao vento — ao volante, junto ao mar ou a um monumento, no meio de estradas ou da natureza, sozinhas ou em grupo, jovens e mais velhas. Algumas surgem de costas ou ocultam a cara; a esmagadora maioria enfrenta a câmara fotográfica com um sorriso. As identidades não são reveladas e as mulheres aproveitam para juntar mensagens e desabafos às fotos que publicam.

Masih, de 37 anos, tem “fotos proibidas” de sobra nos seus álbuns pessoais. “A ideia das ‘Liberdades Furtivas’ surgiu depois de eu olhar para fotos minhas no Irão sem o ‘hijab’, tiradas secretamente num campo qualquer ou num local sossegado”, diz. “Era um prazer culpabilizante, uma forma de eu exigir a minha própria liberdade, longe dos olhares fixos da polícia cultural ou até mesmo da reprovação da sociedade. Era uma forma de eu exercer a minha própria independência.”

Outra iraniana envolvida na campanha surge agachada dentro de uma gruta: “Dentro do Labirinto de Corredores na antiga caverna de Niyasar. Quando as coisas não nos são impostas, podemos ser nós próprias!” FACEBOOK MY STEALTHY FREEDOM

Brigadas da moralidade

No Irão, o uso do véu é obrigatório para as mulheres, nativas ou visitantes, muçulmanas ou não. Quando se viaja de avião para a antiga Pérsia, por exemplo, momentos antes do aparelho aterrar, um aviso informa que as mulheres devem cobrir a cabeça antes de pisarem solo iraniano. Não há exceções, nem mesmo para chefes de Estado.

Nas ruas, brigadas da chamada polícia moral passam revista à indumentária dos transeuntes, advertindo as mulheres que circulam com o véu descaído, com roupas justas ou maquilhagem carregada. Como não pode haver contacto físico entre homens e mulheres que não sejam da mesma família, muitas vezes as iranianas são interpeladas por agentes do sexo feminino, vestidas com o chador preto, que identifica maior devoção religiosa na República Islâmica.

“Eu respeito o direito das mulheres que querem usar o véu”, continua Masih, que trabalha como repórter num programa satírico do serviço persa da Voz da América e é correspondente da Rádio Farda. “A minha mãe é uma delas e muitas mulheres da minha família sentem-se mais confortáveis a usar o véu ou um lenço. Mas eu quero ter a possibilidade de escolher o que vestir e não ser forçada a usar o véu por causa de pressões culturais ou religiosas. Não sou uma ativista. Iniciei esta página por curiosidade e estou surpreendida pela quantidade de fotos e emails enviados pelas iranianas. Quaisquer ações no futuro, a haver, vão depender das iranianas. Tenho esperança que ações deste género obtenham uma resposta por parte do Governo, mas não espero muito.”

Nasrin Sotoudeh, jurista que esteve presa três anos por defender outras advogadas (como a Nobel da Paz Shirin Ebadi), associou-se à campanha: “Disse aos meus carcereiros que não voltaria a usar o chador e que preferia que me cortassem a cabeça à frente do gabinete do governador. Não voltaria a usá-lo. E não voltei” FACEBOOK MY STEALTHY FREEDOM

O assunto do momento

De acordo com os códigos morais e legais do regime dos “ayatollahs”, que governa o Irão desde a Revolução Islâmica de 1979, só é aceitável que as mulheres exibam o cabelo — que entendem ser fonte de sedução — dentro de casa. A 19 de abril, o país assinalou o Dia da Mulher, coincidindo essa efeméride com o aniversário de nascimento de Fatima Zahra, filha do profeta Maomé. Este ano, o papel da mulher na sociedade iraniana originou uma polémica entre as duas principais figuras do regime, o Líder Supremo e o Presidente.

Num discurso em Teerão, diante de centenas de mulheres vestidas com o chador negro, o “ayatollah” Ali Khamenei considerou que “um dos maiores erros do Ocidente em relação às mulheres é a igualdade de género”, disse. “Por que razão um emprego masculino deverá ser dado a uma mulher? Que orgulho pode ter uma mulher num emprego masculino?”

Uma iraniana sem véu diante de um edifício onde fica um dos gabinetes do “ayatollah” Ali Khamenei, Líder Supremo do Irão, explica ao que vai: “Nós vamos avançar cada vez mais rápido até que você compreenda o que nós somos capazes de fazer. O que quer que você diga que nós não podemos fazer, nós vamos fazer!” FACEBOOK MY STEALTHY FREEDOM

Para o líder religioso, de 74 anos, a mulher está destinada a cuidar do lar e zelar pelo bem estar da família. “Mulheres dentro de casa trazem paz ao homem e às crianças. Uma mulher que é humilhada, injuriada, pressionada pelo trabalho, não pode ser uma boa dona de casa nem administrar o lar.”

No dia seguinte, também Hasan Rohani, o Presidente reformista de 65 anos eleito há menos de um ano, homenageou as mulheres em termos contrários aos do guia espiritual. “As mulheres devem ter oportunidades, benefícios e direitos sociais iguais. Será possível marginalizar metade da sociedade?” Disse ainda que as iranianas estão a ganhar protagonismo em todas as áreas da sociedade, mas admitiu que “ainda falta muito para atingir a meta” da igualdade de género.

“Nos países economicamente avançados”, continua a criadora da campanha #mystealthyfreedom, “as mulheres podem chegar aos mais altos cargos, ser executivas em empresas, juízas do Supremo Tribunal ou líderes políticas e chefes de Governo”. “No Irão não podem sequer escolher a forma de se vestir, muito menos alcançar posições de topo na sociedade.” Para Masih Alinejad, o maior obstáculo a essas conquistas “é o Governo”. “Antes da Revolução Islâmica, havia iranianas laicas que se vestiam como as mulheres ocidentais e outras com origens tradicionais ou religiosas. Ambas eram toleradas. Agora, a via islâmica não tolera qualquer diferença de opinião.”

O QUE DIZ A LEI IRANIANA

Segundo o código penal islâmico iraniano de 1991, “as mulheres que surjam em público sem um véu adequado deverão ser presas entre dez dias a dois meses”. As penas podem ser substituídas pelo pagamento de uma multa. Na prática, a ausência de uma definição clara sobre o que é um “véu adequado” sujeita as mulheres a interpretações arbitrárias por parte de quem aplica a lei. As regras de indumentária não visam, porém, apenas as iranianas. Um homem de calções pode ter a polícia de costumes à perna.

FOTOGALERIA DA LIBERDADE

FOTOS FACEBOOK MY STEALTHY FREEDOM

(Foto de abertura: A autora da campanha, fotografada sem véu num campo junto à sua cidade natal, no norte do Irão FACEBOOK MY STEALTHY FREEDOM)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 15 de maio de 2014. Pode ser consultado aqui

Somos todos iranianas

Muitas iranianas estão a desafiar o regime dos “ayatollahs”, tirando fotografias sem o véu na cabeça. A jornalista que criou a página no Facebook onde essas fotos proibidas são publicadas conta ao Expresso como nasceu a ideia

Sempre que publicava no Facebook fotos do seu quotidiano em Londres, onde vive exilada, a jornalista iraniana Masih Alinejad recebia mensagens de compatriotas dizendo-se frustradas por não poderem fazer o mesmo no Irão. “Eu postava fotos minhas, em liberdade e sem o ‘hijab’ [véu] e recebia emails de iranianas a dizer que eu tinha muita sorte por usufruir dessas liberdades”, conta ao Expresso.

“Comecei então a pensar se outras iranianas sentiriam o mesmo e quereriam ter uma oportunidade para tirar ‘selfies’ sem estarem cobertas da cabeça aos pés. Apelei a que me mandassem fotografias e comecei a publicá-las na minha página pública no Facebook. Mas começaram a ser tantas que achei que devia criar uma página só para isso.”

“Tirei esta foto na Rua do Véu sem o \’hijab\’ a segurar este cartaz com uma mensagem contra o véu. Durante um breve momento, senti-me realmente nervosa, mas eu queria fazê-lo. E fiz!”, diz uma iraniana

Assim nasceu, a 3 de maio passado, a página “Stealthy Freedoms of Iranian Women” (“Liberdades Furtivas das Mulheres Iranianas”), que já tem quase 200 mil seguidores. Masih deu o exemplo e partilhou um dos seus momentos secretos, longe de olhares reprovadores, num campo de papoilas cor de laranja, na berma de uma estrada perto de Ghomikola, onde nasceu, no norte do Irão.

De imediato, começaram a chover fotos de iranianas de cabelos ao vento – ao volante, junto ao mar ou a um monumento, no meio de estradas ou da natureza, sozinhas ou em grupo, jovens e mais velhas. Algumas surgem de costas ou ocultam a cara; a esmagadora maioria enfrenta a câmara fotográfica com um sorriso. As identidades não são reveladas e as mulheres aproveitam para juntar mensagens e desabafos às fotos que publicam.

Masih, de 37 anos, tem “fotos proibidas” de sobra nos seus álbuns pessoais. “A ideia das ‘Liberdades Furtivas’ surgiu depois de eu olhar para fotos minhas no Irão sem o ‘hijab’, tiradas secretamente num campo qualquer ou num local sossegado”, diz. “Era um prazer culpabilizante, uma forma de eu exigir a minha própria liberdade, longe dos olhares fixos da polícia cultural ou até mesmo da reprovação da sociedade. Era uma forma de eu exercer a minha própria independência.”

Outra iraniana envolvida na campanha surge agachada dentro de uma gruta: “Dentro do Labirinto de Corredores na antiga caverna de Niyasar. Quando as coisas não nos são impostas, podemos ser nós próprias!”

Brigadas da moralidade

No Irão, o uso do véu é obrigatório para as mulheres, nativas ou visitantes, muçulmanas ou não. Quando se viaja de avião para a antiga Pérsia, por exemplo, momentos antes do aparelho aterrar, um aviso informa que as mulheres devem cobrir a cabeça antes de pisarem solo iraniano. Não há exceções, nem mesmo para chefes de Estado.

Nas ruas, brigadas da chamada polícia moral passam revista à indumentária dos transeuntes, advertindo as mulheres que circulam com o véu descaído, com roupas justas ou maquilhagem carregada. Como não pode haver contacto físico entre homens e mulheres que não sejam da mesma família, muitas vezes as iranianas são interpeladas por agentes do sexo feminino, vestidas com o chador preto, que identifica maior devoção religiosa na República Islâmica.

“Eu respeito o direito das mulheres que querem usar o véu”, continua Masih, que trabalha como repórter num programa satírico do serviço persa da Voz da América e é correspondente da Rádio Farda. “A minha mãe é uma delas e muitas mulheres da minha família sentem-se mais confortáveis a usar o véu ou um lenço. Mas eu quero ter a possibilidade de escolher o que vestir e não ser forçada a usar o véu por causa de pressões culturais ou religiosas. Não sou uma ativista. Iniciei esta página por curiosidade e estou surpreendida pela quantidade de fotos e emails enviados pelas iranianas. Quaisquer ações no futuro, a haver, vão depender das iranianas. Tenho esperança que ações deste género obtenham uma resposta por parte do Governo, mas não espero muito.”

Nasrin Sotoudeh, jurista que esteve presa três anos por defender outras advogadas (como a Nobel da Paz Shirin Ebadi), associou-se à campanha. “Disse aos meus carcereiros que não voltaria a usar o chador e que preferia que me cortassem a cabeça à frente do gabinete do governador. Não voltaria a usá-lo. E não voltei”

O assunto do momento

De acordo com os códigos morais e legais do regime dos “ayatollahs”, que governa o Irão desde a Revolução Islâmica de 1979, só é aceitável que as mulheres exibam o cabelo – que entendem ser fonte de sedução – dentro de casa. A 19 de abril, o país assinalou o Dia da Mulher, coincidindo essa efeméride com o aniversário de nascimento de Fatima Zahra, filha do profeta Maomé. Este ano, o papel da mulher na sociedade iraniana originou uma polémica entre as duas principais figuras do regime, o líder Supremo e o presidente.

Num discurso em Teerão, diante de centenas de mulheres vestidas com o chador negro, o “ayatollah“ Ali Khamenei considerou que “um dos maiores erros do Ocidente em relação às mulheres é a igualdade de género”, disse. “Por que razão um emprego masculino deverá ser dado a uma mulher? Que orgulho pode ter uma mulher num emprego masculino?”

Uma iraniana sem véu diante de um edifício onde fica um dos gabinetes do “ayatollah” Ali Khamenei, líder supremo do Irão, explica ao que vai: “Nós vamos avançar cada vez mais rápido até que você compreenda o que nós somos capazes de fazer. O que quer que você diga que nós não podemos fazer, nós vamos fazer!”

Para o líder religioso, de 74 anos, a mulher está destinada a cuidar do lar e zelar pelo bem estar da família. “Mulheres dentro de casa trazem paz ao homem e às crianças. Uma mulher que é humilhada, injuriada, pressionada pelo trabalho, não pode ser uma boa dona de casa nem administrar o lar.”

No dia seguinte, também Hasan Rohani, o presidente reformista de 65 anos eleito há menos de um ano, homenageou as mulheres em termos contrários aos do guia espiritual. “As mulheres devem ter oportunidades, benefícios e direitos sociais iguais. Será possível marginalizar metade da sociedade?” Disse ainda que as iranianas estão a ganhar protagonismo em todas as áreas da sociedade, mas admitiu que “ainda falta muito para atingir a meta” da igualdade de género.

“Nos países economicamente avançados”, continua a criadora da campanha ‪#‎mystealthyfreedom, “as mulheres podem chegar aos mais altos cargos, ser executivas em empresas, juízas do Supremo Tribunal ou líderes políticas e chefes de Governo”. “No Irão não podem sequer escolher a forma de se vestir, muito menos alcançar posições de topo na sociedade.” Para Masih Alinejad, o maior obstáculo a essas conquistas “é o Governo”. “Antes da Revolução Islâmica, havia iranianas laicas que se vestiam como as mulheres ocidentais e outras com origens tradicionais ou religiosas. Ambas eram toleradas. Agora, a via islâmica não tolera qualquer diferença de opinião.”

FOTOGALERIA DA LIBERDADE

O QUE DIZ A LEI IRANIANA

Segundo o código penal islâmico iraniano de 1991, “as mulheres que surjam em público sem um véu adequado deverão ser presas entre dez dias a dois meses”. As penas podem ser substituídas pelo pagamento de uma multa. Na prática, a ausência de uma definição clara sobre o que é um “véu adequado” sujeita as mulheres a interpretações arbitrárias por parte de quem aplica a lei. As regras de indumentária não visam, porém, apenas as iranianas. Um homem de calções pode ter a polícia de costumes à perna.

FOTO PRINCIPAL A autora da campanha, fotografada sem véu num campo junto à sua cidade natal, no norte do Irão MASIH ALINEJAD

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 15 de maio de 2014. Pode ser consultado aqui