A princesa jordana que fugiu para Londres é só a ponta de um icebergue. O patriarcado impera e a igualdade é apenas uma miragem
No Médio Oriente, uma mulher em fuga à família, para lá dos contornos pessoais da história, ganha muitas vezes relevância pelo contexto sociocultural em que se move. Foi assim no início do ano, quando a jovem saudita Rahaf Mohammed al-Qunun escapou à família durante umas férias no Dubai. Numa escala em Banguecoque (Tailândia), barricou-se num quarto de hotel e começou a pedir ajuda, através da rede social Twitter, para conseguir asilo na Austrália.
Acusou a família de maus-tratos e disse não querer continuar a viver num país onde tinha de pedir permissão para trabalhar e onde não podia escolher com quem casar. O Canadá abriu-lhe as portas e Rahaf mostrou-se esperançosa de que a sua história contribuísse para “uma mudança das leis”. Na semana passada, um conjunto de decretos reais abalou o sistema de tutela masculina que continua a submeter a vida das sauditas à vontade dos homens da família. Entre outros direitos, as sauditas passam a poder viajar para o estrangeiro sem autorização masculina.
O caso de Rahaf não é único. Outros há em que as consequências de atos de mulheres em desespero extravasam o seio da família e atingem o interesse do Estado. Foi o que aconteceu recentemente após a fuga de uma princesa jordana para o Reino Unido.
Haya, a princesa rebelde
Haya bint Hussein, 45 anos, é filha do rei Hussein da Jordânia, falecido em 1999, e meia-imã do atual rei Abdullah II. É também a esposa mais jovem do emir do Dubai, Mohammed bin Rashid al-Maktum, de 70 anos. Formada em Filosofia e Economia na Universidade de Oxford, ex-presidente da Federação Internacional de Desportos Equestres e líder de organizações humanitárias apoiadas pela ONU, a princesa vive há dois meses em Londres com os dois filhos menores. Interpôs uma ação num tribunal da cidade, solicitando “proteção contra casamento forçado”. Num comunicado conjunto, o casal informou que a ação visa só o bem-estar dos filhos e não um eventual divórcio. A audiência está marcada para 11 de novembro.
“Na Jordânia, há muito apoio à princesa Haya. Há uma reação emocional que decorre da tristeza que ainda provoca a morte da sua mãe [Alia al-Hussein] num trágico acidente [de helicóptero, em 1977]”, diz ao Expresso a jordana Lamis Andoni, perita em assuntos do Médio Oriente. “Há também um apoio feminista, por parte de pessoas solidárias que acreditam na história dela.”
Efeitos chegam… à Palestina
As razões da fuga de Haya circulam no domínio dos rumores. Quem a defende diz que quer proteger os filhos de casamentos forçados. Os seus detratores insinuam uma relação próxima com um guarda-costas britânico. Quaisquer que sejam os motivos para a desavença entre o casal, “não é provável que este caso afete a relação entre a Jordânia e os Emirados Árabes Unidos” (EAU, de que o Dubai é um de sete emirados). “Essa relação baseia-se em questões prioritárias de segurança nacional e cooperação económica para os dois países”, comenta ao Expresso David Mack, investigador do Middle East Institute, Washington D.C., e ex-embaixador dos EUA nos Emirados.
Mas a relação já teve melhores dias. Acrescenta Andoni: “A Jordânia e os EAU são aliados, mas mesmo antes deste caso já havia tensão provocada por Mohamed bin Zayed [príncipe herdeiro dos EAU], que tem exercido grande pressão sobre a Jordânia”. “Mohamed bin Zayed faz parte do plano de Donald Trump para a Palestina. Ele quer que o rei da Jordânia o aceite incondicionalmente. Arábia Saudita e Emirados estão a pressionar a Jordânia. Mohamed bin Salman [príncipe herdeiro saudita] não tem estado tão ativo como anteriormente, mas ambos continuam a não questionar o que Trump quer fazer com o chamado ‘Acordo do Século’”, prossegue o especialista.
O plano do Presidente dos EUA não é ainda do domínio público. Mas, diz Andoni, “os pontos de vista da sua equipa são muito claros na sua essência”. Trump recusa-se a apoiar de forma inequívoca a solução de dois Estados (Israel e Palestina) e abstém-se de condenar a construção de colonatos judeus em terras palestinianas. Ao não prever expressamente um Estado palestiniano, o plano põe em causa a estabilidade da Jordânia — separada da Cisjordânia pelo rio Jordão —, onde mais de metade da população é palestiniana. A rainha Rania é disso exemplo: nasceu no Kuwait no seio de uma família da Cisjordânia.
Para os sectores israelitas mais nacionalistas, a Palestina já existe: é a Jordânia, que tem um tratado de paz com Israel. A solução passa, então, por empurrar as populações árabes para a Jordânia, para que Israel fique com o controlo da Palestina histórica. “A Jordânia não pode dar-se ao luxo de concordar com todos os elementos do plano de Trump”, diz a jordana.
Os dois rostos do Dubai
O impacto da fuga de Haya na política externa da Jordânia é um dos lados da moeda. Na outra face está a imagem que casos como este (ver caixa) transmitem do Dubai, território que se afirma com construções cada vez mais modernas e arrojadas, como o Burj Khalifa, com 828 metros de altura, ou a Palmeira Jumeirah, ilha em forma de palmeira com hotéis e apartamentos luxuosos. Ao contrário do “irmão” Abu Dhabi, o Dubai não assenta a sua economia no petróleo e no gás, mas no imobiliário e no turismo.
“Em termos socioculturais, o Dubai e o resto dos EAU são conservadores, embora não tão intolerantes quanto a Arábia Saudita”, diz Mack. “Os forasteiros tendem a deslumbrar-se com os novos prédios e o estilo de vida cosmopolita exibido pelos estrangeiros, que ali são a grande maioria.” Confundi-lo com a essência do país resulta numa ilusão, tal como pensar que nos palácios do Dubai a vida das princesas é um conto de fadas.
FUGIDAS ÀS GARRAS DO PAI
Princesa Latifa
Filha do emir do Dubai e da argelina Houria Lamara, fugiu em fevereiro de 2018, aos 32 anos. Foi de carro para Omã, onde usou uma moto de água para subir para um barco. Foi intercetada ao largo de Goa, na Índia. Gravara um vídeo para o caso de ser apanhada. Dizia querer viver livre
Princesa Shamsa
Irmã de Latifa, em 2000 aproveitou férias numa propriedade inglesa da família para fugir (tinha 19 anos). Uma busca ordenada pelo pai localizou Shamsa em Cambridge, após escutas telefónicas. Metida à força num carro, seguiu de helicóptero para França e de avião privado para o Dubai
Derrubaram os líderes, mas querem garantias de uma nova era. Argelinos e sudaneses continuam nas ruas
Na Argélia, Abdelaziz Bouteflika foi apenas o alvo óbvio. A revolta do povo argelino — coroada de êxito com a renúncia do Presidente, a 2 de abril passado — tem, porém, um objetivo maior: o fim de um regime monolítico e anacrónico que não corresponde aos anseios de uma população de 40 milhões em que quase metade tem menos de 25 anos.
“Queremos um Presidente que nos entenda. Queremos viver aqui e não imigrar para a Europa”, dizia Bouzid Abdoun, um engenheiro de 25 anos, à reportagem da agência Reuters, numa das manifestações de sexta-feira que, desde 22 de fevereiro, continuam a sair à rua semana após semana.
Desde que Bouteflika saiu de cena, os argelinos têm direcionado os seus protestos contra o triunvirato “3B” — Abdelkader Bensalah (presidente interino), Noureddine Bedoui (primeiro-ministro) e Tayeb Belaiz (ministro do Interior). “Por enquanto, os manifestantes estão unidos em torno de uma ideia: derrubar o regime”, diz ao Expresso Youcef Bouandel, professor de Ciência Política na Universidade do Qatar. “Há um apoio popular muito grande a um sistema político democrático. A ‘rua’ parece expressar este sentimento ao pedir o afastamento de ‘Le Pouvoir’ e a instauração de um sistema mais democrático”, acrescenta Ishac Diwan, professor na Universidade de Harvard (EUA).
“Le Pouvoir” (O Poder) é a alcunha que os argelinos usam para se referirem ao regime composto por veteranos de guerra, magnatas dos negócios e funcionários da Frente de Libertação Nacional, o partido no poder desde a independência (1962). Prossegue Diwan: “Quando lemos os editoriais na imprensa argelina, as exigências políticas são: um sistema político de governação mais descentralizado e parlamentar, um sistema judicial independente e órgãos de informação não dominados pelo Estado.”
Veteranos do poder
Oito anos após o movimento conhecido como “Primavera Árabe” (ver “Contexto”), a rua árabe continua reivindicativa. Nove dias após o argelino Bouteflika abdicar, o Presidente Omar al-Bashir foi deposto pelos militares, no Sudão, na sequência de grandes manifestações populares. Excetuando alguns monarcas, eram os líderes árabes há mais tempo no poder: Bouteflika estava a menos de um mês de completar 20 anos no cargo e Bashir — indiciado no Tribunal Penal Internacional por genocídio e crimes contra a Humanidade praticados na região do Darfur — ficou a pouco mais de dois meses de governar 30 anos.
Esta semana, o principal grupo de protesto sudanês expressou desconfianças em relação aos militares e às promessas feitas no sentido da transferência do poder para os civis. Manifestantes e ativistas têm estado a negociar com os militares a formação de um órgão de transição conjunto, mas não conseguem chegar a acordo sobre em que mãos ficará a autoridade.
“Com o passar do tempo, os poderes do conselho militar estão a aumentar, o que é um perigo muito grande para a revolução sudanesa”, afirmou na terça-feira Mohammed Naji Elasam, porta-voz da Associação dos Profissionais Sudaneses, que lidera um amplo grupo de ativistas e opositores. No mesmo dia, os protestos voltaram a Cartum, com estradas bloqueadas, pedras arremessadas e pneus em chamas em várias zonas da capital. Em frente ao Ministério da Defesa continua, desde 6 de abril, um protesto em permanência, que os generais sudaneses prometeram não dispersar.
A exceção marroquina
Na ponta ocidental do Magrebe, também Marrocos não tem escapado à agitação, ainda que, como refere ao Expresso Raúl Braga Pires, ex-professor na Universidade de Rabat, o país “aproveite qualquer tipo de manifestação para poder dizer ao mundo que não há súbdito que não seja livre de se manifestar”. “Sair à rua e protestar insere-se na categoria da ‘exceção marroquina’ no Magrebe e restante mundo islâmico. É prática comum, sendo mesmo curricular em certos sectores, como é o caso dos ‘Diplômés Chaumeurs’ [Graduados desempregados] que se manifestam diariamente, das 16h às 18h, em frente ao Parlamento, exigindo serem integrados no sector público e em Rabat, de preferência.”
Mas há manifestações de outra natureza com mais potencial para indispor Mohammed VI, ainda que a sua autoridade não seja questionada nas ruas. É o caso dos protestos iniciados no Rif (norte, região berbere), após a morte de um peixeiro de Al-Houceima que se atirou para dentro de um camião do lixo para impedir a destruição de 500 quilos de espadarte que tinham sido apreendidos, e ali morreu esmagado, em 2016.
A contestação originada pela tragédia extravasou o Rif. “As manifestações atuais em várias cidades, nomeadamente Rabat, têm exigido a libertação do líder do Hirak, condenado a 20 anos de prisão por ter liderado os protestos no caso do peixeiro e que se tornaram transversais a outros, sobretudo de cariz berbere”, refere Braga Pires, autor do blogue “Maghreb/Machrek”. “Poderão dar azo a uma insatisfação mais generalizada por parte das comunidades berberes, que misturam tudo, tantas são as queixas que têm. Mas não é um caso que una esquerda e direita, oposição e fiéis ao regime.”
CONTEXTO
Manifestações Em 2010, protestos tomam a Tunísia após um vendedor se imolar pelo fogo em desespero
Movimento Os protestos contra o regime contagiaram outros países, no que ficou conhecido como “Primavera Árabe”
Ditadores Quatro líderes caíram: Ben Ali (Tunísia), Mubarak (Egito), Kadhafi (Líbia) e Saleh (Iémen)
Conflitos Na Líbia, Síria e Iémen, aos protestos seguiram-se guerras
(FOTO Manifestantes na Argélia pedem: “Liberdade para a Argélia”, “Fim de jogo! Sai!” WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de maio de 2019. Pode ser consultado aqui
Na Argélia, no Sudão e na Líbia, os povos estão nas ruas em ações de protesto, numa espécie de reedição da Primavera Árabe que, há oito anos, varreu vários países do Norte de África e do Médio Oriente. Argelinos e sudaneses manifestam-se contra regimes que levam décadas de poder. Já os líbios, alertam para o fantasma da guerra que volta a assustar um país que, após a queda do ditador, ainda não encontrou o seu rumo
Em menos de duas semanas, os dois líderes árabes há mais tempo no poder — se retirarmos da equação os monarcas — foram empurrados para fora de cena.
Na Argélia, Abdelaziz Bouteflika renunciou à presidência a 2 de abril, a menos de um mês de completar 20 anos no cargo (tomou posse pela primeira vez a 27 de abril de 1999) e a menos tempo ainda de tentar ser reeleito para um quinto mandato nas presidenciais inicialmente agendadas para 18 de abril — e agora previstas para 4 de julho.
Fisicamente muito debilitado, confinado ao conforto privado e quase sem aparecer em público, Bouteflika não resistiu a quase cinco semanas de oposição popular nas ruas. Afastado da presidência, o poder transitou para as mãos de um triunvirato a que os argelinos apelidam de “3B”: Abdelkader Bensalah (presidente interino), Tayeb Belaiz (ministro do Interior) e Noureddine Bedoui (primeiro-ministro).
São eles agora o rosto do odiado regime que o povo continua a contestar, em especial às sextas-feiras, quando gozam o fim de semana e algumas prédicas nas mesquitas têm grande poder mobilizador. No vídeo abaixo, captado em Argel na última sexta-feira, milhares de pessoas entoam o hino nacional.
No Sudão, Omar al-Bashir também saiu de cena a pouco mais de dois meses de completar 30 anos na liderança do país. Entronizado a 30 de junho de 1989, foi deposto a 11 de abril, após protestos populares contra o custo de vida, iniciados em várias cidades em meados de dezembro, se terem transformado em contestação política.
Indiciado no Tribunal Penal Internacional por genocídio e crimes contra a humanidade praticados na região do Darfur, Al-Bashir ficou sob custódia dos militares. Nas ruas, os sudaneses temem que os generais tomem também as rédeas do país e não desarmam, exigindo um governo liderado por civis.
Alaa Salah, uma estudante de arquitetura na Universidade Internacional de Cartum, de 22 anos, tornou-se um símbolo destes protestos, após ser fotografada em cima de um carro a discursar para uma multidão. Em declarações à alemã Deutsche Welle, aquela a quem chamam “Kendaka” (que na cultura núbia significa uma mulher forte e revolucionária) ignorou as ameaças de morte que recebeu após o mediático momento e afirmou-se feliz por ver acontecer uma “revolução” no seu país.
Os protestos na Argélia e no Sudão surgem oito anos após o movimento da Primavera Árabe ter varrido vários países do Norte de África e do Médio Oriente e originado a queda de vários autocratas. Na Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali fugiu para a Arábia Saudita; no Egito, Hosni Mubarak foi deposto pelos militares; e na Líbia, Muammar Kadhafi foi executado numa rua da cidade de Sirte, a 20 de outubro de 2011.
Desde o desaparecimento do coronel líbio, o país mergulhou no caos, dividido em dois poderes que não se entendem: um governo instalado na capital, Trípoli (ocidente), liderado pelo primeiro-ministro Fayiz Al-Sarraaj e reconhecido pela comunidade internacional; um outro com sede na cidade de Tobruk (leste), alinhado com Khalifa Haftar, um general que controla a região e que tem atualmente em curso uma ofensiva militar para tomar a capital.
Na semana passada, por pressão da França, a União Europeia falhou a adoção de uma posição condenatória das movimentações do general líbio. Numa posição que contraria a sensibilidade maioritária na comunidade internacional, Paris colocou-se ao lado de Haftar, que beneficia também de equipamento militar fornecido por Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.
Este posicionamento francês não será alheio ao facto de a Líbia ser um grande produtor de petróleo e de ter as maiores reservas localizadas precisamente nos “domínios” do general Haftar, no leste do país. Até agora, é a petrolífera italiana ENI que tem tido um acesso privilegiado às jazidas líbias, mas a francesa Total já deu mostras de não querer ficar atrás.
Três anos depois do início da Primavera Árabe, os países onde começaram a soprar ventos de mudança pouco têm a celebrar. Na Tunísia, Egito, Líbia, Iémen, Bahrain e Síria as transições revelaram-se mais difíceis do que o derrube dos ditadores ou, noutros casos, a luta pela democracia tornou-se um braço de ferro sangrento
TUNÍSIA
O FAROL DA MUDANÇA
Ficou conhecida como a Revolução de Jasmim (a flor nacional), embora nem todos os tunisinos apreciem a designação. A verdade é que o seu bálsamo contagiou outros povos árabes que se sentiram tentados a imitar os tunisinos que em 28 dias de protestos acabaram com um regime de 23 anos. O ditador Ben Ali fugiu para a Arábia Saudita a 14 de janeiro de 2011, mas três anos passados a transição política continua a marcar passo. As primeiras eleições “livres e democráticas” — a 23 de outubro de 2011, para a Assembleia Constituinte — ditaram a vitória do Ennahda (partido islamita moderado) que, na falta de uma maioria confortável, estendeu a mão a duas formações políticas laicas, de esquerda: o Congresso para a República e o Partido Ettakatol. Para a presidência do país, a Assembleia elegeu um médico e ativista dos Direitos Humanos — Moncef Marzouki, que na juventude viajara até à Índia para estudar a filosofia de resistência pacífica do Mahatma Gandhi. Porém, a falta de progressos a nível económico — o investimento estrangeiro e os turistas tardam a regressar — e o braço de ferro na Assembleia Constituinte sobre o peso da religião na futura Constituição desgastaram a troika no Governo. A situação agravou-se durante 2013 com o assassínio de dois importantes líderes da oposição laica — Chokri Belaid, em fevereiro, e Mohamed Brahmi, em julho —, factos que mergulharam o país num impasse político. No passado dia 9, o Governo concordou em entregar o poder a um novo Executivo, independente, formado por tecnocratas, e demitiu-se. Este desbloqueio político voltou a lançar a Tunísia no caminho da construção democrática, mas já não foi a tempo de viabilizar a aprovação da nova Constituição. Prevista para ser anunciada a 14 de janeiro de 2014 — dia do terceiro aniversário da revolução —, continua a ser votada, por estes dias, artigo a artigo. Não sendo um exemplo de uma revolução pacífica — uma comissão independente apurou que 338 pessoas foram mortas, 66% baleadas —, a Tunísia continua a ser o farol da Primavera Árabe. A transição avança a ritmo lento, mas tem prevalecido o diálogo, uma propensão para o consenso e, apesar de tudo, uma certa aversão à violência. E as Forças Armadas têm-se mostrado equidistantes.
O VENDEDOR AMBULANTE QUE DERRUBOU UM DITADOR
Mohamed Bouazizi foi o tunisino que catalisou todo o movimento da Primavera Árabe. A 17 de dezembro de 2010, este vendedor ambulante de 26 anos regou-se com gasolina e ateou o fogo ao corpo em frente à casa do governador da cidade de Sidi Bouzid. Protestava contra a apreensão da sua banca de frutas e vegetais pela polícia. Com queimaduras em 90% do corpo, sobreviveu ao seu ato desesperado e foi internado num hospital de Ben Arous, onde, a 28 de dezembro, recebeu a visita do Presidente Ben Ali, líder máximo do regime contra o qual se revoltara. Morreria a 4 de janeiro de 2011. Nesse ano, foi-lhe atribuído, a título póstumo, o Prémio Sakharov, pelo contributo para as “mudanças históricas no mundo árabe”. O Governo tunisino homenageou “o mártir da revolução da dignidade” estampando o seu rosto num selo de correio (em cima). Em Sidi Bouzid há uma avenida de 4 km com o seu nome.
EGITO
A FORÇA DOS MILITARES
Hosni Mubarak saiu de cena a 11 de fevereiro de 2011, mas talvez só ano e meio depois muitos egípcios tenham percebido a ironia em que a sua revolução se tinha tornado. Em junho de 2012, a segunda volta das presidenciais foi disputada entre o candidato da Irmandade Muçulmana (Mohamed Morsi, que venceu) e o do antigo regime (Ahmed Shafik, que obteve 48%). Quem representava os jovens revolucionários que, durante 18 dias a fio, não arredaram pé da Praça Tahrir até que Mubarak se fosse? A Irmandade colheu frutos da sua organização, da legitimidade angariada após anos de luta na clandestinidade e por ter sobrevivido à repressão do regime. Sem surpresa, os islamitas venceram as três consultas populares da era pós-Mubarak: legislativas, presidenciais e referendo constitucional. Eleito democraticamente, Mohamed Morsi não viria, porém, a comportar-se como tal. A 22 de novembro de 2012 aprovou uma declaração constitucional que o colocou acima da lei e dos tribunais. Dotou-se de poderes como nunca antes Mubarak tinha feito e, com isso, ditou a sua sentença de morte (política). A 3 de julho de 2013, os militares afastaram Morsi, após, nas ruas, um abaixo-assinado pedindo a sua demissão (campanha “Tamarud”) ter sido assinado por mais de 22 milhões de pessoas — Morsi tinha sido eleito por ‘apenas’ 13 milhões. Para quem assinou o documento, o golpe militar tinha, pois, base democrática. Os apoiantes da Irmandade não se ficaram e, nas ruas, ao estilo de um ‘verão quente’, a violência fez jorrar ainda mais sangue do que durante a revolta anti-Mubarak (que fez 846 mortos). Já este mês os egípcios aprovaram uma nova Constituição. Seguir-se-á uma nova ronda de eleições — a segunda vida da revolução. Até lá, os militares serão o principal poder político. E a mais pequena dissidência não será tolerada: Morsi está detido, a Irmandade Muçulmana foi declarada organização terrorista e ativistas laicos que impulsionaram a revolução de 2011 — como Ahmed Maher, fundador do Movimento 6 de Abril — estão presos. Nem no tempo de Mubarak.
O CIBERNAUTA QUE EMOCIONOU O PAÍS
E MOBILIZOU O FACEBOOK
Khaled Said (o jovem retratado na ilustração) adorava computadores e passava longas horas num cibercafé da cidade de Alexandria, onde vivia com a mãe. A 6 de junho de 2010, dois agentes da polícia de Sidi Gaber irromperam pelo café e arrastaram-no para a rua, onde o espancaram até à morte. Khaled, de 28 anos, provocara a fúria da polícia ao publicar, no YouTube, um vídeo que mostrava vários polícias a distribuírem entre si o produto de uma apreensão de haxixe. A foto do seu rosto desfigurado — tirada na morgue, por um irmão, com o seu telemóvel — tornou-se viral na internet. A 19 de julho de 2010, foi criada, no Facebook, a página “Todos Somos Khaled Said”, para denunciar casos de tortura e “a brutalidade da polícia egípcia” em geral. Neste mural foi convocada a primeira grande manifestação antirregime, que saiu às ruas a 25 de janeiro de 2011. ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS
LÍBIA
O REINADO DAS MILÍCIAS
A revolta na Líbia introduziu uma dinâmica nova na Primavera Árabe: afinal, a rapidez com que caíram ditadores na Tunísia e no Egito era ‘boa demais para ser verdade’. Os líbios tinham agendado o “Dia da Ira” para 17 de fevereiro de 2011, mas o descontentamento popular explodiu dois dias antes, após a prisão de um conhecido advogado, em Bengasi. As forças leais a Muammar Kadhafi — guia da Revolução desde 1969 — tentaram conter os protestos desde a primeira hora. Mas a repressão não evitou o contágio da rebelião a outras grandes cidades. Os ataques contra civis e a suspeita de “crimes contra a humanidade” levaram o Conselho de Segurança da ONU a aprovar, a 17 de março de 2011, a criação de uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia para proteger as populações. No mesmo dia, a NATO começou a bombardear posições do regime. Kadhafi já tinha perdido muito território, mas vendeu cara a derrota: foi apanhado (e executado) apenas a 20 de outubro de 2011, quando muitos líbios já tinham pago com a vida o preço da rebelião — o número de vítimas oscila entre os 2500 e os 25 mil. Oficialmente, o fim da guerra civil foi declarado a 23 de outubro de 2011. No poder, Kadhafi foi hábil a tecer uma teia de lealdades tribais para forjar uma unidade nacional, que ele corporizava. Após o seu desaparecimento, reavivaram-se sensibilidades num país historicamente dividido em três grandes regiões. O novo poder central tem-se revelado fraco perante o poder das milícias (rivais entre si) que se têm recusado a entregar as armas sem que a sua participação na “libertação” do país se traduza em ganhos políticos. Em três anos, a Líbia foi capaz de organizar eleições para o Parlamento — a 7 de julho de 2012, ganhas por uma aliança de tendência liberal composta por 58 partidos — e de recuperar os níveis de produção de petróleo anteriores à revolução. Persiste a insegurança e um baixo nível de insurgência que, ocasionalmente, explode de forma preocupante — como a 11 de setembro de 2012, quando o consulado dos EUA em Bengasi foi atacado e o embaixador assassinado.
O ADVOGADO QUE DEFENDEU OS PRESOS
E ACABOU NA PRISÃO
Fathi Terbil é um advogado e ativista que, em 1996, após o massacre de cerca de 1200 amotinados na prisão de Abu Salim, aceitou representar famílias das vítimas. Tornou-se persona non grata para o regime que, a 15 de fevereiro de 2011, o mandou prender pela sétima vez. A notícia correu depressa e, no mesmo dia, centenas de pessoas reuniram-se em frente à sede da polícia de Bengasi para exigir a sua libertação. Fathi voltou a ver a luz do sol no dia seguinte, mas os protestos não mais pararam na segunda cidade líbia, que se tornaria o berço da revolução. Nesse ano, Fathi recebeu o Prémio Ludovic-Trarieux, atribuído a um advogado que se tenha destacado na defesa dos Direitos Humanos — em 1985, foi dado a Mandela. Hoje, com 43 anos, Fathi é ministro da Juventude e Desporto do Governo Interino. [Fathi Terbil foi escolhido pela revista “Time” (na imagem) como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2011.]
IÉMEN
A COSMÉTICA DO REGIME
Na Tunísia e no Egito, os ditadores demoraram dias a cair. No Iémen, Ali Abdullah Saleh combateu, durante meses, os protestos pró-democracia iniciados a 27 de janeiro de 2011, resistiu às deserções no Governo e nas Forças Armadas, sobreviveu a um atentado à bomba que o atirou para um hospital na Arábia Saudita e ignorou a atribuição do Nobel da Paz a uma voz crítica do seu regime. A 23 de novembro de 2011, disse finalmente que sim e cedeu o poder, após garantir imunidade total — durante a revolução, morreram mais de 2000 pessoas. A 27 de fevereiro de 2012, Saleh marcou presença na tomada de posse do sucessor, o seu vice-presidente, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi — candidato único às presidenciais, onde obteve 99,80% de aprovação. Na cerimónia, Saleh entregou-lhe uma bandeira do país — e também um conjunto de problemas que têm contribuído para a afirmação do Iémen como um dos países mais pobres do mundo. Por um lado, o Iémen alberga um dos braços mais ativos da Al-Qaeda. Saleh abriu os céus iemenitas aos drones dos EUA e, com isso, tornou-se um importante aliado na luta antiterrorismo. Por outro lado, dada a natureza tribal do país — norte e sul estão unificados apenas desde 1990 —, o ativismo de vários grupos secessionistas coloca o país, com frequência, à beira da guerra civil. Lançada em março de 2013, a Conferência para o Diálogo Nacional no Iémen continua reunida sem conclusões, apesar de o Iémen ter previstas eleições gerais para este ano. O país está entregue a um governo de unidade nacional, chefiado por Mohammed Basindawaust, um dissidente do regime anterior que a 31 de agosto de 2013 escapou a uma tentativa de assassínio — situação que também o ex-ditador conhece e, pelos vistos, quer que o povo não o esqueça. No ano passado, Saleh inaugurou um museu em Sana sobre os seus 33 anos de poder. Entre os objetos expostos estão as calças queimadas que vestia quando tentaram matá-lo e estilhaços retirados do seu corpo.
A JORNALISTA QUE VENCEU O REGIME
Os iemenitas chamam-lhe “a mãe da revolução”. Tawakkol Karman deu nas vistas em 2005 quando, aos 26 anos, fundou a Jornalistas Femininas Sem Correntes (WJWC, em inglês). No ano seguinte, a organização iniciou um serviço de mensagens instantâneas para telemóveis, com notícias sobre direitos humanos. Tornou-se tão popular que o Governo o encerrou. A WJWC não baixou os braços e começou a publicar relatórios anuais sobre a liberdade de imprensa no Iémen. Aos poucos, as denúncias começaram a extrapolar o âmbito dos media e a visar também casos de corrupção. A 15 de janeiro de 2011, Tawakkol organizou uma jornada de solidariedade para com a revolução tunisina. Manifestações anteriores já a tinham levado, várias vezes, à prisão e a viver sob ameaças de morte. Em 2011, ganhou o Nobel da Paz.
BAHRAIN
A REVOLUÇÃO IMPOSSÍVEL
Os protestos no Bahrain arrancaram condenados à nascença. Contrariamente às revoltas árabes no Norte de África, esta rebelião mexia com grandes interesses geopolíticos do Médio Oriente. A maioria da população do Bahrain — uma das seis petromonarquias ribeirinhas do Golfo Pérsico — é de confissão xiita; porém, o poder reinante — a família Al-Khalifa — é sunita. Fora de portas, esta rivalidade é protagonizada por dois gigantes: a Arábia Saudita, sunita, e o Irão, xiita, separados apenas pelo Golfo Pérsico. O sucesso de uma revolta xiita na Península Arábica causa calafrios ao regime saudita (a braços com uma minoria xiita problemática). Por isso, foi sem surpresa que, mal o rei Hamad bin Isa Al Khalifa pediu ajuda aos vizinhos para conter os protestos que se faziam ouvir desde 14 de fevereiro de 2011 — exigindo mais reconhecimento político para os xiitas —, cerca de 1000 militares sauditas (e 500 dos Emirados Árabes Unidos) tenham entrado no Bahrain. A repressão que se seguiu não poupou ativistas, blogueres, médicos — condenados por prestar assistência a vozes críticas do regime —, nem mesmo o património. A 18 de março de 2011, as autoridades mandaram derrubar a estátua do centro da Praça da Pérola, em Manama, que fora o palco dos protestos. A praça foi cimentada e é hoje um cruzamento da capital como outro qualquer. Uma Comissão de Inquérito Independente, ordenada pelo monarca do Bahrain e composta por personalidades independentes estrangeiras, apurou que o regime recorreu a tortura sistemática e a outras formas de abusos físicos e psicológicos contra os manifestantes. A Comissão também refutou as acusações feitas pelo regime de que os protestos foram instigados pelo Irão. A revolução no Bahrain desapareceu do noticiário internacional, mas, na internet, o sítio do Centro para os Direitos Humanos do Bahrain não para de noticiar casos de cidadãos que são presos e condenados após fazerem uso da liberdade de expressão. Só em 2013 foi o que aconteceu com 651 cidadãos, rotulados de ameaças à segurança por terem participado nos protestos.
A ATIVISTA QUE FEZ A REVOLUÇÃO A PARTIR DO TWITTER
“Quando estamos acorrentados, vivendo sem dignidade ou sem direitos e curvando-nos perante ditadores criminosos, o primeiro passo a dar é esquecer os medos e perceber que temos o direito… de nos zangarmos.” Esta é a mensagem de apresentação de Zainab al-Khawaja no Twitter — onde é @angryarabiya (“a árabe zangada”) —, a arma que mais usou para divulgar os protestos pró-democracia no Bahrain. Nascida em 1983, Zainab herdou os genes do ativismo do pai, Abdulhadi Abdulla Hubail al-Khawaja, fundador do Centro para os Direitos Humanos do Bahrain, que cumpre uma pena de prisão perpétua por participação em manifestações antirregime. Zainab também já foi detida várias vezes. Inseparável do Blackberry, tanto alinha em protestos coletivos como se senta sozinha no meio de uma autoestrada.
SÍRIA
A GUERRA INTERMINÁVEL
No início de 2014, as Nações Unidas anunciaram que iam parar de atualizar o número de mortos na Síria. A contabilidade oficial ficou nos “mais de 100 mil mortos”, uma catástrofe a que se soma o facto de um terço dos sírios ter fugido de casa — dois milhões refugiaram-se noutros países e cinco milhões são deslocados internos. “A Síria é a grande tragédia deste século”, disse António Guterres, alto comissário da ONU para os Refugiados. A contestação a Bashar al-Assad começou a 15 de março de 2011 com o mesmo espírito das revoluções em Tunis ou no Cairo. Porém, a sua fase primaveril durou pouco tempo. O Presidente sírio não hesitou em recorrer às armas para reprimir a oposição e, valendo-se da sua superioridade aérea, tem conseguido garantir a sobrevivência do seu regime, alauita — etnia minoritária entre os sírios e de inspiração xiita (o que lhe tem valido o apoio do Irão). Beneficiando do interesse da Rússia — que tem em Tartus a sua única base naval nos mares quentes —, Damasco nunca foi condenado no Conselho de Segurança da ONU: Moscovo ameaça usar o direito de veto. No terreno, há muito que a guerra deixou de ser um confronto entre forças leais ao regime e o Exército Livre da Síria, o grupo rebelde que angariou apoio ocidental. A presença de grupos jihadistas, alguns fiéis à Al-Qaida, que se combatem uns aos outros, quase torna Assad “um mal menor”. Hoje, a Síria é uma manta de retalhos com pedaços do território controlados pelo regime, outros pelos rebeldes, outros por jihadistas e outros nas mãos da minoria curda, que ainda esta semana declarou a autonomia de uma região do norte. Vizinho da Síria, o Iraque, que tem índices de mortalidade semelhantes aos do tempo da guerra, é um exportador de instabilidade. E o Líbano, onde a classe política se divide entre os pró-Síria e os anti-Síria, tem visto aumentar os ataques suicidas. Atento, Israel já fez vários bombardeamentos dentro da Síria para impedir que material perigoso chegasse ao seu inimigo — e aliado de Assad — Hezbollah (xiita libanês). No caos da Síria, tudo é possível.
A CRIANÇA QUE FOI COM OS PAIS À ‘MANIF’
E NUNCA MAIS VOLTOU
A gozar o fim de semana, a família de Hamza Ali Al-Khateeb, de 13 anos (na ilustração a perseguir Bashar al-Assad), destinou aquela sexta-feira, 29 de abril de 2011, para participar num protesto em Jizah, na província de Daraa. Havia semanas que os ânimos estavam exaltados, após 15 crianças terem sido presas por escreverem nas paredes da escola o slogan que, na televisão, ouviam gritar em vários países árabes: “O povo quer a queda do regime.” Em Jizah, Hamza sumiu-se no caos gerado pela repressão da polícia. A 25 de maio, o cadáver foi devolvido à família, com marcas de queimadura, ferimentos de bala e os órgãos genitais decepados. As imagens do corpo e os indícios de tortura levaram muitos sírios a suspeitar dos serviços secretos. Os protestos continuaram e, além do “Dia da Ira” (às sextas-feiras), os sírios passaram a assinalar, aos sábados, o Dia de Hamza. ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS
(Legenda do mapa: A preto, Tunísia, Líbia, Egito e Iémen, onde os protestos derrubaram os líderes. A vermelho, a Síria, onde aos protestos sucedeu a guerra. A azul, o Bahrain, com manifestações reprimidas com ajuda externa)
Artigo publicado na Revista do “Expresso”, a 25 de janeiro de 2014
Herdeiros dos tronos da Jordânia e de Marrocos, cresceram e formaram -se no Ocidente. Regressaram como soberanos, e desde o início marcaram uma nova forma de reinar: querem estar próximos dos seus povos
À porta do terceiro milénio, o mundo árabe revela indícios de querer liderar uma espécie de “revolução silenciosa”. Jordânia e Marrocos têm, desde o ano passado, soberanos jovens que, com aparente naturalidade, imprimiram um estilo novo de reinar — porventura mais moderno e menos “imortal” — e afastaram a tentação de serem permanentemente comparados aos seus carismáticos pais. Abdallah II e Mohammed VI ainda estão a escrever o primeiro capítulo dos seus reinados, mas talvez seja já suficiente para afugentar o perigo de passarem à história como “o filho de Hussein” e “o filho de Hassan II”.
Com alguns dias de reinado, Abdallah da Jordânia abriu o seu “livro de aventuras” e assinou uma forma original de governar. De tempos a tempos, inspira-se no maior dos mestres do disfarce, encarna o mais anónimo dos cidadãos e sai à rua disposto a avaliar, com os seus próprios olhos, o empenho dos funcionários governamentais e a auscultar as queixas do seu povo.
“Trajado a rigor”, já fez de repórter de televisão, de taxista, de mendigo e de doente. Num centro de assistência social, fez tantas perguntas aos idosos que esperavam por atendimento que teve mesmo de enfrentar a ira dos responsáveis pelo estabelecimento.
Já o seu pai era um perito nestas artimanhas. Da última vez que o fizera, há pouco menos de dez anos, numa altura em que a Polícia andava a testar um novo equipamento de radar, saiu do palácio montado numa moto, conduziu-a a alta velocidade, pelo centro de Amã, e só foi apanhado 90 minutos depois.
Abdallah assinou uma forma original de governar. Já fez de repórter de televisão, de taxista, de mendigo e de doente
O método de Abdallah pode, pois, não ser inédito, mas é altamente mediático e popular. Quando, no “local do crime”, se vê obrigado a revelar a sua identidade, é frequentemente brindado com aplausos. E as consequências destas missões incógnitas não podiam ser mais satisfatórias: “Eles começaram a tratar toda a gente como um rei, porque nunca sabiam se a próxima pessoa da fila a ser atendida era o rei”, afirmou Abdallah.
Segundo o monarca, a ideia inicial era usar os disfarces para contornar algumas situações mais incómodas e passar despercebido. Em Maio do ano passado, por exemplo, durante uma visita a Washington, Abdallah resolveu ir ao cinema. “Acabei no meio de um desfile de dez automóveis, com carros da polícia, sirenes e 26 agentes dos serviços secretos. Eu nunca me tinha sentido tão embaraçado na minha vida”.
Em Marrocos, Mohammed ainda não tentou a arte do disfarce, mas, tal como o seu colega jordano, faz do contacto directo com as populações ponto de honra. E quando se refugia num dos seus maiores prazeres — a condução de potentes automóveis —, pára sempre que alguém o reconhece e lhe pede para falar. Ele “tem uma personalidade afectuosa e um interesse pessoal nas pessoas que encontra, a quem gosta de perguntar pelas famílias e empregos. Parece não gostar de protocolos e cerimoniais e prefere uma abordagem mais modesta”, assim o caracterizou um alto funcionário marroquino.
Para quem não convive com Mohammed, a sua personalidade vai-se compondo à custa de pequenos episódios. O monarca alauita surpreende ao não fazer uso das “benesses” inerentes à sua condição real. Quando lhe apetece jogar golfe, não ordena o encerramento do campo, para que dele usufrua em exclusividade, e quando conduz.., obedece aos semáforos.
Em Marrocos, Mohammed, tal como o seu colega jordano, faz ponto de honra do contacto directo com as populações
Quando, há pouco menos de meio ano, uma avaria geral deixou o palácio real às escuras, três empresas apresentaram orçamento para a reparação, um dos quais bastante inferior aos restantes. Intrigado, Mohammed quis saber qual a razão da diferença. “Não há necessidade de arranjar toda a instalação, como os outros preconizam. Basta reparar duas ou três coisitas”, justificou o electricista. Sensibilizado, o rei não só lhe adjudicou a obra como ainda arredondou muito por alto o seu preço. “Em sinal de encorajamento”, precisou Mohammed.
Consta que, num festival de música, ficou furioso quando reparou que tinha sido montada uma estrutura para o proteger da chuva e que nada tinha sido feito para abrigar os artistas. Cioso da sua vida privada, Mohammed reage mal à publicação de fotografias suas disparadas em momentos de descontracção, seja aos comandos de um “jet-ski” ou durante um passeio em “jeans”. Inseparável dos seus óculos de sol, não se livra da fama de “playboy”, assente no facto de, aos 36 anos, continuar solteiro.
De facto, na cultura árabe, não é frequente um herdeiro ascender ao trono sem ter, previamente, constituído família. No caso de Mohammed, porém, tal não dificultou a sua aceitação por parte dos súbditos, embora no caso jordano o casamento tenha engrandecido a popularidade do soberano. A 10 de Junho de 1993, o príncipe Abdallah tinha casado com Rania al-Yassin, uma palestiniana formada em gestão, nascida no Kuwait, em 1970. Esposa dedicada e mãe extremosa de dois pequenos filhos, Rania é uma digna herdeira da beleza e “charme” da rainha Noor — a última esposa do rei Hussein —, bem como do seu espírito solidário e voluntarista. A sua coroação aos 28 anos tornou-a a mais jovem rainha do mundo e catapultou-a para o exíguo firmamento das estrelas da realeza.
Hoje, o casal real hachemita é assunto obrigatório da imprensa “cor-de-rosa”, ameaçando seriamente o protagonismo que a família real monegasca assumiu após o desaparecimento da princesa Diana. Fora dos compromissos oficiais, o casal procura levar uma vida tão normal quanto possível. Uma vez por semana, fazem questão de sair com os amigos para uma noitada de convívio. “É bom as pessoas verem o rei e a rainha a comer um hamburguer no Planet Hollywood. Passa a mensagem certa: ‘Ali estão eles, fazem parte da nossa sociedade’”, exemplificou Abdallah.
Mas o simbolismo da rainha Rania transcende, em muito, o “glamour” social. Desde que Abdallah foi nomeado príncipe herdeiro, a 25 de Janeiro de 1999, ela tem representado um papel importante na afirmação do marido junto do seu povo.
Abdallah cresceu sem a pressão de vir a ser o futuro rei, apesar de ser o varão do soberano
Nascido a 30 de Janeiro de 1962, Abdallah cresceu sem a pressão de vir a ser o futuro rei, apesar de ser o primeiro varão do soberano. Em 1965, uma emenda constitucional tinha-o afastado da linha de sucessão, devido à sua tenra idade e ao facto de ser filho de uma inglesa — Antoinette (Toni) Gardiner —, o que motivara o “veto” da influente mãe de Hussein. O mesmo diploma nomeara Hassan, um irmão mais novo do rei, seu herdeiro, mas os “abusos” por ele cometidos, enquanto regente, durante a longa ausência do malogrado rei, em 1998 — quando esteve em tratamentos, nos EUA — desgostaram Hussein. Por isso, embora lógica, a entronização de Abdallah foi inesperada. E não deixou de causar alguma surpresa, até porque era sabido que o favorito de Hussein era Hamza, o filho mais velho do seu matrimónio com Noor, nascido em 1980.
A escolha de Abdallah causou surpresa e insegurança num povo que temia pelo seu futuro, agora nas mãos de um “desconhecido”. “Eu fui de repente atirado para uma posição à qual nunca tinha aspirado, nem tão-pouco desejado, mas tal foi a directiva de Sua Majestade”, confessou Abdallah. “Não tenho nenhuma preparação como príncipe herdeiro, mas também não acho que alguém esteja preparado para ser rei até calçar os sapatos”, era esta a sua filosofia.
E é precisamente perante as dificuldades em suceder ao pai no coração dos súbditos que a palestiniana Rania constitui um “trunfo” para Abdallah. Num país onde 60% da população é originária da Cisjordânia, a presença de um dos seus na corte tranquiliza, mesmo que ao lado de uma pessoa que passou metade da vida além- fronteiras. “Afinal de contas, ele é casado com uma palestiniana”, resignou-se Abu Adnan, um comerciante de verduras de Amã. Abdallah efectuou todos os seus estudos entre a Inglaterra e os EUA, facto que o faz dominar na perfeição a língua inglesa e ter algumas deficiências na pronúncia de certos sons do árabe.
Contrariamente, Mohammed, o primeiro filho varão de Hassan, fora preparado para reinar, desde o dia em que nasceu, a 21 de Agosto de 1963, pelo que fala fluentemente árabe, francês, espanhol e inglês. Sob a severa e exigente orientação do pai — a quem passou a tratar por “Majestade”, aos 13 anos —, Mohammed estudou em Marrocos. Depois de se licenciar em Direito, em 1985, rumou para Bruxelas — onde estagiou junto de Jacques Delors, na Comissão Europeia — e para a sede das Nações Unidas, em Nova Iorque. Em 1993, doutorou-se na Universidade de Nice. “Quero que os meus filhos tenham horror da mediocridade”, era uma das máximas de Hassan.
Contrariamente ao pai, Mohammed inscreveu os assuntos internos como tarefa prioritária
Por causa do carácter crucial que atribuía à formação, os receios de Estado sobrepuseram-se à afectividade quando, em Setembro de 1985, o Mercedes que o filho guiava caiu numa ravina. “A inquietude do rei foi superior à do pai. Eu apercebi-me que o príncipe herdeiro tinha passado ao lado de uma catástrofe. Eu vi 20 anos de educação, de formação, completamente destruídos”, declarou Hassan II.
Durante dois longos reinados — 46 anos de Hussein e 38 de Hassan —, os príncipes viveram na sombra de dois líderes míticos que asseguraram a unidade nacional com punhos-de-ferro. A entronização dos dois jovens, horas após a morte dos pais — a de Abdallah II a 7 de Fevereiro de 1999 e a de Mohammed VI a 23 de Julho seguinte —, correspondia à coroação de dois verdadeiros enigmas, mas, ao mesmo tempo, à injecção de sangue novo em reinos politicamente estagnados, economicamente débeis e socialmente fracturados. Afirmou então Abdallah: “Eu tenho 37 anos e 70% do meu país é mais novo do que eu, portanto eu penso que os líderes da minha geração talvez reflictam melhor as atitudes das gerações mais novas”.
Quando subiu ao trono, a juventude de Mohammed foi celebrada de forma eufórica. Em Marrocos, 80% da população nasceu após a independência (1956). “Eu não posso saber, com certeza, que tipo de rei será Mohammed, mas já era altura de um homem mais jovem assumir o comando”, confessou um comerciante de Casablanca. “O rei da mudança chegou. Muitas cabeças vão rolar. Sua Majestade vai ser uma boa surpresa. Ele viu os erros do seu pai e vai fazer o contrário! Todo o mundo procura a justiça, o fim da corrupção, a liberdade. Graças à sua mentalidade de jovem, nós vamos consegui-lo”, escreveu um jornalista marroquino.
Contrariamente ao pai, cuja reconhecida visão histórica e inteligência lhe tinham granjeado um papel de destaque na aproximação israelo-árabe, Mohammed inscreveu os assuntos domésticos como tarefa prioritária da sua ordem de trabalhos. “Hassan II era um génio da política externa, não da interna! Como compensação, o que interessa ao novo rei somos nós, as nossas necessidades”, escreveu o mesmo jornalista. “Hassan II evocava, facilmente, a propósito da dureza da vida quotidiana dos seus súbditos, a coragem do seu ‘querido povo’. Enquanto a reacção de Sidi Mohammed consiste, antes, em interrogar-se o que pode ser feito para melhorar a situação. Ele vê os indivíduos onde o seu pai não via mais do que o povo”, analisou um observador ocidental.
Na Jordânia, Abdallah é um modelo no que toca à combinação da modernidade com a tradição. Com a mesma facilidade com que leva a família para umas férias na Côte d’Azur, ele senta-se nas tendas das tribos beduínas e escuta os sábios conselhos dos anciãos. “Cada monarca tem o seu próprio estilo. Hussein era Deus, o pai. Abdallah é mais humano, é antes um irmão mais velho”, disse um jornalista.
Na Jordânia como em Marrocos, os velhos soberanos deixaram de herança uma monarquia incontestada. E mesmo aqueles que não morrem de amores pela instituição monárquica não ficam indiferentes ao permanente “estado de graça” em que os jovens monarcas parecem viver. “Vamos acabar sendo todos monárquicos!”, afirmou um jornalista marroquino. “Hoje, com o nosso rei Mohammed, sentimo-nos como os espanhóis que não são monárquicos mas antes juancarlistas”, disse um outro.
Mohammed e Abdallah são amigos próximos. Juntamente com o Sheik Hamad, do Bahrain, eles são as faces visíveis de uma nova geração de líderes num mundo árabe onde ainda predominam as personalidades que fizeram a transição do período colonial para a independência. Em sentido figurado, são uma espécie de crianças desprotegidas rodeadas de gerontes experientes. “Nós fomos todos educados no Ocidente e somos muito amigos. Estamos sempre a falar e comparamos notas, comparamos problemas — que são todos muito parecidos — e partilhamos as nossas experiências e como resolvemos os problemas. É, na verdade, fascinante. Eu não tenho esta intimidade com a geração mais velha”, afirmou Abdallah.
Com percursos ainda curtos, estas almas gémeas dão o mote para a era das sucessões que se aproxima e onde os casos sírio, saudita, iraquiano e palestiniano serão, com toda a certeza, alvo de muita curiosidade.
Artigo publicado na Revista do “Expresso”, a 11 de março de 2000
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.