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Aos 77 anos, Aung San Suu Kyi tem pela frente (pelo menos) 33 de prisão. Que hipótese há de sair em liberdade?

Desde que regressou à sua Birmânia natal, Aung San Suu Kyi já viveu sensivelmente tanto tempo em liberdade como presa. Detida pela última vez na sequência do golpe militar de 1 de fevereiro de 2021, enfrenta uma maratona de julgamentos que pode levar a que nunca mais saia em liberdade. “Foi tudo planeado para desacreditar Suu Kyi e garantir que não haja retorno político”, comenta um analista. “Todo o processo visa acabar com as aspirações dela à liderança nacional.”

Quando, aos 43 anos de vida, Aung San Suu Kyi decidiu voltar ao país onde nascera, e de onde saíra com 15, encontrou uma Birmânia (hoje Myanmar) em ebulição. Corria o ano de 1988 e, nas ruas, gigantescas manifestações populares desafiavam a autoridade da junta militar, no poder.

Suu Kyi regressara por razões do coração, motivada pela vontade de acompanhar os últimos tempos de vida da mãe, que sofrera um grave acidente vascular cerebral. Mas o seu ADN político não a deixou indiferente em relação à agitação interna.

Filha do general Aung San, o herói da independência da Birmânia e considerado o pai das forças armadas do país (Tatmadaw), assassinado quando ela tinha apenas dois anos, Suu Kyi tornou-se um ativo do movimento pró-democracia. Ajudou a fundar a Liga Nacional pela Democracia (LND) e proferiu um discurso memorável em frente ao pagode Shwedagon, em Rangum, para meio milhão de pessoas. Com isto tornou-se alvo dos generais.

A 20 de julho de 1989, cerca de um ano após voltar à Birmânia, Suu Kyi foi colocada em prisão domiciliária pela primeira vez. Hoje, cumpre o quarto período de detenção.

Nobel da Paz em clausura

Dos cerca de 35 anos que Suu Kyi viveu em Myanmar, mais de 17 foram passados em clausura: 1989-1995, 2000-2002, 2003-2010 e desde 2021. Foi durante um destes períodos, em 1991, que recebeu o prémio Nobel da Paz “pela sua luta não violenta pela democracia e os direitos humanos”. Na cerimónia em Oslo, representaram-na o marido e os dois filhos.

Aung San Suu Kyi proferiu o seu discurso de aceitação do Nobel da Paz, em Oslo, 21 anos após ter sido galardoada DANIEL SANNUM-LAUTEN / AFP / GETTY IMAGES

Aung San Suu Kyi foi detida pela última vez a 1 de fevereiro de 2021, na sequência de um golpe militar que depôs o Governo que liderava. Desde então, a sua vida transformou-se numa maratona de julgamentos que já lhe valeram um cúmulo jurídico de 33 anos de prisão. Pela frente, enfrenta outras acusações que podem valer-lhe novas sentenças.

A última pena foi-lhe atribuída a 30 de dezembro passado: sete anos de prisão por delitos relacionados com o uso de um helicóptero quando era líder de facto do país.

“Esta sentença final de condenação pela compra de um helicóptero sinaliza o culminar de um julgamento brutalmente ridículo desde o golpe de 2021. Foi tudo planeado para desacreditar Suu Kyi e garantir que não haja retorno político”, diz ao Expresso David Scott Mathieson, analista independente em Chiang Mai (Tailândia), que viveu oito anos em Rangum.

Nos últimos dois anos, sucessivas penas de prisão foram aplicadas a Suu Kyi por incitamento, violação das restrições justificadas com a covid-19, posse ilegal de equipamentos de rádio, violação de uma lei de segredos de Estado da época colonial, corrupção e tentativa de influência de funcionários eleitorais.

Aung San Suu Kyi, no n.º 54 da University Avenue, uma casa de estilo colonial ribeirinha ao lago Inya, onde ela viveu anos em prisão domiciliária CHRISTOPHE LOVINY / GETTY IMAGES

Aung San Suu Kyi é o principal alvo de uma campanha de repressão política levada a cabo pelo regime dos generais contra líderes políticos, ativistas e todos quantos questionem o golpe que terminou com a experiência democrática birmanesa ensaiada a partir de 8 de novembro de 2015, quando o partido de Suu Kyi venceu as eleições legislativas por expressivos 58% dos votos.

Segundo a Associação de Assistência aos Presos Políticos, desde o golpe de 1 de fevereiro de 2021 e até esta segunda-feira:

  • 17.041 pessoas foram detidas
  • 13.321 estão ainda detidas
  • 2711 foram mortas pela junta militar
  • 3696 foram libertadas

Hoje, aos 77 anos, a perspetiva de Suu Kyi passar mais 33 na prisão equivale, na prática, a uma sentença de prisão perpétua. “Quer [os generais] a mantenham encarcerada ou a troquem por concessões e forneçam uma amnistia, todo o processo visa acabar com as aspirações dela à liderança nacional”, diz Mathieson.

Acordo é pouco provável

“Há pouca probabilidade de qualquer tipo de governação compartilhada. Se os militares tentarem usar Suu Kyi como moeda de troca para debelar a violência por todo o país, a realidade vai além disso”, acrescenta o antigo investigador da Human Rights Watch.

A 13 de fevereiro de 2015, envolta numa multidão de apoiantes, na cidade de Natmauk, após uma cerimónia do 100º aniversário do nascimento do seu pai YE AUNG THU / AFP / GETTY IMAGES

“Duvido que muitos dos novos grupos a escutassem se ela tentasse fazer um acordo com o Conselho de Administração do Estado [nome formal da junta militar]. Mesmo que o regime quisesse um acordo, eles não são fiáveis, e muitos dos grupos armados que nunca viram Suu Kyi como sua líder não vão receber ordens dela.”

Guerras étnicas

A atual Constituição de Myanmar, de 2008, dividiu o país em sete estados étnicos e reconhece a existência de 135 grupos étnicos — que não os rohingya, a minoria muçulmana do país, perseguida pelo regime.

Vários desses grupos étnicos estão envolvidos numa luta armada com o poder central, que deixa Myanmar, com frequência, à beira de um precipício de violência. No último dia de 2022, a junta prorrogou o acordo de cessar-fogo com os grupos armados até ao fim de 2023. Desde 21 de dezembro de 2018, essa trégua já foi prolongada 21 vezes.

“Os militares calcularam mal o seu golpe e agitaram todo o país contra eles”, diz Mathieson. “Provocaram uma geração mais jovem a lutar contra o regime repressivo. Muitos desses jovens não ouviriam Suu Kyi se ela tentasse liderá-los quando fosse libertada. O país mudou drasticamente.”

Dirigente democrática foi criticada

Aung San Suu Kyi não é uma personalidade imune a críticas. Se a atribuição do Nobel da Paz foi um reconhecimento unânime, o seu silêncio em relação à repressão aos rohingya colocou-a sob fogo. Em 2019, diante do Tribunal Penal Internacional, em Haia, defendeu os militares birmaneses das acusações de genocídio contra os rohingya (palavra que ela nunca usou).

A imagem de Aung San Suu Kyi e a data do golpe militar tatuadas nos braços de birmaneses a viver na Tailândia. A saudação de três dedos é um gesto pró-democracia PEERAPON BOONYAKIAT / GETTY IMAGES

Várias vozes defenderem que o Nobel lhe fosse retirado e algumas organizações recuaram no reconhecimento público que lhe tinham prestado. Em 2018, a Amnistia Internacional revogou o Prémio Embaixador de Consciência que lhe fora atribuído em 2009. E em 2020, Suu Kyi foi excluída da comunidade de laureados com o Prémio Sakharov dos Direitos Humanos por causa “da gravidade e escala da violação dos direitos humanos” que os rohingya enfrentam na Birmânia.

“Apesar das suas muitas falhas, Suu Kyi é inocente de todas essas acusações ridículas [pelas quais está a ser julgada] e é uma refém política”, conclui Mathieson. “O mundo deve exigir a sua libertação imediata e incondicional, juntamente com a dos outros 13 mil presos políticos.”

(FOTO Aung San Suu Kyi, na sede da Liga Nacional pela Democracia, a 8 de dezembro de 2010, dias após ser libertada do seu terceiro período de detenção GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de janeiro de 2023. Pode ser consultado aqui

Junta militar retomou as execuções. Porquê?

O alvo foram quatro ativistas pró-democracia. Há mais de 100 sentenças de morte à espera

1. Porque há críticas a Mianmar?
Esta semana, a junta militar no poder anunciou a execução de quatro ativistas pró-democracia, acusados de contribuir para “atos terroristas” ao oporem-se ao golpe militar de 1 de fevereiro de 2021. Desde o afastamento do Governo democraticamente eleito, gerou-se um Movimento de Desobediência Civil com várias formas de protesto: bater em panelas, manifestações de rua, recusa em pagar contas e boicote a lotarias patrocinadas pelo Estado e empresas ligadas aos militares. A junta tem em curso uma repressão à campanha.

2. Quão surpreendentes foram as execuções?
O regime não aplicava sentenças de morte desde a década de 80. E há receios de que não se fique só por estas quatro. Segundo a Associação de Assistência a Presos Políticos, desde o golpe, tribunais militares já decretaram 117 penas capitais. Esta semana, ao rebater a condenação internacional, um porta-voz da junta mostrou determinação e disse que os ativistas “mereciam muitas sentenças de morte”. Segundo o jornal “The Irrawaddy”, os quatro foram enforcados.

3. Onde está Aung San Suu Kyi?
A líder da oposição e Nobel da Paz está presa, mais uma vez. Era ela que liderava o Governo civil, eleito nas urnas, deposto pelo golpe militar do ano passado. Aos 77 anos, Suu Kyi está na prisão de Naypyitaw a cumprir pena de 11 anos. Acusada de fraude eleitoral, enfrenta um total de 11 acusações que podem valer-lhe um cúmulo jurídico de mais de 150 anos atrás das grades.

4. Mianmar é um país em paz?
A impopularidade do golpe levou alguns grupos a pegar em armas para se juntarem à resistência. Isto acontece num país cuja Constituição reconhece 135 grupos étnicos, que não os rohingya (muçulmanos), o que tem valido sanções internacionais a Mianmar. Alguns grupos levam anos de rebelião contra o poder central. A 15 de julho, oito soldados governamentais foram mortos em Myawaddy Township, no estado dos Karen, o grupo armado mais antigo.

5. Quem tem influência no país?
A China, que ali tem interesses, como o Corredor Económico China-Mianmar, um conjunto de infraestruturas projetadas ao abrigo da Nova Rota da Seda. Mas a junta preza o isolamento. No último debate na Assembleia-Geral da ONU, em que os 193 países levam representantes a discursar em Nova Iorque, apenas dois faltaram: o Afeganistão dos talibãs, a quem a ONU fechou a porta, e Mianmar.

(FOTO Min Aung Hlaing, líder da Junta militar de Myanmar WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Aung San Suu Kyi. Presa quatro vezes por lutar pela democracia

Filha de um herói da independência da Birmânia (atual Myanmar), a vida de Aung San Suu Kyi confunde-se com a história do próprio país. Nos últimos 32 anos o braço-de-ferro que a Nobel da Paz tem travado com os generais levou-a a passar quase metade desse tempo em prisão domiciliária. O golpe militar de 1 de fevereiro colocou-a de novo em regime de detenção. Hoje e sempre, o mesmo “crime”: a luta pela democracia no seu país

O projeto de democracia em Myanmar (antiga Birmânia) sofreu um duro golpe, faz esta segunda-feira duas semanas, com a detenção de Aung San Suu Kyi, principal rosto da esperança de um país livre, após décadas de governação militar. Escreve o jornal “The Irrawaddy” (publicado por birmaneses exilados no norte da Tailândia) que neste dia 15 de fevereiro um tribunal distrital em Naypyitaw (capital de Myanmar) adiou uma audiência do seu caso para a próxima quarta-feira.

A chefe de Governo birmanesa deposta é acusada de ter violado a Lei de Importação e Exportação do país, ao importar walkie-talkies sem autorização. Se for condenada, poderá enfrentar uma pena de três anos de prisão — o seu quarto período de detenção nos últimos 32 anos.

“Gosto da Aung San Suu Kyi. Gosto da Liga Nacional pela Democracia [partido que lidera], na medida em que está a lutar pela democracia e pelos direitos do povo”, diz ao Expresso Faruque, um rohingya de 32 anos, a partir do campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh.

Os rohingya não estão entre os apoiantes mais entusiastas da Nobel da Paz, que respondeu com silêncio e inação à repressão desta minoria muçulmana em Myanmar. Mas Faruque tenta ver mais além… “A maioria dos rohingya está feliz [com a detenção de Suu Kyi], mas eu não. Acredito na democracia e acredito que um Governo democrata pode resolver os nossos problemas”, diz. “Mas discordo de algumas políticas de Aung San Suu Kyi. Ela nunca defendeu os rohingya, apenas os militares.”

Filha do general Aung San — líder nacionalista, herói da independência e fundador das forças armadas birmanesas (“Tatmadaw”) —, o seu respeito e reverência em relação à instituição militar vêm-lhe do berço. Suu Kyi partilha com os generais as crenças nacionalistas, mas diverge deles ao defender a subordinação dos militares à autoridade de um governo eleito. Essa visão para o país já a privou de liberdade em quatro ocasiões.

20.07.1989 — 10.07.1995

Independente desde 1948, a Birmânia (Myanmar, desde 1989) tem vivido maioritariamente sob o jugo dos militares. Aung San Suu Kyi vivia em Inglaterra — onde casara e tivera dois filhos — quando, em 1988, decidiu regressar ao seu país natal para cuidar da mãe doente. Encontra um país revoltado com uma gestão económica desastrosa e com a repressão política. Os estudantes estão à cabeça da contestação que atinge o pico a 8 de agosto, no que ficou conhecido como a “revolta do dia 8888”, reprimida de forma sangrenta.

Suu Kyi junta-se aos manifestantes e funda um partido: a Liga Nacional pela Democracia (LND). Ser filha de um herói do país torna-a uma voz mobilizadora. A 20 de julho de 1989, é detida ao abrigo da Lei de Proteção do Estado e colocada em prisão domiciliária, no n.º 54 da Avenida da Universidade, em Rangum.

Quando os militares acedem a realizar eleições, para um comité constitucional, a 27 de maio de 1990 — as primeiras multipartidárias desde 1960 —, o partido de Suu Kyi não se ressente da detenção da líder e conquista 392 dos 485 lugares. Os militares não reconhecem os resultados, mas o mundo reconhece o valor da vitória: em 1991, Suu Kyi ganha o Prémio Nobel da Paz. O marido e os dois filhos representam-na na cerimónia, em Oslo.

Aung San Suu Kyi é libertada a 10 de julho de 1995, ao fim de seis anos de reclusão. O seu partido desafia uma proibição governamental e volta a nomeá-la secretária-geral. Continua o braço-de-ferro com os militares.

23.09.2000 — 06.05.2002

De regresso à vida política, Aung San Suu Kyi percebe que a sua liberdade é ilusória. Em 1996 tenta ir de comboio até Mandalay, mas não passa da estação. As autoridades desacoplam a carruagem em que devia seguir, alegando problemas técnicos.

Quatro anos depois, tinham as universidades acabado de abrir portas após três anos e meio encerradas pelo regime, para calar os protestos antigovernamentais, a líder da oposição tenta repetir a viagem até à segunda cidade do país. Planeia fazer a deslocação na companhia de outros militantes do seu partido, para confirmar denúncias de que o regime interferia nas atividades da LND. Mais uma vez, fica confinada numa sala de espera da estação ferroviária.

Seguem-se 19 meses de prisão domiciliária, que terminam a 6 de maio de 2002. Nesse dia, uma multidão de apoiantes acompanha-a num passeio triunfal por Rangum (antiga capital e maior cidade de Myanmar) até à sede do seu partido, onde Suu Kyi declara que a sua liberdade é incondicional. Está de volta ao combate político.

30.05.2003 — 13.11.2010

Sensivelmente um ano após sair em liberdade, Suu Kyi volta a ser presa, desta vez para cumprir o período mais longo de reclusão a que foi sujeita: sete anos e seis meses. Nesse 30 de maio de 2003, um grupo de simpatizantes da junta militar ataca a comitiva da líder da oposição, perto da cidade de Depayin. Oficialmente morrem quatro pessoas, mas a oposição reclama um verdadeiro massacre, com pelo menos 70 vítimas mortais.

Suu Kyi é levada para a prisão de Insein, os escritórios do seu partido são encerrados e as universidades fecham por tempo indeterminado. Meses depois, é transferida para sua casa, onde continua a cumprir pena.

Em setembro de 2007, Suu Kyi assoma brevemente ao portão de casa para saudar centenas de monges que ali se dirigiram para saudá-la. Os religiosos budistas levavam dias de protestos contra a junta militar, que ficaram conhecidos como a Revolução de Açafrão (a cor das suas túnicas).

Myanmar continua em polvorosa e, no ano seguinte, a 10 de maio, os generais promovem um referendo constitucional que mais parece destinado a cortar as asas à líder da oposição. Uma das cláusulas impede a candidatura à presidência a cidadãos com nacionalidade estrangeira ou com familiares diretos nessa condição. Era o caso de Suu Kyi, casada com um inglês (entretanto falecido sem que pudesse ter ido visitá-lo no fim da vida, pois não a deixariam voltar a entrar em Myanmar) e mãe de dois rapazes com cidadania britânica.

O cerco do regime aperta-se ainda mais quando um norte-americano de 53 anos invade a sua propriedade, a 30 de novembro de 2008, após atravessar a nado o lago contíguo à casa. Suu Kyi alerta as autoridades para aquela presença indesejada, mas estava criado mais um pretexto para a penalizar.

É levada para a prisão de Insein e sujeita a julgamento: é condenada a três anos de trabalhos forçados, pena comutada para 18 meses de detenção domiciliária, que termina a 13 de novembro de 2010.

01.02.2021 — (…)

As raízes do golpe militar de 1 de fevereiro passado, que voltaram a privar Aung San Suu Kyi de liberdade, datam de 8 de novembro de 2020, quando a LND venceu as eleições gerais de forma esmagadora.

Os deputados não chegam a tomar posse já que no dia previsto para a cerimónia (1 de fevereiro), os militares declaram as eleições ilegítimas e tomam o poder, fechando o parêntesis democrático aberto em 2015 pela inequívoca vitória eleitoral do partido de Suu Kyi e pela sua entronização como líder de facto de Myanmar.

Desde as detenções de Suu Kyi e do Presidente do país, Win Myint (também da LND) que várias cidades birmanesas estão tomadas pelos maiores protestos populares desde a Revolução de Açafrão. Nas mãos dos manifestantes há muitos retratos de Aung San Suu Kyi, heroína birmanesa e também, cada vez mais, um ícone mundial da resistência pacífica.

(ILUSTRAÇÃO “Seria difícil dissipar a ignorância a menos que houvesse liberdade para buscar a verdade sem medo”, Aung San Suu Kyi DEVIANT ART)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Radiografia de um genocídio

Odiados, discriminados e reprimidos, protagonizam o êxodo humano mais rápido e dramático desde o genocídio do Ruanda

Há um genocídio em curso no mundo e — por ignorância, indiferença ou desinteresse — não se vislumbra esforço para o travar. Manifesta-se há décadas, como água a ferver em lume brando. No centro dessa ebulição está o povo rohingya, a minoria muçulmana de Myanmar (antiga Birmânia), que, ano após ano, tem vindo a ser despojada de direitos, dignidade e perspetiva de sobrevivência.

Para as Nações Unidas e a comunidade internacional em geral, a perseguição aos rohingya atingiu contornos de “limpeza étnica” — a expulsão de um grupo de determinada região. Organizações internacionais no terreno vão mais longe, denunciando um processo de “genocídio” — a destruição completa de um grupo.

AS EXECUÇÕES, VIOLAÇÕES E EXPULSÃO DO POVO ROHINGYA SÃO UMA ESTRATÉGIA DE LONGO PRAZO DO ESTADO BIRMANÊS

“Uma campanha brutal de violência, violações em massa e a destruição parcial ou completa de mais de 350 aldeias forçaram 700 mil rohingya a procurar refúgio no Bangladesh desde 25 de agosto de 2017. Foi o êxodo humano mais rápido desde o genocídio do Ruanda”, diz ao Expresso, desde Rangum, a neozelandesa Alicia de la Cour Venning.

Esta investigadora da Universidade Queen Mary, de Londres, assenta convicções em visitas aos campos de refugiados e nos relatos de sobreviventes do terror orquestrado por forças do Estado birmanês, com a cumplicidade das autoridades de Arracão (estado costeiro também conhecido pelas designações inglesas Rakhine ou Arakan) — de onde têm fugido os rohingya —, monges budistas e ativistas da sociedade civil.

OS ROHINGYA VIVEM NUMA ESPÉCIE DE APARTHEID QUE NÃO LHES PERMITE ESTUDAR, TRABALHAR, CASAR OU VIAJAR

“Temos provas de que este genocídio foi planeado”, diz a investigadora da Iniciativa Internacional para os Crimes de Estado (ISCI, sigla inglesa). “As execuções, violações e a expulsão do povo rohingya foram concebidas como estratégia de longo prazo por parte do Estado birmanês.” Um longo “processo de engenharia social”, por fases, que começou com a estigmatização da comunidade e continuou com o seu enfraquecimento gradual e sistemático visando a sua extinção total.

ESTIGMATIZAÇÃO

Os rohingya enfrentam perseguições há gerações, mas o seu processo de desumanização escalou irreversivelmente a partir de 1982, quando uma nova Lei da Cidadania os excluiu da lista de 135 minorias oficialmente reconhecidas. Passaram a ser “os outros”, bodes expiatórios úteis em contextos de crise. Essa segregação confirmou-se aquando da realização do último censo, em 2014, em que apenas puderam participar os rohingya registados como “bengalis” — entre os birmaneses, são vistos como imigrantes ilegais.

Em Myanmar, “rohingya” é palavra proibida. “Julgo que decorre de rohang, que é a palavra bengali para Arracão”, explica ao Expresso Justin Watkins, professor de língua birmanesa na Universidade de Londres. “Quererá dizer ‘povo do Arracão’, que é uma das razões por que não são aceites pelo Governo.”

Na segunda-feira, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou-se “chocado” após o general U Min Aung Hlaing, chefe de Estado-maior do Exército birmanês, se ter referido aos rohingya como “bengalis”, sem “características ou cultura em comum com as etnias de Myanmar”. Em 2009, as palavras de outro general teriam merecido condenação mais vigorosa… após comparar a “pele clara e macia” do povo de Myanmar e a tez “castanha escura” dos rohingya, Ye Myint Aung, em missão no consulado birmanês de Hong Kong, descreveu-os como “ogres horríveis”.

ASSÉDIO

Em paralelo com a privação de direitos, os rohingya têm sido alvo de campanhas de intimidação que levam, com frequência, ao acendimento do rastilho da violência. À semelhança das fases iniciais do genocídio no Ruanda, quando se espalhou na rádio o medo e se alimentou o ódio contra os tutsis, chamados “baratas”, “serpentes” e “diabos que comem os órgãos vitais dos hutus”, esse tipo de propaganda teve eco em Myanmar, com órgãos de informação estatais a retratarem os muçulmanos como “pulgas humanas detestáveis”.

Também proeminentes monges budistas contribuíram para essa demonização. “Os muçulmanos são como a carpa africana: reproduzem-se depressa e são muito violentos, comem os da própria espécie”, defendeu Ashin Wirathu. Em 2013 foi capa da revista “Time” com o título: “O rosto do terror budista”.

Do assédio físico e psicológico às políticas públicas discriminatórias, os rohingya foram acumulando frustração e desespero. O surto mais recente de violência rebentou a 25 de agosto de 2017, depois de rohingya armados terem atacado postos da polícia, matando 12 agentes. A retaliação fez-se sentir ao estilo de uma punição coletiva: aldeias inteiras foram queimadas e quem tentou pôr-se a salvo foi alvejado. Em serviço nos campos do Bangladesh, os Médicos Sem Fronteiras denunciaram, em outubro, que metade das violações ocorridas durante a fuga dos rohingya envolvia menores.

ISOLAMENTO

O pesadelo dos rohingya começa, desde logo, na região onde vivem. Encurralado entre o golfo de Bengala e a cadeia montanhosa de Arakan Yoma, o Arracão é dos estados mais pobres de Myanmar. Para os seus 3,2 milhões de habitantes — 2,1 milhões de budistas e mais de um milhão de muçulmanos —, ir à escola ou ao médico é mais difícil do que no resto do país.

Excluídos da sociedade e alvo de violência organizada, os rohingya foram sendo encurralados em “áreas de segurança”, que mais não são do que campos de detenção, “uma espécie de regime de apartheid que não lhes permite estudar, trabalhar, casar, viajar ou professar a sua religião”, explica ao Expresso Daniela Nascimento, professora de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Ali vivem dependentes da ajuda do Programa Alimentar Mundial e dos Médicos Sem Fronteiras.

De tempos a tempos a violência empurra-os na direção da fronteira. Em janeiro de 2017 foi conhecido um plano polémico do Governo do Bangladesh para recolocar dezenas de milhares de rohingya na ilha de Thengar Char, no golfo de Bengala. É que a ilha é inabitável: remota, vulnerável a inundações e um paraíso para piratas.

ENFRAQUECIMENTO

Acantonados em guetos e impedidos de circular livremente, os rohigya vivem em situação de grande fragilidade: sobrelotação, subnutrição, epidemias, falta de cuidados de saúde, violência, tortura e assassínios esporádicos. Fugindo da perseguição e da miséria, em 2015, milhares lançaram-se ao mar de Andamão em caixões flutuantes”, como a ONU designou os barcos. Andaram semanas à deriva, disputando comida e bebendo urina, sem que nenhum país abrisse fronteiras para os acolher. Muitos morreram afogados ou famintos, outros acabaram nas mãos de traficantes.

EXTERMÍNIO

Corresponde à matança final. A ela escaparam, por agora, os rohingya que conseguiram chegar ao Bangladesh mas alimentam o sonho de regressarem à terra que consideram sua. A 23 de novembro passado, os governos do Bangladesh e de Myanmar assinaram um acordo de repatriamento para ser concretizado em dois anos. “A não ser que haja uma mudança real das condições de acolhimento e integração no país, creio que se manterão elevadas as probabilidades de continuação das políticas de perseguição, exclusão e segregação dos rohingya”, diz Nascimento. Com a agravante de que, como na Alemanha nazi ou no Ruanda, a população birmanesa está “virada” contra os rohingya e pouco recetiva a tê-los de volta. Restará às autoridades procurar uma “solução final”.

REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA

A denúncia foi feita este mês pela Amnistia Internacional, que a comprovou com imagens de satélite: no norte do Arracão, onde existiam aldeias rohingya, há agora terrenos arrasados por bulldozers e edifícios em construção. “O Governo está a tentar redesenhar a paisagem social da região, apropriando-se de terras ‘abandonadas’ pelos rohingya, gado e propriedades, estabelecendo novas zonas económicas e destruindo as casas que restam, estruturas religiosas e até vegetação, tornando a paisagem irreconhecível, para impedir o regresso dos rohingya às suas terras de origem”, conclui Venning. “No lugar onde viveu uma próspera comunidade rohingya o Estado está a criar novas infraestruturas militares, residenciais e económicas e a alterar a demografia, transferindo populações budistas do centro para o norte.” Eliminando a memória de como os rohingya um dia ali viveram.

QUANDO A DEMOCRACIA TRAI A OBRIGAÇÃO MORAL

Reconhecer o genocídio obriga a comunidade internacional a intervir. Mas ninguém parece disposto a perturbar a democratização em curso

A “questão dos rohingya” destruiu a reputação de uma Nobel da Paz, silenciou um Papa conhecido por “colocar o dedo na ferida” e expôs o medo da comunidade internacional em relação à palavra genocídio. “O crime de genocídio implica responsabilidades de ação muito específicas por parte dos Estados signatários da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, e do próprio Tribunal Penal Internacional, que, na maioria dos casos, aqueles não estão dispostos a assumir”, defende Daniela Nascimento, professora de Relações Internacionais na Universidade de Coimbra.

Reconhecido um processo de genocídio, os Estados ficariam legal e moralmente obrigados a intervir. A docente recorda que já em 2003 se multiplicaram alertas de genocídio em relação às populações não-árabes da região sudanesa do Darfur e “também nada aconteceu”.

Há, contudo, uma segunda e forte razão que justifica a inação internacional em relação ao drama dos rohingya: o processo de democratização em curso num país que, entre 1962 e 2011, foi governado por uma junta militar. “O argumento de segurança usado pelo Governo birmanês [que nega qualquer envolvimento na repressão aos rohingya e justifica alguma perseguição com a necessidade de responder a “ataques terroristas”] é uma razão muito forte num sistema internacional pautado pela agenda securitária dos Estados, que acabam por se rever nesse argumento, e por parte de um Estado soberano que se encontra num processo de transição política para a democracia, apoiado internacionalmente há várias décadas”, refere a especialista em questões humanitárias e de direitos humanos.

Em outubro de 2016, ainda com Barack Obama na Casa Branca, os Estados Unidos levantaram sanções económicas impostas a Myanmar em 1997, em virtude dos avanços registados ao nível da “promoção da democracia”. Os generais tinham entregue o poder aos civis e o partido de Aung San Suu Kyi, a líder da oposição que passara 15 anos em prisão domiciliária, e com isso ganhara o reconhecimento internacional como lutadora contra a opressão na Birmânia, tinha arrebatado as eleições parlamentares em 2015. O decreto executivo de Obama data de 7 de outubro; dois dias depois, no noroeste de Arracão, começou mais uma vaga de repressão contra os rohingya que provocou cerca de 1000 mortos — e não reverteu a posição norte-americana.

“Tem havido alguma condenação internacional relativamente à ação do Governo birmanês, algumas resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e do Conselho de Direitos Humanos apelando ao fim da violência”, recorda Daniela Nascimento. “Mas a aplicação de medidas ou sanções mais ‘robustas’ tem sido claramente evitada.”

Novo Presidente, a mesma líder

Na quarta-feira, o Parlamento birmanês elegeu um novo Presidente. Win Myint, apoiado pela Liga Nacional para a Democracia, de Aung San Suu Kyi, recebeu 403 votos das duas câmaras, enquanto Myint Swe, apoiado pelos militares, não foi além dos 211. À semelhança do titular anterior, Htin Kyaw, que se demitiu por razões de saúde, o novo Presidente é muito próximo de Suu Kyi, a líder “de facto” do país, constitucionalmente impedida de assumir a presidência por ter filhos com nacionalidade estrangeira (em concreto, britânica).

“Temos de olhar para este processo de democratização com cautela, na medida em que a ‘abertura’ a que se assistiu com a subida de Suu Kyi a Conselheira de Estado [cargo criado para contornar o impedimento legal] não foi acompanhada por uma abertura real no que diz respeito às estruturas de poder e de decisão, que estão ainda muito dependentes e sob controlo das autoridades militares”, alerta a docente de Coimbra.

“A própria Suu Kyi referira, em 2014, que a democratização no país não tinha sido atingida nem era irreversível, pelo que as várias dinâmicas políticas, sociais, económicas e até religiosas e étnicas são muito mais complexas do que parecem, criando desafios extraordinários num país que é, histórica e politicamente, instável”, prossegue Nascimento.

Talvez Suu Kyi quisesse, implicitamente, justificar o seu silêncio em relação aos rohingya. Mas o mundo não lhe perdoa. A 9 de janeiro de 2016, o influente “The New York Times” alertava: “Em breve o mundo testemunhará algo notável: uma Nobel da Paz adorada a presidir a campos de concentração do século XXI”. Nascimento vai mais longe: “A atuação de Aung San Suu Kyi colocou em cima da mesa um cenário impensável: o de uma Nobel da Paz [1991] ser, um dia, indiciada e condenada no Tribunal Penal Internacional.”

(Fotos: Rohingyas acabados de chegar ao campo de refugiados de Balukhali, em Cox’s Bazar, Bangladesh, em novembro de 2017 OLIVIA HEADON / IOM / UN MIGRATION AGENCY)

Artigo publicado no Expresso, a 30 de março de 2018 e republicado no “Expresso Online”, a 1 de abril de 2018. Pode ser consultado, parcialmente, aqui